Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que motiva o Jornalismo Comunitário de cunho profissional?

(Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR)

Sonhar é um ato revolucionário por si só. É o ponto de partida das mudanças sociais, quando rompe a esfera do individual e passa a ser compartilhado coletivamente. Eram meados de novembro de 2014, quando comecei a pensar recorrentemente sobre o sonho de uma sociedade mais justa, apesar dessa discussão remontar aos gregos, como menciona Chauí. Estava em uma área de reforma agrária e lancei o olhar ao alto, avistando o sol pujante das nove horas da manhã na zona rural pernambucana. Ele se apresentava entre as brechas das folhas que compunham o sistema de agrofloresta da terra adquirida por dona Nazaré em um programa de assentamento rural. Caminhando entre pés de caju, manga, pitanga, e longe do barulho da cidade, a voz dessa agricultora familiar de meia idade, que tinha tanto a dizer, soava reinante em nossa conversa. Apenas o canto dos pássaros e o chacoalhar das árvores pelo vento suave quebravam o protagonismo da sua fala, que narrava uma história poucas vezes ouvida amplamente: a de uma agricultora nordestina.

A princípio o diálogo tinha como motes centrais o conhecimento que ela possuía sobre cada cultura alimentar cultivada em sua minifloresta e as estratégias ecológicas elaboradas pela sua família. Contudo, em determinado momento, dona Nazaré revelou que seu sonho sempre foi ser professora. Nenhuma surpresa para mim, tamanha a desenvoltura que demonstrava ao me explicar assuntos que eu desconhecia totalmente até então. Pontuou que não desgostava do trabalho agrícola e da vida que detinha, mas que preferia ter tido a oportunidade de seguir com os estudos. Sonho abandonado pela dificuldade de romper as desigualdades sociais e de gênero que lhe impeliam a trabalhar, ainda criança, em vez de ir para escola, mesmo adorando estar nela. Naquele tempo e espaço, o lugar da mulher negra e pobre era concebido no âmbito domiciliar e do trabalho agrário. Apenas aos irmãos de dona Nazaré a escola foi tida no espectro do possível. E, ainda assim, até certo limite. Se hoje a democratização de acesso à universidade está em sua fase inicial, em décadas atrás eram poucas as pessoas de contextos populares que ousavam sonhar com isso, tamanha a exclusão existente no Brasil e o descaso histórico do poder público com essas populações.

Em dezembro do ano seguinte, conversando com outra senhora de meia idade em uma favela urbana, a história que eu ouvia se repetia, e as razões que a conduziam a se configurar desta forma também. Em contextos populares brasileiros, seja no norte ou sul do país, no campo ou na cidade, frequentemente os direitos de seus habitantes são violados. Quase que em um ciclo ininterrupto decorrente de um passado escravocrata, a pobreza e a falta de oportunidades se perpetuam de geração em geração, se configurando como questões tão perenes, que ganham ares de naturalidade, como se nada a nível social e político pudesse ser feito para transformá-las. Neste cenário, volto a dizer: sonhar, ainda que o sonho não se concretize, é uma quebra de paradigma. Citando Racionais MC’s em texto recente chamado “O dia em que o morro descer”, a jornalista Daiene Mendes, do Favela em Pauta, menciona que o caminho mais natural é realmente escolher “o que estiver mais perto de você. O que estiver dentro da sua realidade”.

Há tantos desafios a serem superados quando se nasce em contextos marcados pela ausência do Estado que almejar algo diferente do que é considerado natural parece perda de tempo. Com muito custo, Daiene conta, conseguiu entrar na universidade e terminar a graduação em jornalismo. Por vezes, seu caso é tomado como um exemplo para endossar o discurso da meritocracia, como se a desigualdade de acesso à moradia digna, à alimentação adequada, à educação de qualidade não tornasse os espectros dos sonhos muito mais distantes para uns do que para outros; como se o problema da desigualdade social pudesse ser superado individualmente. Sobre sua experiência na universidade, afirma:

Nos meus primeiros dias de aula, os professores perguntavam qual era a motivação para estudar comunicação e jornalismo, talvez duvidando de que alguém em sã consciência pudesse tomar esta decisão. Muitos dos meus colegas de faculdade respondiam que assistiam a William Bonner e Fátima Bernardes no Jornal Nacional e que esta era sua maior referência e inspiração. Já eu, escolhi ser jornalista para fazer exatamente o que não fazem William Bonner e Fátima Bernardes. Ao longo da minha formação, aprendi que escrever é um processo subjetivo que deixa um pouco de si, de seus repertórios, de suas vivências, e que não existe a imparcialidade construída pela mídia hegemônica parcial. De acordo com a pesquisa “Quem é o jornalista brasileiro — perfil da profissão no país”, [publicada] no final de 2012 —, 68% dos jornalistas brasileiros eram mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos. Negros eram cerca de 5% do total de jornalistas no Brasil. Como acreditar em imparcialidade quando a produção jornalística, quase sempre baseada em construções subjetivas, é majoritariamente branca e elitista?”.

Da percepção [de] que as favelas sempre foram pautas do jornalismo corporativo, mas comumente a partir do olhar de fora, do olhar oficial sobre o que existe lá dentro, resultou a compreensão que seu papel social no jornalismo estaria em, justamente, visibilizar outros conhecimentos sobre estas realidades, a partir do olhar de dentro, de quem mora nelas. Em 2017, o portal jornalístico Favela em Pauta foi co-criado por Daiene Mendes. O intuito? Significar as favelas para além dos estigmas de carestia e violência que espoliam seus moradores e denunciar as causas que conduzem a não concretização de sonhos de pessoas como dona Nazaré. O jornalismo de cunho comunitário há décadas existe no Brasil, denunciando as injustiças do mundo e fomentando as lutas por cidadania. A novidade desse fenômeno na atualidade é que parte dele tem assumido um caráter profissional, por ser feito em grande medida, como Daiene pontua, pela “primeira geração de universitários em suas famílias”. Resulta da democratização de acesso à educação superior sendo aos poucos conquistada — tardiamente e com muito chão a andar pela frente, mas finalmente iniciada em decorrência de muita luta política.

Assim como o Favela em Pauta, o Periferia em Movimento, o Voz das Comunidades e muitas outras iniciativas jornalísticas se inserem neste momento histórico e ampliam o fenômeno do jornalismo comunitário ao âmbito profissional. Durante muito tempo sonhar em ser um jornalista formado, tendo nascido na periferia, poderia ser inconcebível. “Foi só depois de tudo isso que passei a me olhar no espelho e a sonhar com a possibilidade de viver um futuro em que pessoas como eu possam, sem ser uma enorme exceção estatística, entrar na faculdade e sair com o diploma na mão. Passei a sonhar com um futuro em que pessoas que viveram e vivem realidades como a minha não precisem textualizar tanta dor na tentativa de expressar suas percepções e seus anseios sobre o que está por vir”, reflete Daiene. É neste sentido que o jornalismo comunitário de cunho profissional (e o não profissional também) está intimamente relacionado com a história de dona Nazaré. Ele é feito por pessoas que, assim como ela, estão inseridas na busca pela democratização de acesso a oportunidades para realização de sonhos. Sabendo disso, se coloca como um instrumento da mudança social, estimulador da autoestima periférica e da sua força cidadã na busca pelo combate ao autoritarismo social que exclui grupos inteiros da população brasileira ao acesso a oportunidades e a favor de uma cultura democrática. Sua força está em sonhar com um mundo melhor e mais inclusivo, onde o direito à comunicação é tido como um dos vetores fundamentais para transformar o acesso a outros direitos sociais uma realidade no Brasil. Isso é revolucionário.

Publicado originalmente em objETHOS.

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Juliana Freire Bezerra é pesquisadora do objETHOS e doutoranda do PPGJOR-UFSC