Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Vírus, Talmud, Bíblia, Corão — do gênesis ao apocalipse

(Imagem: Pixabay)

Homens e mulheres têm medo de morrer, o que é normal e natural, mas para muitos não se trata do risco de uma contaminação com o coronavírus abreviar a vida. O medo não é apenas da morte, mas do que poderá vir depois da morte. O nada, uma sobrevida imaterial, uma reencarnação ou um julgamento?

Para os ateus, a morte em si não encerra nenhum mistério. A vida veio do nada, a morte devolve o ser humano ao nada. É um simples acabou. Aos parentes e amigos sobreviventes, se quiserem, a tarefa de fazerem um balanço sumário, positivo ou negativo, e ,sem dúvida, farão o balanço dos bens deixados, para a partilha.

Porém, o mistério da morte, precedido pelas etapas da vida, provocou a curiosidade e o temor. Por via das dúvidas, os humanos ainda quando selvagens se preocupavam em manter um bom relacionamento com as forças governantes do cotidiano: o sol, a lua, as estações do ano, a água, o fogo. O medo levou à adoração, à criação de divindades, suas representações em imagens. Faltava só criar o enredo e escrever a história. Coube isso à religião: transformar o medo da morte e do seu mistério num desfecho feliz e maravilhoso — na revelação de um mundo novo pós-morte, sem as restrições impostas pelo corpo humano material, num encontro com o criado Criador.

A evolução humana ocorreu em espaços e lugares diferentes, distantes uns dos outros, dando origem a maneiras sonoras de se comunicar, precedendo as línguas e idiomas, enquanto se inventavam instrumentos e maneiras de se tornar melhor a existência. E também surgiram diferentes tipos de adoração e de deuses, muitos materializados em imagens e figuras, uns bons outros maus.

Quem cuidava da mis-en-scène desse mundo invisível, espiritual, etéreo ou simplesmente imaginário, eram os feiticeiros, magos, advinhadores, evoluindo com o tempo para doutrinadores formadores do clero e todas as religiões.

O crescimento da população levou ao êxodo ou imigração, à descoberta de outros deuses, ao confronto e à guerra. Para proteger seus deuses e suas profissões, o clero criou o pecado mortal, a apostasia, a blasfêmia e o inferno de fogo ardente para quem ousasse afirmar ser tudo ilusão e mentira. Torturas eram inventadas para os apóstatas, lançados nas fogueiras, decepados mortos a pedradas ou decapitados.

Os pagões faziam isso, em nome de seus deuses, os cristãos fizeram isso em nome do seu livro sagrado e do seu deus triúnico. Os islamitas, desconhecendo o avanço de certos países em termos de direitos humanos, continuam a fazer o mesmo na ilusão de construírem um Estado único mundial fiel ao Profeta, como os católicos conseguiram construir na Idade Média.

O vírus enche as igrejas

Nas épocas de grande epidemias, de novos vírus e de doenças sem cura, os humanos retornam aos seus deuses, se arrependem de seus pecados, se autoflagelam e pedem a compaixão divina. Um exercício vão enquanto não surge a milagrosa vacina ou o remédio miraculoso, feitos em laboratórios de mortais cientistas e não caídos do céu.

Mas as igrejas vão ficando cheias, padres, pastores, rabinos, imãs, pais de santo se esmeram em suas explicações, para evitar a idéia de que afinal os deuses estão sendo maldosos e não merecem nem cultos e nem adorações. Incapazes diante desse novo mistério, de um vírus invisível perigoso e assassino, a solução religiosa proposta pelo clero é a da submissão aos deuses bondosos, mas furiosos diante de tantos pecados e pecadores.

Outros se lembram de tétricas profecias de fim do mundo, nas quais o surgimento de um novo mundo justo, igualitário e justo precisa ser precedido de um período de destruição total do velho mundo, anunciado por pragas, pestes e guerras.

O bíblico livro do Apocalipse num de seus catastróficos capítulos fala num Ser supremo decidido a destruir tudo para refazer uma nova Terra e novos homens, esquecendo-se de que ao admitir ter criado um mundo defeituoso deixou de ser o pretendido Deus perfeito e absoluto.
Máquinas defeituosas, cheias de erros, os homens conseguem sobreviver aos apocalipses, engendrados por fomes, secas, pestes, guerras, armas nucleares, aquecimento da Terra, destruição da natureza. queimadas continentais e envenenamentos alimentares. Mas continuarão refazendo seus mesmos erros. Olhando fotos e vídeos da campanha do candidato Trump nos Estados Unidos, aclamado como um deus, não se pode evitar uma comparação com a campanha nazista de Hitler. Fazer os EUA mais fortes de novo ou colocar a Alemanha acima de todos os países, é a mesma coisa. E o grotesco é o vermelho dos países comunistas ter sido a cor usada pela campanha de Trump.

Esperança e um outro Big Bang

O medo da morte dos habitantes de um pequeno planeta, girando em torno de uma bola de fogo há milhões de anos, até acabar o combustível ou tudo ser tragado por um buraco negro, inclusive seus deuses, suas crenças e superstições. A esperança do que? De que os homens conseguirão sair dessa bola redonda e ir para outros sistemas solares, transportando consigo suas imperfeições, que são as mesmas da Natureza, e criando novas civilizações até… até acontecer um novo Big Bang com o retorno ao nada inicial?

André Malraux deixou uma frase, “o próximo século será religioso (espiritual) ou não será…” Por enquanto, o século avança. A maioria dos humanos está empenhada na luta contra um vírus destruidor, uma minoria aproveita essa mobilização para desfechar atentados isolados, em nome de um deus guerreiro venerado em alguns países.

Eu diria que nosso século, antes de chegar esse vírus, era materialista, não no mau sentido, mas no da utilização material de nossa capacitação humana para evoluir e fruir da vida. O medo da morte salvará igrejas e religiões de caírem no desuso e entrarem para os museus. “Penso que a tarefa do próximo século, perante a mais terrível ameaça que a Humanidade conheceu, vai ser a de reintegrar os deuses” dizia Malraux à revista francesa L´Express em 1955 — no artigo A Propósito do século XXI.

Nisso, Malraux sem ser profeta, acertou, retorno da religião mas sem espiritualidade, e sim crendices e beatices. Velas, incensos, rosários, bíblias, romarias, cultos e pregações, batizados, missas, comunhões, kipas, véus, virgindade, casamentos voltarão à moda. Um século de retrocesso? A recente frente de alguns países em Genebra contra o aborto, poderia ser o sinal de uma grande marcha com deus e a família, numa reedição internacional do levante das famílias paulistanas da época em apoio ao Golpe de 64. Fim da laicidade e retorno à censura.
Será? Trump ou Biden? Bolsonaro ou impeachment? Democracia ou ditadura? Céu ou inferno? Deus ou o diabo? Ou simplesmente o Nada!

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.