Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia dos EUA criticada por cobertura de Baltimore

Manifestação em Baltimore (Foto: Eric Thayer, Reuters)

Manifestação em Baltimore (Foto: Eric Thayer, Reuters)

Baltimore, a cidade mais populosa do estado de Maryland, nos EUA, tem enfrentado uma série de protestos violentos desde a morte de Freddie Gray, um jovem de 25 anos. Gray foi detido pela polícia e internado logo depois, apresentando lesões corporais graves. Ele morreu uma semana depois de sua detenção. O episódio guarda suas similaridades com aquele ocorrido em agosto de 2014, também nos EUA, em Ferguson, Missouri, quando o jovem Michael Brown foi morto por um policial.

Gray e Brown eram negros, por isso as circunstâncias da morte de ambos estimularam diversas discussões sobre preconceito racial e truculência policial no país. Esse tipo de caso é naturalmente atraente para a imprensa, mas também pode criar armadilhas durante a cobertura. Isso já havia ocorrido em Ferguson. Nos eventos em Baltimore, não foi diferente.

Parcialidade na Fox News

O apresentador Geraldo Rivera, da Fox News, foi confrontado por um morador de Baltimore chamado Kwame Rose, que acusou o canal de cobrir o caso de Gray de maneira tendenciosa. Rivera estava na cidade para entrevistar a senadora Catherine Pugh a respeito dos protestos, quando foi cercado por uma multidão de manifestantes. O apresentador – conhecido por seus programas polêmicos e de qualidade duvidosa – reagiu chamando o jovem de vândalo e dizendo que era “exatamente aquele tipo de anarquia juvenil” que estava levando “destruição e dor à comunidade”. Sean Hannity, apresentador do mesmo canal, chegou a dizer que Gray tinha causado a própria morte. Desde o início dos conflitos, a Fox News tem explorado a crise para criticar e culpar ativistas dos direitos civis, pais negros e o presidente Barack Obama, ignorando totalmente a questão da brutalidade policial.

Histeria na CNN

Wolf Blitzer, âncora político da CNN, descreveu os conflitos em Baltimore como se fossem a queda de Roma. Sua postura foi classificada como exagerada em um artigo escrito pelo jornalista Justin Peters para a revista digital Slate. Peters lembra que Blitzer já esteve em zonas de guerra e áreas de desastre, o que não justificaria o alarde. Durante a cobertura dos tumultos nas ruas, a CNN questionou diversas vezes: “Onde está a polícia?”. Peters apontou que o canal esqueceu-se de que a polícia, neste caso, não seria a solução para os protestos, mas seu próprio agente. “O bom jornalismo tenta compreender por que uma cidade está sangrando em vez de simplesmente franzir a testa para a ferida”, escreveu.

Peters reiterou que a CNN, tal como todos os meios de comunicação televisivos, é especializada em notícias míopes, que englobam narrativas e imagens facilmente apreensíveis. Ele lembra que as limitações do formato muitas vezes exigem uma narrativa visual central – como carros sendo queimados e edifícios saqueados –, mas que isto acaba reduzindo discussões intrincadas a meras reportagens sobre danos materiais. “Depois de certo ponto, há muito pouco valor noticioso a ser acrescentando pelo jornalista em uma reportagem sobre um incêndio, senão simplesmente afirmar continuamente que, sim, o prédio ainda está em chamas”, criticou Peters.

No entanto, o articulista da Slate lembrou-se de outra premissa. Embora alguns líderes locais em Baltimore tenham manifestado frustração dizendo que a cobertura da mídia foi totalmente concentrada em bolsões isolados de ilegalidade, ignorando os muitos protestos pacíficos simultâneos, Peters diz que não pode culpar a imprensa totalmente por enfatizar os motins. “Gostando ou não, é assim que o jornalismo funciona, e isso não é necessariamente uma falha”. Ele usou a expressão “if it bleeds, it leads”, algo como “se sangra, vira notícia”, para justificar a postura dos colegas.

Profundidade no Baltimore Sun

Justin Fenton, repórter criminal do jornal local Baltimore Sun, narrou boa parte dos protestos em sua conta no Twitter. Embora também tenha se perguntado onde a polícia estava e por que nada estava sendo feito para deter a violência, ele foi um pouco menos sensacionalista e acrescentou camadas mais profundas às cenas que, vistas de longe, poderiam ser descritas apenas como arruaças cometidas por um bando de pessoas dotadas de ódio indiferenciado. Fenton escreveu um artigo em conjunto com a repórter Erica L. Green, cujo conteúdo foi elogiado e citado como “um exemplo a ser seguido pelas grandes emissoras”, pois realizou uma abordagem que deu voz aos dois lados do conflito.

No mesmo artigo da Slate em que questionou a cobertura da CNN, Justin Peters comentou: “‘Onde está a polícia?’; quando Fenton, do Baltimore Sun, faz esta pergunta, ele levanta um questionamento real. Quando a CNN faz esta pergunta, parece querer dizer ‘Precisamos de mais polícia!’. Mais policiais nas ruas podem acabar com estes motins em particular, mas é uma tática que provavelmente vai servir apenas para reforçar as diferenças”, concluiu.

Cobertura ampla no Baltimore City Paper

O jornal local Baltimore City Paper também tentou uma abordagem mais ampla. O repórter Edward Ericson Jr. conversou com vários moradores de Baltimore, bem como com ex-policiais da cidade, a fim de obter uma noção do contexto em que Gray foi morto. Sua reportagem revelou uma polícia desleixada, que sempre foge às regras do manual de sua corregedoria.

Ironia no Comedy Central

O humorista Jon Stewart, apresentador do programa The Daily Show, do canal Comedy Central, usou de seu estilo irônico usual e argumentou que a violência em Baltimore se encaixa na narrativa de notícias exibidas nos EUA nos últimos meses. Ele disse que ninguém deveria se surpreender, visto que o caso de Michael Brown em Ferguson era bastante recente. Depois sugeriu sarcasticamente que uma forma viável de lidar com a violência seria ignorar as raízes do problema. “Podemos concordar em continuar a ignorar como os afro-americanos ainda são sistemicamente e historicamente marginalizados, apenas recebendo atenção quando tememos a invasão de sua bola de fogo raivosa em nosso espaço aéreo, e mais uma vez dando um suspiro de êxtase aliviado quando eles erram o alvo”, zombou.

Durante uma entrevista para a revista Shortlist, Stewart disse que algumas pessoas só querem vender jornais, enquanto outras ainda desejam contar histórias com integridade, e que a luta está exatamente nessa tensão.

Análise no The Root

Em artigo para o site The Root, o jornalista Rashad Robinson também criticou a cobertura da CNN e da Fox News, e disse que o jornalismo responsável não deve se limitar a focar nos resultados de anos de opressão sobre uma comunidade quando esta se encontra em pleno ponto de ruptura, e sim sobre os fatores que levaram à ruptura. “A cobertura desdenhosa e desumana dos protestos em Baltimore tem invocado arquétipos cansativos de vandalismo e ignorância, precisamente o tipo de caracterização estereotipada que reforça o preconceito, que por sua vez leva a tragédias como a morte de Freddie Gray”, escreveu. Robinson – que preside a Color of Change, uma entidade que se apresenta como a maior organização de direitos civis online dos Estados Unidos – citou vários casos de truculência policial relatados por civis de Baltimore e questionou: “Será que é tão difícil assim para os ditos jornalistas contarem as histórias com precisão?”. O jornalista pediu por um panorama midiático capaz de apresentar uma cobertura justa e humanizada dos negros.

Profissão perigo

Tal como em Ferguson, vários jornalistas sofreram violência durante a cobertura das manifestações nas ruas de Baltimore.

Em sua conta no Twitter, Carrie Wells, jornalista de economia do Baltimore Sun, declarou ter testemunhado um ataque ao colega Chris Assaf, editor de fotografia do jornal. Assaf foi agredido por saqueadores enquanto fazia fotos do tumulto.

Oliver Janney, fotojornalista da CNN, disse ao site do Instituto Poynter que também foi atacado e teve seu telefone celular roubado. Steve Dorsey, repórter da rádio WNEW, afiliada ao grupo CBS, também foi agredido. Um cinegrafista da divisão americana da CCTV (Televisão Central da China) também sofreu agressões físicas e teve seu equipamento roubado.

Conflito ignorado

Em um artigo para o Washington Post, a jornalista Karen Attiah ironizou a cobertura do caso e fez uma analogia ao modo como a imprensa dá plena atenção aos conflitos internacionais. Ela disse que, se os protestos em Baltimore fossem cobertos tais quais os conflitos em países estrangeiros, tudo seria diferente. Karen acredita que, certamente, líderes internacionais expressariam preocupação com a crescente onda de racismo e violência nos EUA, principalmente no que diz respeito ao tratamento a minorias étnicas.

Haveria também uma abordagem da corrupção nas forças de segurança do Estado nos casos de brutalidade policial. Além disso, segundo ela, Baltimore poderia contar com manifestações de apoio do Reino Unido, da Palestina, de grupos pró-democracia do Egito e das Nações Unidas. E analistas internacionais não ficariam de fora, citando a “Primavera Americana” (uma ironia à Primavera Árabe) e todas as “belas manifestações nas mídias sociais em prol da justiça nos EUA”.