
(Imagem: Divulgação)
O dia 19 de dezembro de 1975 seria especial para os 32 formandos em Jornalismo do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS/UFF). Eles compunham a Turma Tristão de Athayde, pseudônimo do crítico literário e pensador católico Alceu Amoroso Lima, escolhido patrono e convidado para a solenidade a se realizar na Associação Fluminense de Jornalistas, no centro de Niterói.
Os tempos eram turvos e a reitoria da UFF, para evitar críticas aos governantes, adotara o sistema de formatura única, com estudantes concluintes de todos os cursos, centralizando as decisões sobre paraninfo, patrono, homenageados e escolha de aluno orador. Tudo seria realizado no Ginásio Caio Martins, com capacidade para acomodar milhares de alunos e convidados. O patrono escolhido pela reitoria era o coronel reformado do Exército Jarbas Gonçalves Passarinho, ministro da Educação de 1969 a 1974.
A nossa turma de Jornalismo decidiu planejar e realizar uma solenidade específica, com patrono, paraninfo, professores e funcionários homenageados. Afinal, era um direito nosso como formandos de uma universidade púbica. Depois de duas tentativas de obter local adequado em Niterói, finalmente a direção da Associação Fluminense de Jornalistas concordou em ceder o auditório. Os convites foram impressos quando ainda era incerto onde ocorreria a solenidade. O local, data e hora seriam preenchidos à mão pelos formandos.
Em uma tarde entre o final de novembro e início de dezembro, um pequeno grupo de alunos dirigiu-se ao Centro Dom Vital, na Rua México, esquina com a Araujo Porto Alegre, centro do Rio. Fomos encontrar Alceu Amoroso Lima. Ali, fizemos o convite sentados em torno do pensador que, no Jornal do Brasil, conseguia publicar artigos em que denunciava a tortura, a censura prévia imposta à imprensa, as mazelas sociais e os atos ditatoriais. Expusemos com clareza que não era a solenidade proposta pela UFF, revelamos o nome do paraninfo, Carlos Henrique Escobar, e do homenageado póstumo, Vladimir Herzog. Ouvimos palavras de apoio e a aceitação ao convite pelo já octogenário escritor (1893-1983).
Lembremos: desde março de 1964, o país estava sob a tutela de militares que tomaram o poder. Nos 11 anos precedentes, ocorreram múltiplos acontecimentos bárbaros: prisões arbitrárias, desaparecimentos de pessoas, torturas, censura à atividade jornalística, cultural e acadêmica. Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, chefe do Jornalismo da TV Cultura, havia sido morto no Departamento de Operações de Inteligência (DOI), o assombroso organismo de repressão instalado no II Exército, em São Paulo.
Os 32 formandos em Jornalismo da UFF tomavam uma atitude ousada ao convidar um crítico do sistema vigente para patrono, um professor para paraninfo que, durante o curso, sofrera represálias dos “órgãos de segurança” e imprimir no convite o nome de Vladimir Herzog como homenageado da turma.
No dia 18 de dezembro, véspera da formatura, o orador da turma, Dante Gastaldoni, recebeu em casa um telefonema da secretária do IACS, comunicando que a Associação Fluminense de Jornalistas não mais cederia o auditório para a cerimônia.
A notícia começou a circular entre os colegas. Recebi a informação, não lembro de qual colega de turma, no final da tarde, por telefone: Não haverá formatura. Alguém ligou para a secretaria do curso dizendo-se agente da polícia e avisando que se comparecermos o pau vai cantar lá. Esse era o teor do recado. Estava em andamento a tática do pânico, a ameaça pelo medo, a partir de uma fonte que nunca conseguimos identificar.
Em 1975, muitos não tinham telefone em casa (o meu havia chegado um ano antes), e nem todos os formandos puderam ser avisados a tempo. Lembro que manifestei ao colega a preocupação de comunicar o fato ao patrono da turma, residente na cidade serrana de Petrópolis, o que acabou sendo feito.
O fato é: os formandos, familiares e convidados que foram até a Associação Fluminense de Jornalistas encontraram as portas trancadas a cadeado. Estupefatos com a inusitada e angustiante situação, observaram que havia no local policiais militares em posição de vigilância. E assim, nunca ocorreu a formatura daquela turma de Jornalismo do IACS/UFF.
Interessante lembrar que no dia 19 de dezembro os jornais publicaram com destaque o relatório oficial com a versão de suicídio para a morte de Vladimir Herzog. A longa peça literária, criada no Departamento de Operações de Informações (DOI) do II Exército, apresentava o resultado de Inquérito Policial Militar, que culpava Herzog pela própria morte, por enforcamento. A foto produzida no local do “suicídio”, em vez de corroborar a versão oficial, demonstrou a armação da cena pelos assassinos de Herzog.
No dia 20, ao lado da notícia e reprodução do citado relatório, a Folha de S. Paulo, em texto da Sucursal do Rio, publicou a notícia “Suspenso ato de formatura”, sobre o ocorrido na véspera em Niterói. Segundo a fonte da informação, um diretor não identificado da Associação Fluminense de Jornalistas, a solenidade de formatura foi suspensa, pois os estatutos daquela entidade não permitiam a realização de manifestações de caráter político em suas dependências. E ainda acrescentou que os formandos pretendiam realizar fora da Universidade uma concentração política.
Cinquenta anos transcorreram desde 1975. O Brasil finalmente livrou-se da ditadura 10 anos mais tarde, em 1985. Infelizmente não promoveu o acerto de contas histórico que outros países fizeram, e viu aprovado um projeto de anistia “geral, ampla e irrestrita”, de interesse do lado opressor.
A prova desse erro histórico ficou evidente com os fatos ocorridos a partir de 2018, quando chegou à Presidência da República um personagem nefasto, desqualificado e propagador de ideias remanescentes daqueles anos sombrios. Para além das desgraças e retrocessos impostos ao país, por muito pouco não voltamos a sofrer um golpe de Estado. Desta vez, a ação do Supremo Tribunal Federal está colocando nos devidos lugares aqueles que se achavam impunes.
Um resumo do discurso do patrono, que os formandos de Jornalismo 1975 da UFF não puderam ouvir de viva voz, foi publicado na edição de 19 de fevereiro de 1976 do Jornal do Brasil. Nele, Tristão de Athayde afirmava que o Jornalismo é um combate em primeira linha, apenas tolerado em regimes ditatoriais. A liberdade de imprensa constitui o primeiro passo para a participação do povo no Poder e o respeito aos direitos de todos.
Atualizando, é dever de honra, aos verdadeiros jornalistas, manter a luta permanente em defesa de princípios pétreos da democracia. Em especial, num mundo em que, por força da avassaladora transmissão instantânea de conteúdos programados para disseminar mentiras e dominar mentes, milhões de pessoas acreditam em salvadores da Pátria e sistemas ditatoriais.
Os nomes daqueles que só puderam efetivamente colar grau e ter seus diplomas expedidos a partir de 1977 (quando o curso de Comunicação Social/Habilitação Jornalismo da UFF foi reconhecido pelo MEC) estão aqui registrados: Ana Maria Éboli, Angela Regina de Souza Cunha, Arthur Augusto dos Santos Reis, Beatriz de O. Santa Cruz Lima Filha, Berenice de Oliveira, Carmen Lúcia Ribeiro Pereira, Dante Gastaldoni (orador da Turma), Dayse dos Santos, Elisabeth Regina V. da Cruz, Geraldo Lopes de Jesus, Jandira F. Lima, João Baptista de Abreu Júnior, Jorge Roberto Saad Silveira, José Ferreira Regal de Castro, José Machado da Mota Filho, Julia Maria Guerra, Lucia Maria da Silva, Luís Henrique Caneca, Marco Antonio Maia Souto, Maria Elita Nunes de Melo, Maria Helena dos Santos, Maria Leivas Macalão, Neiva Maria Rodrigues de Almeida, Ricardo Leitão de Paiva Pereira, Roberto Pereira Medeiros, Roseane de Seixas Brito, Sônia Maria Goés Nobre, Sonia Silva Onofre, Suely Rangel dos Santos, Suzana Cunha Carneiro da Silva, Wanda Martins do Nascimento, Virgilio Damásio Vieira de Freitas.
O convite da formatura proibida registra também os nomes de quatro professores homenageados: Antonio Theodoro M. de Barros, Osmar Santos Fonseca, Rosental Calmon Alves e David Alexandrisky.
Os formandos também prestavam homenagem a outras quatro pessoas, pelos vínculos de amizade e reconhecimento aos seus afazeres, naqueles quatro anos de curso: José Cezar Palmeira (seu Zé da secretaria), Gilberto Galdino da Silva (Gigi da Cantina), Marcus de Melo Gomes (secretaria) e Hélia Macedo Serrão (secretaria).
Agradecimentos a Carmen Lucia Pereira, Dante Gastaldoni e João Baptista de Abreu Júnior por compartilharem memórias daqueles dias.
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Roberto Medeiros é Jornalista profissional, registro MTb 12.223, formado na (UFF, 1975); Mestre em Jornalismo (USP, 1996). Nascido em 1950, no Rio de Janeiro. Trabalho no Rio de Janeiro, Brasília e Campinas, onde reside.
