RECADO DO MESTRE
Aos novos jornalistas
Orlando Villas-Boas (*)
Discurso proferido em 21/12/1972 à turma de formandos de
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Cláudio, Álvaro e eu recebemos com surpresa o convite que
vocês nos dirigiram. Com surpresa, porque aqui mesmo, nas Minas
Gerais, vocês poderiam ter encontrado pessoas que, por sua vivência
e cultura, seriam capazes de conferir a esta cerimônia o brilho
que ela merece.
Mas, acima de tudo, sentimo-nos honrados. Duplamente honrados por uma razão especial: o convite partiu de mineiros e mineiro ? como se sabe ? costuma pensar meia dúzia de vezes antes de tomar qualquer decisão.
Cláudio não pôde vir. Neste momento está nas matas do rio Peixoto de Azevedo, nos confins de Mato Grosso, tentando realizar o contato definitivo com os índios Krãnhacarore. É uma tarefa difícil. Aceitando ferramentas e colares, rejeitando vasilhas e espelhos, retribuindo os presentes que recebem, retesando arcos nos momentos de tensão, os estranhos Krãnhacarore hesitam em estabelecer contato. E assim, há 11 meses, a mata plana e espessa do Peixoto de Azevedo, semeada de roças e de aldeias, espécie de refúgio e paraíso até há pouco desconhecido, é como um tabuleiro onde Cláudio e eu sustentamos um jogo de paciência com os Krãnhacarore. Jogo fatigante, caracterizado por avanços e recuos, duro, cansativo, interminável. Já teríamos desistido da empreitada não fosse a paciência mineira que herdamos do nosso pai, mineiro da Campanha.
Álvaro ficou em São Paulo, atendendo aos serviços da retaguarda, respondendo pelo expediente que no fim do ano se avoluma como os rios da Amazônia, quando chega a estação das águas.
Mas eu estou aqui e peço que a ausência de Cláudio e Álvaro seja relevada.
Meus caros formandos: suponho que vocês, ao nos distinguirem com este convite, tiveram a generosa intenção de enaltecer os trabalhos que vimos realizando em defesa dos grupos e culturas indígenas que, por milagre, sobrevivem no interior do país. Grupos e culturas que, infelizmente, nada representam no processo de desenvolvimento em que estamos empenhados. Diga-se de passagem, não há novidade nesse processo. No fundo, é o mesmo que, iniciado no século 16, logo após o Descobrimento, resultou, através dos tempos, na prosperidade de alguns, na dilapidação predatória dos recursos naturais e na extinção do primeiro habitante da terra: o índio. Na realidade, continuam vivos e intangíveis os princípios, que há dois ou três séculos, norteavam as relações entre civilizados e índios. E, como estão vivos, fatos como estes ainda ocorrem. Aqui, uma área habitada por índios é cedida a terceiros e então a mata é substituída pelo capinzal e o índio pelo boi que deverá se multiplicar e engordar num deserto de homens. Ali, uma fazenda é estrategicamente implantada nas vizinhanças de uma reserva indígena, para que o novo dono disponha de mão-de-obra praticamente gratuita. Ingênuo, despreparado, vulnerável às nossas mazelas, incapaz de avaliar o "preço" que vai pagar por esse ingresso repentino da civilização, o índio deixa-se envolver nas malhas do progresso. Conhecemos esse preço. É a desagregação da família, a perda da cultura na qual encontrava equilíbrio, a marginalização, o desaparecimento do indivíduo ou do grupo inteiro. Tudo, enfim, como nos velhos tempos. E como se repete a história… Exatamente nesse momento, estou voltando aos nossos sertões, onde Cláudio e eu estamos empenhados na consumação de mais um crime contra o índio. Crime que cometemos em nome da civilização. Ao cometê-lo, porém, temos o consolo de que desventura maior sofreriam eles se não houvesse esse esforço mediador, capaz de amenizar o choque inevitável entre as duas culturas.
Então, é o caso de se perguntar: por que atraí-los? A resposta não é tão simples quanto a pergunta. Quando suas aldeias estavam ocultas na vasta planície da mata, eles viviam felizes. Um dia, porém, um avião os avistou e quis a casualidade que uma das transamazônicas passasse nas proximidades das suas moradas. Nesse dia, começou a tragédia de mais um nação indígena. Nesta altura, lembro o que disse um renomado mestre europeu, referindo-se aos povos primitivos: "São duas humanidades que se cruzam com um tempo nulo para se observarem". E ao fazê-lo, acrescentamos nós, a nossa humanidade o faz com os olhos da observação e da pesquisa, enquanto que a outra, a primitiva, com os olhos dos povos condenados. Mas para nós é mais racional, mais cômodo, mais econômico, falar em integrá-los, sem atentar que, para isso, valores imutáveis serão destruídos.
O nosso conceito de integração atende aos nossos interesses, mas nunca aos do índio. É preciso salientar que uma integração no sentido antropológico e social da palavra é irrealizável. Em relação ao Brasil, pode-se afirmar que o processo usado no contato entre as duas sociedades ? a primitiva e a nossa ? não é semente de destruição da cultura, mas da própria criatura. Vemos e assistimos com desesperança e desamparo, comunidades desaparecerem. Vemos tombarem vastas áreas de florestas, uma luta incontida e ansiosa por novas riquezas. Por que essa ocupação apressada, essa concorrência desenfreada com os donos da terra ? os índios? Há pressa em semear o capim no lugar da mata. Há urgência em que o boi, essa criatura que só vive num deserto de homens, substitua tudo, pisoteie tudo. Estamos sendo justos? Valerá o boi mais do que o homem? Bom e justo seria se o contato com o índio fosse resguardado nesta fase decisiva. Que só fosse realizado quando alcançada uma situa&ccediccedil;ão de real equilíbrio social e econômico. Poderia perguntar: não existe uma política indigenista, uma política oficial de proteção ao índio, atenta às suas necessidades e direitos? Resposta: existe. Acontece, porém, que até hoje os índios vêm sendo envolvidos por uma política sem cor, sem base experimental, burocrática, presa superficialmente a certas expressões clássicas tais como contato, integração, estágio, assimilação expressões, estas sem correspondência exata com a realidade da experiência social.
Esse é o quadro da situação do índio ? e eu o exponho sem retoques ? é para que vocês o examinem e julguem.
Considero muito importante este contato com a juventude de Minas. Desta Minas Gerais que é suficientemente grande e arejada para conciliar o mais acelerado progresso com a defesa intransigente dos seus tesouros. Conciliar a Pampulha com Ouro Preto, Belo Horizonte com Diamantina, as modernas usinas siderúrgicas com as igrejas do século 18 e os profetas de Congonhas do Campo.
Sairei deste encontro fortalecido na minha convicção de que não se mede a grandeza de um país unicamente pelo nível de renda per capita, nem pelo PNB. Mas, sobretudo, pela capacidade de preservar suas raízes, de conter a variedade dentro da unidade, de atender com justiça aos diferentes grupos que o constituem.
Estou chegando ao fim e, nesta altura, de acordo com a praxe, deveria exortá-los ao cumprimento do dever, por meio de algumas frases de efeito. Mas não farei isso porque o espírito crítico do mineiro simplesmente detesta os floreios da oratória. E mais ainda: o óbvio proclamado em tom solene. Falar em dever seria insistir no óbvio. Por isso, direi apenas o seguinte: formados, jornalistas profissionais, vocês estão na posse de conhecimentos e técnicas de extraordinária importância no mundo moderno. Empreguem esse conhecimento da melhor maneira possível, livremente, corretamente, em favor do próximo, em benefício da coletividade, em proveito do povo e da nação a que pertencemos.
Isso é tudo que nós, mais velhos, esperamos de vocês. Muito obrigado.
(*) Indigenista e sertanista