Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Bolsonaro, o mito e o sintoma

(Foto: Alan Santos/PR)

O presidente da República, Jair Bolsonaro, afirma-se como um dos principais propagandistas da cloroquina no mundo. Sem exageros. Defensor do medicamento que tem sido não recomendado pelas principais autoridades da área de saúde para o tratamento do Covid-19, ele vivenciou uma cena, no mínimo inusitada no domingo, 19/7, ao erguer uma caixa do produto perante apoiadores que se aglomeravam em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília. Como se fosse uma taça levantada por um capitão em uma final de competição, obteve aplausos de uma plateia delirante, e os gritos ecoaram: “Cloroquina, cloroquina!”.

A cena, segundo Rubens Casara, doutor em Direito, mestre em Ciências Penais e juiz de Direito do Tribunal de Justiça do RJ, demonstra cabalmente a substituição do conhecimento científico pelas crenças estabelecidas sem qualquer rigor ou metodologia. Casara entende que o momento caracteriza o empobrecimento do sujeito, marca própria da racionalidade dominante, ocasião em que a verdade obtida pelo trabalho do cientista é fragilizada pela postura dos negacionistas.

Casara, que também é membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD, e lançou recentemente, pela editora Contracorrente, o livro “Bolsonaro: o mito e o sintoma”, em que expõe por um texto claro e fundamentado, pontos que envolvem as condições que possibilitaram a amplitude da campanha bolsonarista e seu “pensamento empobrecido”, facilitador para que um significativo contingente da população brasileira incorporasse a lógica neoliberal. Ou seja, aquela que, na opinião do autor, trata de ideias e sujeitos como mercadorias, e levaram ao apoio de um governante de feição explicitamente autoritária. Como bem prefacia o jurista, professor e editor, Rafael Valim: “Nesta obra ele procura mostrar como uma massa de brasileiros foi convencida a votar numa pessoa tão despreparada para presidir a nação, e como chegamos a esse momento tão difícil da democracia no Brasil”.

Ao se percorrer os vinte capítulos do livro percebe-se o fio condutor centrado na questão do neoliberalismo e suas implicações diretas com o bolsonarismo. Capítulos como “A Nova Obscuridade”, “Propaganda Bolsonarista”, “A paranoia como condição de possibilidade do Bolsonarismo”, “O desejo por autoritarismo”, “A ignorância como matéria prima”, “A revolução cultural Bolsonarista”, e o “O Bolsonarismo Judicial: a tradição autoritária e o modo neoliberal de julgar”, entre outros, vão se intercalando de maneira ágil e prazerosa, o que permite uma leitura temática e ao mesmo tempo associada ao conjunto da pesquisa que vem sendo desenvolvida por Casara há alguns anos, com obras publicadas em momentos anteriores, como o “Estado Pós-democrático” e “Sociedade sem lei”.

O bolsonarismo pode ser definido, no entendimento de Casara, como um sistema de pensamento paranóico, em que certezas delirantes como o terraplanismo, o marxismo cultural e o complô comunista se misturam com senso comum, preconceitos e xingamentos para justificar e reforçar a ignorância e o culto à violência dos seus discípulos e seguidores.

O autor aponta para as fake news como um dos sintomas desse registro ideológico. “A divulgação deliberada de notícias falsas ou distorcidas serve para reforçar preconceitos e noções mentirosas da realidade, mas também para orientar de maneira significativa as decisões individuais, sobretudo para manipular a cena política e eleitoral. Mais do que mera desinformação, são o resultado de um trabalho de engenharia comunicativa, social e ideológica que visa reforçar certezas delirantes, em especial para aqueles que estão predispostos a confirmar seus preconceitos, medos e visões distorcidas da realidade”, analisa.

Não à toa, é perceptível no livro que todo o fenômeno bolsonarista é construído a partir de um mito que, por sua própria natureza, dispensa qualquer base empírica ou racional. E não por acaso, o mentor ideológico do bolsonarismo, o ex-astrólogo Olavo de Carvalho, também é observado em um dos capítulos como o responsável pelo discurso que forma um todo coerente a partir de certezas delirantes (que não guardam relação necessária com a facticidade e o valor “verdade”), mitos e sofismas. Casara, de maneira pertinente, chama atenção para as conclusões do ideólogo do bolsonarismo, já que segundo ele, partem de premissas erradas e crenças que desafiam o conhecimento produzido e acumulado pela civilização, o que explica o anti-intelectualismo (visível no ataque às vozes independentes de oposição na academia), inerente à personalidade autoritária de uma pessoa que se autoafirma como filósofo e professor.

Para Eduardo Newton, defensor público do RJ, mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA, Rubens Casara demonstra que Bolsonaro permite o desnudamento de sérios problemas ainda aferidos na sociedade brasileira e que foram agravados com o neoliberalismo autoritário.

Ao revisitar algumas questões abordadas em obras anteriores, Rubens Casara reforça e expõe como determinadas questões são “vendidas” à população, sempre ao gosto dos proprietários dos meios de comunicação de massa, e não atingem as elites econômicas. Lembra o “combate à corrupção”, tema que de certa maneira auxiliou na eleição de Bolsonaro e permanece proporcionando espetáculos, rapidamente transforma políticos amados em odiados, inquisidores em heróis, já que se apresenta como mercadoria que possibilita todo tipo de distorção e manipulação afetiva do público, “em especial daqueles que abandonaram qualquer reflexão e se eximem da faculdade de julgar em razão das informações, em regra parciais, por vezes deliberadamente equivocadas, que recebem dos conglomerados empresariais que produzem ‘jornalismo’.”

Diante de tantas condições adversas que surgem ao longo da obra – a guerra híbrida, a construção de inimigos, internos e externos, o fim das solidariedades, o poder das finanças, o empobrecimento da população, o aumento crescente das desigualdades, entre outras –, um certo alívio se dá ao lermos o último capítulo, “Pensar em alternativas”, em que Casara garante que não é impossível superar o neoliberalismo – e consequentemente o bolsonarismo –, ao se buscar uma racionalidade, uma normatividade e um imaginário do “comum”, daquilo que vale por ser construído “por” e “para” todos. Daquilo que, por ser comum, é inegociável. “É preciso insistir na força do comum, desdemonizar a palavra e refundar o conceito como objeto da política”. Que assim o seja. Boa leitura.

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Referência

CASARA, Rubens R.R. Bolsonaro, o mito e o sintoma. SP: Contracorrente, 2020.

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Boanerges Lopes é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de livros, doutor e mestre em Comunicação pela UFRJ e Umesp.