Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

A mídia, o lobo e o cordeiro

GUERRA ANUNCIADA

Muniz Sodré (*)

A simplicidade das velhas fábulas pode ser muito útil na interpretação de fatos que vêm ocupando e deverão ocupar ainda mais as páginas dos jornais de todo o mundo. Uma delas vem-nos da adolescência, dos tempos em que ainda era possível ganhar algum extra, à margem do parco salário de repórter de jornal de província, dando aulas de latim a ginasianos. É fábula de Fedro: "Ad rivum eumdem lupus et agnus venerant siti compulsi; lupus superior stabat, longeque inferior agnus…"

Alguém há de se lembrar: o lobo e o cordeiro tinham chegado a um mesmo rio, compelidos pela sede; o lobo estava mais acima, e o cordeiro abaixo… Sabe-se, porém, o que acontece. O lobo acusa o cordeiro de lhe sujar a água, e de nada adiantam as alegações ovinas de que isto era logicamente impossível.

A fábula aplica-se como uma luva ao que nos contam os jornais sobre a contenda entre George W. Bush e Sadam Hussein. Não que este último seja exatamente um cordeiro ? basta olhar a cara e pesar-lhe as atitudes que sobrevirá a imagem de qualquer outro bicho, menos a de um exemplar da espécie dos ovinos. Ainda outro dia deparamos num dime book, um desses livrinhos policiais de bolso, com o justo trocadilho "Sodamn Insane" (algo como "maluco muito desgraçado"), dos tempos da Guerra do Golfo, para designá-lo.

Diante do complexo industrial-militar americano, entretanto, o povo iraquiano assemelha-se ao cordeiro da fábula. Por mais que seus dirigentes concordem com as inspeções da ONU e até mesmo sugiram que agentes da CIA investiguem as instalações onde estariam as famosas armas secretas, a guerra parece inevitável. Pentágono, poder econômico e mais extremada direita republicana no Congresso americano ? a trilogia do complexo industrial-militar ? constituem-se na sinistra metáfora do lobo à beira do rio. Só que, no real-histórico, em vez de água está em jogo o mar oculto de petróleo e gás.

Ficções ideológicas

Com raríssimas exceções (artigos ocasionais de revistas, retrancas esporádicas em notícias de jornais), a nossa imprensa costuma omitir informação sobre as causas reais do conflito. A impressão que fica para o leitor comum parece provir da mesma forma mental que gerou a tese do "choque de civilizações" de Samuel Huntington. É conhecida a hipótese:


"Nesse novo mundo, as elementares fontes de conflito não serão em primeira linha de caráter ideológico ou econômico. Futuramente, os grandes conflitos que prometem cunhar e dividir a Humanidade serão de ordem cultural. Os Estados nacionais permanecerão como os mais poderosos protagonistas no palco da política mundial. Mas, entre nações e grupos de diferentes culturas é que os grandes conflitos de amplitude política mundial haverão de desencadear. O choque das culturas como fator determinante da ordem política. As aversões culturais serão as frentes de combate do porvir."


A tese de Huntington, ideólogo caro aos "falcões" republicanos (tão fundamentalistas quanto suas contrapartidas islâmicas) está academicamente desmoralizada. Sobre ela afirma Edward Said, intelectual internacionalmente reconhecido:


"A tese da ?guerra das culturas? é uma frase que não se distingue do slogan gerado pela ?guerra dos mundos? ? ela fomenta uma presunção de comportamento defensivo e solapa qualquer tipo de conscientização crítica das desconcertantes conotações de nossa época."


No entanto, são os argumentos culturalistas, reforçadores do vago conceito de "identidade civilizacional" que predominam nas notícias jornalísticas. Do território palestino ao iraquiano, o "Outro" é conotado por textos e imagens como derivações semióticas do Mal, oposto ao Bem ocidental, do mesmo modo como os fundamentalistas islâmico conotam os Estados Unidos como o Grande Satã. Difunde-se a crença em identidades radicalmente diversas. Tanto que as notícias recentes de que Bush autorizou a CIA a assassinar inimigos dos Estados Unidos em qualquer parte do planeta, ou então de que pretende centralizar o controle da informação pela internet, não afetam as identificações de sua suposta "identidade civilizacional" com o Bem. O máximo de crítica a que parece chegar o senso comum é o riso com piadas na internet.

A consciência crítica aumenta, como já salientamos, em artigos esparsos, o que deixa transparecer uma distância editorial (mais do que ideológica) entre noticiário e colunismo. Já em novembro de 2001, em seu artigo semanal para a revista Veja ["Iguais no pecado da retórica", edição 1,728, 28/11/01, pág. 170], o colunista Roberto Pompeu de Toledo investia contra o que se chamava de "linguagem do Bem e do Mal", definindo-a como uma apropriação do discurso religioso pelo político:


"Invocam-se o sagrado, o absoluto, o transcendente, quando, na verdade, o que se defende são interesses. E isso não é tudo. Os Estados Unidos, ao se arvorarem em arautos do Bem, no presente caso, igualam-se ao inimigo."


Com esse pano de fundo, provavelmente acontecerá a guerra ? melhor, o ataque aos iraquianos, aos civis iraquianos que, como já está demonstrado, são as maiores vítimas dos bombardeiros "cirúrgicos". Guerra mesmo, no sentido tradicional, não há, conforme tem mostrado Jean Baudrillard com seus textos sobre o consumo do evento pela representação, pela imagem. Identidades radicalmente separadas, também não há: o que consumimos são ficções ideológicas reproduzidas pela mídia. De real mesmo só o antagonismo dentro de um mesmo processo de globalização econômica do mundo e a hegemonia do Lobo, que não é aliado de ninguém.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ