Thursday, 05 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

A.D. não pirou! Ah, bom!

DOSSIÊ PERFÍDIA

Deonísio da Silva (*)

De Agrippino Grieco, com a verve e a maledicência que lhe eram peculiares: "Na praia das Virtudes a água é muito suja".

Lembrei-me do dito entre jocoso e moral ao saber que Alberto Dines tinha sido denunciado como censor de seu próprio programa de televisão, à semelhança de um masoquista profissional. Leitor e admirador da forma corajosa com que sempre defendeu seu ofício, ainda que correndo o risco de cometer alguma irresponsabilidade em artigo tão ligeiro, tenho o propósito nessas linhas de me solidarizar com ele no engano que resultou no perigo de uma danosa calúnia, que consistiria em negar todo o passado de um dos melhores guerreiros de nossa inteligência, imputando-lhe a pecha de censor. Justo o Alberto Dines, tenham a santa paciência!

Mas a calúnia é arma das mais perigosas. São Bernardo nos deu uma sinistra imagem deste recurso de covardes. Escreveu que caluniar alguém equivale a depenar uma galinha no alto de uma torre. O caluniado teria que juntar todas as penas. Algumas jamais serão recuperadas.

Lembrei-me também do Barão de Itararé: "De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada". E de Millôr Fernandes: "Não se bate num homem caído, a menos que se tenha certeza de que ele não possa se levantar". Estou citando de cor, sem poder conferir com os amigos livros que deixei em casa, pois estou em férias pelo Brasil meridional.

Por que, então, corro o risco de ser irresponsável e escrevo essas linhas sem poder dar ao assunto a atenção que faz por merecer? Ainda que tenha dedicado ao tema da censura três livros e duas teses – uma delas defendida na USP, em São Paulo; outra, na UFRGS, em Porto Alegre – nessa minha vida anfíbia de escritor e professor universitário, pertenço a uma faixa "otária" que sofreu nos próprios textos os efeitos de diversas censuras. E, dada a minha natureza – o sapo pula, o passarinho canta, enfim as gramáticas registram as vozes de 114 aves e animais, embora eles sejam em maior número, é claro, e talvez os gramáticos queiram nos dizer implicitamente que são mais os que calam dos que os que se expressam, ainda que o silêncio seja expressivo – prefiro pecar por falar do que por calar. Em minha adolescência profunda, sempre caiu-me fundo na alma a advertência de que poderíamos pecar por atos, pensamentos, palavras e omissões. Pois não quero pecar por omissão! Em conversa clara, condição do trato justo, reitero: sou contra qualquer tipo de censura, norma e não exceção, infelizmente, ao longo de toda a civilização ocidental.

Onde, a censura?

É tema vasto e cheio de sutis complexidades. Enseja confusões já praticadas por gente ilustre. Originalmente, a censura consistia em atividade do censor romano, encarregado de realizar o censo da população, policiando também seus usos e costumes. Consolidou-se, porém, em nossa língua como sinônimo de repreensão, proibição. São Paulo (10-67) manifestou-se contra a censura numa de suas catorze epístolas: "Não extinguais o espírito, não desprezeis as profecias, mas examinai tudo, retendo o que é bom" (I Tess 5, 19-21).

Vocês já viram que, caso este artigo chova no úmido, sem nada acrescentar, sobram boas citações, não é mesmo? Voltemos, porém, ao tema. Foi o final de um semestre escolar serôdio na universidade onde sou professor – a Federal de São Carlos – que me impediu de escrever antes e a propósito da decisão judicial que impunha restrições à novela Laços de Família, de Manoel Carlos. Tanto naquele caso, como no do livro-pivô do que agora tentou-se imputar a Alberto Dines, por razões diferentes, o que houve não foi censura. No primeiro caso, o recurso ao Judiciário. No segundo, uma decisão editorial amparada em razões contrárias ao veto, ao apagamento, ao ocultamento de que vinha sendo vítima o livro Memória das Trevas, de João Carlos Teixeira Gomes. Com efeito, fora exatamente Dines quem denunciara no Observatório da Imprensa um complô para silenciar a repercussão do livro!

Em resumo, confundem-se muitas coisas com censura. E pode-se atribuir a razões editoriais os motivos que levam certos editores a pautar determinados autores ou livros, e não pautar outros. É preciso, porém, discernir as situações e contar o caso como o caso foi, como dizia Gregório Bezerra. Acho que os leitores têm motivos de sobra para avaliar que Alberto Dines não fez censura alguma, entre os quais o passado do jornalista e os fatos já esclarecidos. Quando autores relevantes e livros pertinentes são omitidos sistematicamente pelos mesmos jornais e revistas, me desculpem seus editores, mas o leitor tem direito a interpretar tais omissões sistemáticas, tendo como alvos sempre os mesmos autores ou temas, ou livros. E tem também o direito de comparar com aqueles que os substituíram, avaliando as relevâncias. Ao contrário do que pensam alguns espíritos rasteiros, nem todos os leitores podem ser enganados sempre. Outro dia, um brazilianist, surpreso, me dizia o seguinte: a julgar pela pesquisa que empreendeu nos arquivos da revista Veja e da Folha de S.Paulo, a literatura brasileira estava em crise. E ele estava comprovando o contrário, tanto em outros órgãos de nossa imprensa, quanto nos registros da Câmara Brasileira do Livro. Com efeito, nosso mercado editorial, em saúde invejável, já ultrapassou o do México e o do Canadá, e é o segundo das Américas, só perdendo para o dos Estados Unidos. Ele estava achando estranho – e com razão – que somente a literatura tivesse parado no Modernismo e no Romance de 30.

Talvez seja o caso de procurar censura e censores em outros lugares, não é mesmo?

(*) Escritor e professor da UFSCar e doutor em
Letras pela USP. Assina colunas semanais na revista
Caras e no sítio <www.eptv.com.br>, e mensal
na revista Época.


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