Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Apenas estatística: o Fim

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NÚMERO-NOTÍCIA

Antonio Fernando Beraldo (*)

[Lennon & McCartney, 1969]

A recíproca da equação, última canção dos Beatles, é verdadeira. Pelo menos no Brasil, nas grandes cidades, o chamado "tecido social" foi decomposto, esgarçado, em última análise, pela ausência ou fracasso do Estado como provedor de uma coisa chamada "bem comum", e da desigualdade de condições econômicas, sociais e culturais, cujos extremos são vizinhos (no caso de São Paulo, Recife e Vitória) ou se interpenetram, como no Rio de Janeiro. Não existe mais aquilo que nossos avós chamavam de urbanidade (que nem sei mais o que significa) ou separação entre crime e, digamos, "necessidade". Não é mais a lei do cão, ou a lei da selva, mas a lei física, aquela que diz que toda ação provoca uma reação, de igual intensidade, mas em sentido contrário. E a natureza, como se sabe, tem horror ao vácuo. O vácuo foi ocupado rapidinho, e substituído, pelo crime organizado ? tão organizado que oferece empregos, fornece remédios, transporte, sossego, moradia… dentro de um inferno controlado.

Pesquisa recente, feita pelo instituto Databrasil, ligado à Fundação Cândido Mendes, dividiu os moradores do Rio de Janeiro em duas categorias: os moradores das favelas e os que não moram em favelas (os resultados foram divulgados em vários jornais, no sábado 10/03/01). O coordenador da pesquisa, sociólogo David Morais, mediu uma variável chamada "percepção da violência" entre aqueles dois estratos. Os resultados, mesmo descontando o "ruído" causado pela "lei do silêncio" que vigora nas favelas, são impressionantes:

** Uma em cada três pessoas já foi vítima de violência, nas favelas; fora das favelas, o número aumenta ? quase uma em cada duas pessoas entrevistadas (45%) já foi vítima, pelo menos uma vez. Ainda fora das favelas, uma em cada cinco já foi vítima de violência duas vezes ou mais!

Daí, é mais seguro morar numa favela do que fora dela. Vão longe os tempos em que Paulinho da Viola cantava a Mangueira como mais parecendo "um céu no chão", e que os inimigos, segundo Cartola, eram "abraçados como se fossem irmãos" ? talvez se referisse aos compositores das escolas rivais, no tempo em que se fazia samba.

Mas o que mais impressiona nesses resultados é o seguinte:

** 58% do pessoal que mora na favela e 65% dos que não moram declararam que os meios de comunicação contribuem para a "onda de violência" (onda?).

Desde os tempos dos jornais que, espremidos, jorravam sangue, a mídia impressa já apelava para o "presunto" (cadáver) na primeira página. Assassinos e ladrões tinham seu hall of fame como Cara de Cavalo, Tião Medonho, Mineirinho. Do lado da polícia, Mariel Mariscot e a turma da escuderie Le Coq. Tivemos (temos) até internacionais como Ronald Biggs, que roubou o trem pagador dos ingleses, fugiu para cá e ficou tudo por isso mesmo. Lembro-me da multidão de mulheres cercando a cadeia, em Cabo Frio, onde Doca Street era julgado por ter assassinado a "Pantera de Minas". Revistas com as fotos do homicida bonitão eram disputadas a tapa nas praias da cidade; tinha gente que fazia álbuns com recortes da Manchete e de Fatos & Fotos (as Vejas da época). Muitos bandidos viraram bandidos "sociais", à la Hobsbawn, com direito a entrevistas e até uma certa conotação "de esquerda" ? contra o regime militar, o establishment, a burguesia, o capitalismo ou coisa que o valha.

Já foi dito que a organização do Comando Vermelho e de seus filhotes nasceu do contato entre criminosos comuns com os presos pela repressão, nos idos de 70. Como pouca coisa muda, daqui a pouco algum biruta vai deitar falação sobre a ação social assistencialista desenvolvida pelo Fernandinho Beira-Mar e seus ideais libertadores da Latinoamérica da sanha ianque, aliando-se à FARC para derrotar os gringos sea por la fuerza, sea por la droga.

Filme sem mocinho

É igual ao duelo ACM x Jáder: pelo que se vê, ninguém presta. Nos filmes de cowboy, quando a coisa estava preta (mocinha amarrada nos trilhos do trem que já vinha, índios cercando as carroças dos pioneiros, ladrões de gado enchendo a cara no saloon etc.), aparecia um xerife ou o Sétimo de Cavalaria para fazer com que o Bem vencesse sobre o Mal (da época, uma vez que o Bem e o Mal são conceitos relativos). Pelo menos havia uma dicotomia, que não há mais.

Imagino que a própria mídia, reflexo de tudo, também se perdeu. Nesta fita não tem mocinho. Não há mais juiz nem juízo de valores, se é que antes havia. E o que interessa, como sempre, é dourar (em todos os sentidos) o mundo-cão desta violência, desta banalidade violenta. Na reportagem da Folha de S.Paulo (10/3/01) sobre a pesquisa citada, o sociólogo David Morais diz:" Ela [a violência] está ali todos os dias e acaba fazendo parte da vida daquelas pessoas [os favelados]. Muitas vezes, é vista de forma mais brandas do que aos olhos de pessoas de outra realidade". É isso aí, e as estatísticas dizem exatamente isso. Se você mora em um lugar em que a metade (a metade!) das pessoas já sofreu algum tipo de violência, ou você está em fuga ou já se conformou e acostumou-se a andar de carro de vidros fechados, a sempre trazer "algum" para o trombadinha, não sair de casa à noite e a outros cuidados ? recomendados e aconselhados por quem deveria zelar por sua segurança.

O assunto continua na semana que vem, com a terceira e última parte deste artigo: como a mídia fatura com a violência.

(*) Professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora

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