Sexta-feira, 18 de julho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1347

Um país refém: barganhas no Congresso, privilégios blindados e jornalismo apático

(Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

O Brasil vive uma crise política que vai além de partidos ou governos: trata-se de um modelo de poder corroído por negociatas. A decisão recente do Congresso de derrubar vetos que impediriam aumentos na conta de luz e no fundo partidário é mais um episódio de um sistema que já não responde ao interesse público. Em vez de priorizar projetos de interesse direto da população, como a reforma tributária, a reforma política ou o fortalecimento de políticas sociais, o Legislativo optou por preservar privilégios, aumentar seus próprios recursos e neutralizar investigações incômodas. É a repetição de um enredo que expõe a falência de um modelo político sustentado por chantagens institucionais.

O Congresso derrubou o veto presidencial ao aumento do fundo partidário, o que deve gerar um acréscimo de R$ 164,8 milhões no financiamento público dos partidos políticos. No mesmo movimento, reverteu outro veto que, segundo a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, poderá provocar um impacto de até R$ 197 bilhões nas contas de luz da população brasileira. Trata-se de decisões que impõem custos diretos para o cidadão, em benefício de estruturas partidárias e grupos econômicos. É a institucionalização do contrassenso: cobra-se do Executivo responsabilidade fiscal, enquanto o Legislativo amplia seus próprios gastos. Não suficiente, uma nova proposta do presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), pretende permitir que parlamentares acumulem aposentadoria com o salário do mandato eletivo, hoje vedado pela legislação.

Mais uma vez, o governo se vê refém de um sistema que, ao longo das últimas décadas, tornou a Presidência da República dependente de uma base fisiológica. A cada nova negociação, o que está em jogo não é o interesse público, mas a manutenção de uma lógica perversa em que os votos no plenário têm preço e não princípios.

Como se não bastasse, o Congresso ainda sepultou a CPI das apostas esportivas. Após quatro meses de trabalho, com indícios de movimentações bilionárias e uso de recursos do Bolsa Família para apostas online, o relatório final foi rejeitado por 4 votos a 3. O resultado? Nenhum indiciamento, nenhuma responsabilização, nenhum avanço. Uma CPI de interesse direto da sociedade foi arquivada por decisão política. A omissão legislativa, nesse caso, beneficia interesses que se escondem nas brechas da regulação e da fiscalização, colocando em xeque a própria função fiscalizadora do Parlamento. Um problema social, econômico e ético foi simplesmente varrido para debaixo do tapete legislativo.

Diante desse cenário, é impossível ignorar o papel da grande imprensa. Com raras exceções, a cobertura midiática tem tratado episódios como esses de forma episódica e superficial. A derrubada de vetos, o avanço de pautas corporativistas e o esvaziamento de CPIs são noticiados como fatos isolados, sem o devido contexto histórico, político e estrutural. Pouco se discute sobre a engrenagem de barganhas que transforma o orçamento público em moeda de troca. Não há aprofundamento sobre o impacto direto dessas decisões na vida dos cidadãos, especialmente os mais vulneráveis.

Essa cobertura política transforma o conflito entre Executivo e Legislativo em um espetáculo, reduzindo o debate público a embates táticos, disputas de poder e declarações de bastidores. Pouco se discute o que está efetivamente em jogo para a sociedade. Cobrir política se reduz, muitas vezes, a um expediente burocrático: “Câmara vota”, “Congresso derruba veto”, “relatório é rejeitado”. Esse modo automático desumaniza e invisibiliza o debate público sobre os impactos das decisões políticas, anestesiando a audiência. Sem aprofundamento ou constância do debate, o público é exposto aos efeitos mais visíveis da crise, mas permanece alheio às causas que a alimentam.

Essa apatia jornalística acaba por normalizar a chantagem institucional. Se a justificativa é pela busca por uma imparcialidade formal, muitas vezes traduzida em equilibrar vozes sem distinguir relevância ou veracidade, essa postura leva à equiparação entre o que representa o interesse coletivo e os mecanismos de manutenção de poder do sistema político. Nesse modelo, o jornalismo não toma partido da sociedade e acaba legitimando as distorções que deveria denunciar.

O jornalismo que se limita a relatar o factual sem problematizar o sistema que o produz abdica de sua função social mais essencial: garantir à sociedade informação qualificada, contextualizada e crítica. A suposta neutralidade diante de decisões tão injustas e viciadas acaba por legitimar silenciosamente esse sistema.

O governo federal tem sua cota de responsabilidade. A dificuldade em construir uma base sólida, a hesitação diante de pautas impopulares e a recusa em confrontar o Congresso de forma mais assertiva contribuem para o agravamento da crise. Mas não se trata apenas de erros do Executivo: o problema é estrutural. Por isso se faz necessário que a imprensa vá além da crítica pontual. A engrenagem que sabota qualquer tentativa de governabilidade está consolidada no Congresso, em sua lógica de autobenefício e obstrução.

A pergunta que resta, portanto, é incômoda, mas necessária: a quem interessa um jornalismo tão “isento” diante de uma política tão indecente? Se não houver uma mudança na forma como a imprensa cobre o poder, corremos o risco de naturalizar um modelo que exclui, distorce e oprime, mantendo o país refém de uma elite política blindada por seus próprios privilégios.

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Vitor Belém é jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor da Universidade Federal de Sergipe. Foi repórter e produtor de TV e atua como pesquisador na área de jornalismo audiovisual. Atualmente é Diretor Científico da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor) e lidera o grupo de pesquisa Jornau.