Friday, 17 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Anúncio enganoso e a cartilha afoita

TV DIGITAL

Nelson Hoineff (*)

Na semana passada, algumas revistas, entre elas a Veja, publicaram um belo anúncio de página dupla da Philco anunciando uma televisão de 32 polegadas "preparada para exibir imagens de alta-definição (HDTV) e TV digital".

Mais abaixo, em letras minúsculas para as quais normalmente remetem os asteristicos dos anúncios que preparam uma empulhação aberta ao consumidor, com o auxílio de uma lupa é possível ler: "O aparelho não faz sintonia de programação de sinal de TV digital: é necessária a utilização de um decodificador (set-top box), que não é fornecido com o aparelho".

Pior a emenda que o soneto. Como até mesmo o padrão digital a ser utilizado no Brasil ainda está por ser definido, não há possibilidade de compra desse decodificador e muito menos da existência de um aparelho de TV capaz de adivinhar para onde vai se inclinar a Anatel nos próximos meses. De parecido com a TV digital, a única coisa que o televisor de fato oferece é o redimensionamento da imagem 3×4 do padrão analógico para a 6×9 que será o formato padrão das transmissões digitais ? o que já é comum hoje no mundo inteiro. Nada mais do que isso.

O importante do anúncio, no entanto, não é a prática da propaganda enganosa, que em si é um problema do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). Relevante é o fato de a indústria de eletroeletrônicos estar procurando convencer o consumidor que já lhe está ofertando equipamentos de televisão digital ? e, conseqüentemente, que a era da TV digital no Brasil já se tornou uma situação de fato.

Ativos em falta

Não é a indústria de eletroeletrônicos a única a fazer ações dessa natureza sobre o consumidor. O Comitê Pela Democratização da Comunicação do Rio Grande do Sul, por exemplo, acaba de publicar uma cartilha denominada TV Digital e a Democratização da Comunicação ? o que a sociedade tem a ver com isso?. Nela, o Comitê, que é parte do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, tenta mostrar ao leitor em que consiste a TV digital, o que está em disputa e como isso afeta a vida do cidadão comum. Aproveita para fazer um apanhado da situação atual da propriedade dos meios de comunicação eletrônica no Brasil para concluir que seis redes controlam 667 veículos em 87% dos domicílios brasileiros.

A análise que faz a seguir é quase tão rigorosa quanto o anúncio do aparelho de televisão da Philco ? mas o que os fatos começam a mostrar é que um e outro correm o risco de caducar antes que as plataformas de TV digital sejam de fato implantadas no país.

O presidente da Anatel, Luiz Guilherme Schimura, deixou isso claro na terça-feira (5/11), falando a um grupo de empresários do setor, em São Paulo. Ele repetiu o que o ministro das Comunicações Juarez Quadros tem dito insistentemente: o Brasil não tem pressa para definir o seu padrão. Os proprietários das redes de televisão costumavam ser levados à loucura cada vez que tal coisa acontecia. Mas Schimura garantiu na terça-feira que "o mundo não está preocupado com isso", amparado pela evidência que, ao contrário do que se esperava, nem os EUA nem a Europa atingiram em 2002 a marca de 50% de operação digital.

Depois de lembrar que nenhuma emissora de TV no Brasil está neste momento com dinheiro (ou crédito) para se reequipar, o presidente da Anatel garantiu que a escolha do padrão a ser utilizado continuará lenta, acompanhando o desenvolvimento dos sistemas existentes, e que uma definição deverá sair, "na melhor das hipóteses", no final de 2003.

É um atraso de praticamente três anos em relação ao que se esperava, mas não se pode deixar de reconhecer que a Anatel está certa ao levar em consideração a lentidão com que as plataformas digitais se cristalizam no resto do mundo ? e mais certa ainda em assimilar o fato de que, depois de criatividade e inteligência, dinheiro é o que mais está em falta nas redes de televisão brasileiras.

Para o sucessor

Esta não será a primeira vez nem a última que os avanços tecnológicos chegarão muito à frente da capacidade econômica de utilizá-los. Não se deve esquecer, aliás, que a própria TV de alta definição é muito anterior ao desenvolvimento das plataformas digitais. Na sua configuração original, o HDTV é analógico. Foi desenvolvido pela Sony e Hitachi no início dos anos 80. Por volta de 1986, a NHK já levava ao ar uma programação diária, de uma ou duas horas, em alta definição. E o sistema acabou amplamente utilizado durante as Olimpíadas de Seul, em 1988, nas transmissões para o Japão e a Coréia do Sul.

O desenvolvimento de plataformas digitais terrestres de transmissão (o HDTV analógico era codificado pelo sistema Muse em satélites de banda Ku, semelhantes aos utilizados hoje para a distribuição de sinais da Sky e da DirecTV) se deu logo depois, recolocou os Estados Unidos no campo de batalha tecnológico e fez com que o HDTV voltasse à escala zero, para ser retomado digitalmente.

Não será antes de 2005, portanto, que o consumidor brasileiro poderá adquirir um televisor que lhe permita processar a imagem, escolher de forma mais ampla o que pretende ver, fazer compras diretamente pela TV, determinar o melhor ângulo do futebol e ver imagens em alta definição. O anúncio enganoso da Philco já terá amarelado e a cartilha tão pouco balanceada do Comitê Pela Democratização da Comunicação terá virado pó. Até lá, e bem antes disso, é capaz que as próprias agências ? entre elas a Anatel ? já tenham se transformado em algo muito diferente do que são agora e o processo decisório para o caso da TV digital enfrente novos rumos.

É improvável que a TV digital, como o HDTV analógico, morra antes de nascer. Mas crescem as chances que sua disseminação no Brasil acabe ficando para o fim do governo Lula. Ou para o seu sucessor.

(*) Jornalista e diretor de TV