Sexta-feira, 18 de julho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1347

Cegueira da mídia: Irã, Israel e o espectro do terrorismo

(Foto: Lara JamesonPexels)

“A guerra em andamento é contra o terrorismo. Mas o que se deve entender com tal termo? Não há um esforço para esclarecê-lo. Quanto mais fácil a acusação tanto mais fácil para validade se impor de modo unilateral e tanto mais inapelável se torna a sentença pronunciada pelo mais forte.”

Domenico Losurdo, 2010

No UOL News do dia 23 de junho, Fabiola Cidral lançou uma série de questionamentos sobre o cenário internacional aos presentes na bancada. O programa acontecia dois dias após os bombardeios estadunidenses em três instalações nucleares iranianas. Assim, era indagado: “qual o real perigo do Irã para o mundo” – “o que esperar de reação do Irã?”. A ancora demonstrou-se preocupada com as possíveis formas de revide da nação persa – chegou a falar em um “novo 11 setembro”. Mas, ao mesmo tempo em que se atentavam às possíveis respostas iranianas, os jornalistas também comentavam sobre a intenção de Donald Trump de intervir em uma nação soberana e golpear o seu governo: “o presidente falou abertamente em derrubar o regime iraniano”.

Com a palavra, o eloquente Jamil Chade sustentou o temor de Cidral: se “o regime” sentir muito ameaçado, poderá “recorrer a métodos menos convencionais, mais dramáticos, por exemplo, ataques terroristas aqui nos EUA. Nova Iorque e outras cidades americanas podem ser eventualmente alvos de atentados terroristas”. Recebe o apoio de sua colega Beatriz Bulla: “as táticas terroristas… essa é uma prática possível por parte do Irã de ser utilizada agora, e o mundo sabe disso”.

Todos esses jornalistas já fizeram críticas às políticas de Trump e Netanyahu. Chade, por exemplo, é um inegável crítico do que ocorre em Gaza – o genocídio. No entanto, enquanto esses três profissionais demonstram-se receosos de um possível terror vindo do Irã, se calam perante o terrorismo estadunidense e israelense diante dos seus olhos. Teerã e outras cidades iranianas passaram mais de uma semana sendo bombardeadas por Israel, e depois os EUA entram em cena, mas não encontramos nas reflexões desses analistas, tão críticos, uma condenação.

Durante as últimas semanas, a própria imprensa tem reportado que “Palestinos mortos sob tiros de Israel ao buscar comida se tornam rotina em Gaza”, ou que “Ataque de Israel mata 59 palestinos que esperavam por comida em Gaza”, ou mesmo: “Israel ataca TV estatal do Irã durante transmissão ao vivo”. Nos encontramos, então, diante de um impasse: o que caracterizaria a categoria terrorismo não são mais as ações, mas quem as pratica. O terror é apenas denunciado se, porventura, for prático por um grupo ou nação islâmica.

Se não temos êxito em encontrar uma denúncia das práticas terroristas por parte de Israel, verificamos inquietação com possíveis “táticas terroristas do Irã”, algo semelhante ocorre nas análises sobre “a derrubada do regime”. Os jornalistas reconhecem que as intervenções anteriores dos EUA no Oriente Médio tiveram resultados catastróficos. Chade lembrou do Iraque, Afeganistão e Líbia. Diante do intento pronunciado por Trump e Netanyahu de “mudar o regime dos aiatolás”, o jornalista questiona com um tom crítico: “a questão é: os EUA e o governo de Israel têm um plano para o dia seguinte à queda do regime iraniano ou vai mais um desastre como nós já vimos”. Há uma preocupação com o destino da nação iraniana: “Qual vai ser o dia seguinte do regime no Irã?”.

Precisamos nos perguntar: por que Israel e EUA têm de ter “plano” para um Estado soberano? O que nós vemos aqui é uma omissão explícita em denunciar agressões e violações. Não é necessário muito esforço para imaginarmos que o tom seria outro se, por exemplo, Putin se dirigisse dessa forma em relação à Ucrânia; se o alvo dos ataques e “planos” para “mudança” de “regime” fosse uma nação europeia ou aliada do Ocidente; ou se os falastrões fossem Maduro, Kim Jong-un, Xi Jinping ou qualquer outro que não fizesse parte do clube ocidental.

O que se vê é uma banalização da intervenção israelense e norte-americana numa nação soberana. É trivial o fato de dois líderes estarem planejando golpear o chefe de um país. Lê-se em diversos jornais: “Netanyahu não exclui possibilidade de matar líder supremo do Irã”. Na própria UOL: “Trump deu um ultimato a Khamenei. Trump afirmou que não vão matá-lo ‘por enquanto’, mas que a paciência está se esgotando”. Mas a preocupação do experiente jornalista está no “dia seguinte”; em Nova Iorque e em outras cidades norte-americanas sofrerem um eventual – sequer pronunciado – atentado. Mesmo fazendo críticas à política dos EUA no Oriente Médio e elencando países aniquilados e chefes golpeados, a preocupação se concentra em manter uma distância moral dos agredidos: “Nada disso significa obviamente que eu estou aqui defendendo ditadores (…). Ninguém aqui está defendendo o regime teocrático”.

As críticas à forma de governo e à organização do Estado se concentra exclusivamente no Irã. A caracterização agressiva, assassina e imperialista dos Estados norte-americano e israelense recebe uma aceitação formidável. O problema não é a intervenção na “República Islâmica”, mas “o dia seguinte”. O tom de criticidade e denúncia só dá o ar da graça no que se refere à gestão interna iraniana. Quanto à política externa dos países agressores, o problema não a intervenção, mas o modo como será realizada e os seus resultados.

Os possíveis caminhos para intervir no Irã são traçados, com notável indiferença, por Mariana Sanches, que faz uma síntese do que seria o pensamento de Javed Ali, ex-agente da CIA. Diz a Jornalista: “Se quisesse realmente ir em frente com a ideia de derrubada da atual República Islâmica, Trump precisaria estar disposto a enviar milhares de soldados para uma invasão por terra”. Mais: “Se o aiatolá fosse morto em um bombardeio aéreo, como Trump ameaçou fazer, o regime iraniano provavelmente não colapsaria. Nesse caso, a única maneira de derrubar os aiatolás seria repetindo a fórmula usada no Afeganistão e no Iraque”.

Perante as ações imperialistas sobre o Irã, jornalistas mostram-se apreensivos com o formato da resposta iraniana: preocupam-se com possíveis “ataques terroristas” nos EUA e com norte-americanos em outras partes do mundo. Esses indivíduos não enxergam – ou fecham os olhos para não ver – o terror diante de si. O genocídio em Gaza, a elaboração do assassinato de Khamenei e os bombardeios em Teerã e em outras cidades iranianas e do Oriente Médio são uma forte e eloquente expressão do terrorismo. Mas só há vítimas em Israel. Do lado estadunidense, ainda não há, mas já devemos nos preocupar: fiquemos atentos. No Irã, não há nada para se lamentar ou preocupar. Aliás, a população iraniana só ganha vida – e uma vida oprimida – quando queremos criticar “o regime teocrático e ditatorial”. Cria-se uma caricatura: trata-se do “regime dos aiatolás”, nascido da “revolução islâmica”. É um governo eminentemente opressor, sobretudo para as mulheres. Khamenei já ocupa o poder há várias décadas e outros papos furados.

Para se comentar sobre os ataques sofridos pelo Irã precisam recorrer à Revolução de 1979 e da suposta configuração governamental que nasce a partir desse evento. Mas os amantes da História ignoram o imperialismo inglês que sugava o lucro do petróleo e o sangue dos trabalhadores da refinaria de Abadan, por exemplo, antes da revolução. Ignoram a “Operação Ajax”, de 1953, quando a CIA, sob a administração de Eisenhower, tramou o golpe que derrubou o popular primeiro-ministro Mossadegh e pavimentou a estrada para a ditadura do Xá Reza Pahlevi.

Trata-se de um movimento presente desde o início do conflito: “Israel voltou a bombardear o Irã”, escreveu a Folha de S. Paulo, acrescentando que os ataques israelenses ocorreram “depois que negociações nucleares entre Teerã e os EUA não apresentaram progresso”. O texto nada fala sobre a situação do país e do povo atingido, mas prossegue expondo a narrativa do agressor: “Tel Aviv já havia dito que não permitiria que o país persa, seu inimigo histórico, adquirisse uma bomba atômica, algo que o Irã parece próximo de ser capaz de fazer”.  Vê-se algo semelhante n’O Globo: “Israel lança ‘ataques preventivos’ contra o Irã”. Em postagens seguintes, ambos os jornais ignoram os civis impactados e os danos sofridos pela nação agredida: “Petróleo dispara e dólar ganha força após Israel bombardear o Irã” – é o que escreve a Folha no mesmo dia. Mais horripilante foi o editorial do Estadão: “Israel exerce o direito de se defender. O programa nuclear iraniano é uma ameaça existencial a Israel e, por isso, é um alvo legítimo. Ademais, interromper a escalada nuclear do Irã será um alívio para o mundo”.

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Osnan Silva de Souza é
Mestre e Doutorando em História pela Unicamp.