Sábado, 8 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

Francisco José Karam e a ética jornalística

(Foto: CoWomen/Pexels)

A trajetória acadêmica de um dos maiores pesquisadores da ética jornalística no país está sendo reconhecida novamente. Desta vez, Francisco José Castilhos Karam recebe o Prêmio Adelmo Genro Filho de Pesquisa na categoria sênior, concedido pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR). A entidade anunciou recentemente a homenagem que costuma destacar aqueles que contribuíram de forma decisiva para a consolidação do jornalismo como campo científico. Ocasiões como esta convidam a celebrar a maturidade intelectual, os gestos exemplares e o privilégio de se conviver com pessoas tão especiais como Karam.

Seu trabalho como pensador do jornalismo foi essencial para a cristalização de alguns conceitos que ajudam a compreender a conduta e o trabalho de repórteres e editores. Dois de seus livros são autênticos clássicos nas universidades, obras onipresentes em qualquer bibliografia nas disciplinas de ética profissional, adotadas há décadas nos cursos de norte a sul do país.

(Foto: Rogério Christofoletti/Arquivo Pessoal)

Lançado em 1997 pela Summus, “Jornalismo, Ética e Liberdade” mostra a sagacidade do olhar de Karam e sua coragem intelectual. Versão em livro da dissertação de mestrado orientada por Cremilda Medina na USP, a obra desafia o senso comum na categoria. Dez anos antes, o mítico Cláudio Abramo defendeu em “A regra do jogo” (Cia das Letras, 1988) que jornalistas deveriam se guiar por uma ética comum, genérica, como a das demais pessoas. A ética do jornalista era igual à ética do marceneiro, sentenciou. De fácil apelo, o argumento foi rapidamente acolhido pela classe, mas elegantemente questionado por Karam. Para ele, Abramo tinha razão no geral, mas não no particular. Jornalistas também são pessoas comuns e agem de acordo com princípios gerais como justiça, amor e solidariedade. Mas no seu dia a dia, esses profissionais também mobilizam valores que são próprios da sua atividade de trabalho, como o apego irrenunciável à verdade, o senso crítico e a liberdade de pensamento. Segundo Karam, o acionamento desses valores faz vigorar uma ética específica para os jornalistas, ideia que contraria Abramo e que permite avançar numa teoria própria da prática nas redações.

Esta contribuição de Karam será decisiva nas décadas seguintes para avançarmos na reflexão sobre a natureza e o papel do jornalismo no contexto brasileiro. Não é à toa que temas como o peso da política e da economia nas decisões de editores, a concentração de poder na mídia e os desafios à democracia estarão presentes no seu livro de 2004. Versão da tese de doutorado orientada por Norval Baitello Júnior na PUC-SP, “Ética Jornalística e o Interesse Público” (também pela Summus) vai – de forma quase premonitória – alertar para riscos à existência do jornalismo e a necessidade de sua defesa pela categoria profissional e pela própria sociedade.

Os dois livros seriam suficientes para reservar a Karam um espaço de destaque no pensamento nacional sobre o jornalismo. Mas suas contribuições se espalham para outras direções. Como jornalista, teve destacada atuação no Rio Grande do Sul, seu estado natal, passando por redações da Rádio Guaíba e Correio do Povo, por exemplo. Em Santa Catarina, colaborou como repórter para as revistas Veja, Isto É e Nova Escola. No final da década de 1980, foi comentarista e correspondente da Rádio Musical Nacional, de Cuba. Nas últimas quatro décadas, sua preocupação com a ética jornalística não foi só teórica. Ele foi membro da Comissão Nacional de Ética da Fenaj e atuou nos sindicatos gaúcho e catarinense em campanhas de valorização da profissão e defesa do jornalismo.

Na academia, Karam foi professor na Universidade Federal de Santa Catarina por 32 anos. Entrou por concurso em 1984 e só se aposentou em 2016. Nesse período, ajudou a formar gerações de jornalistas e foi um dos fundadores dos cursos de mestrado e doutorado em jornalismo, além de ajudar a criar o Observatório da Ética Jornalística (objETHOS) em 2009. Ele participou de programas profissionais em Cuba, Espanha, Estados Unidos e Argentina, onde fez um pós-doutorado na Universidade Nacional de Quilmes.

A força e a permanência de suas ideias influenciam pesquisadores há, pelo menos, um quarto de século. Não tive aulas com Karam, mas aprendi com ele que a ética jornalística é um vasto e necessário campo de estudos e pesquisas. Desde então dividimos a sala de aula, um escritório minúsculo, muitos bons momentos e algumas outras oportunidades de vida.

Em 2016, ele se tornou professor titular na UFSC e anunciou a aposentadoria. Quiseram saber o motivo, e ele disse que já estava cansado. Conversa! Passados quase dez anos, está em boa forma, acompanhando de perto a única filha, prestes a entrar na universidade. E se depender da genética, Karam não tem com o que se preocupar. O pai viveu até os 106 anos, ouvindo tango, mateando, escrevendo crônicas e livros…

A entrega do Prêmio Adelmo Genro Filho a Francisco José Karam será em novembro, durante o congresso da SBPJOR em Ponta Grossa (PR). É um reconhecimento dos seus feitos acadêmicos, mas os mais próximos o respeitam também por sua atitude pessoal. Seu estilo de vida simples e os gestos modestos fazem dele um intelectual cada vez mais raro porque é discreto e porque é desprovido de arrogância. A voz de trovão combina com a fala sem pressa, o que lhe dá uma inequívoca aura de sabedoria. Karam é o que Samuel Pantoja Lima – nosso amigo em comum – costuma chamar de mestre. Alguém que funciona ao mesmo tempo como bússola moral e como farol epistemológico. Do tipo que sorri com os olhos, Karam é um mestre do caráter e do compromisso com o ofício que escolheu.

O prêmio reconhece sua competência e sua honestidade. Como ele sempre ensinou, técnica e ética se fundem e se confundem nessa profissão. Nada mais coerente.

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Rogério Christofoletti é Pesquisador do CNPq e professor de jornalismo na UFSC, onde lidera o Qual-i (Laboratório da Qualidade Informativa).