Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Artefatos ideológicos e impudência da direita

LEITURAS DE VEJA

Gilson Caroni Filho (*)

Se, por dever de ofício, um professor precisar demonstrar a associação da grande imprensa aos interesses dominantes, não terá grandes dificuldades pela frente. Se o aluno for preguiçoso ou pouco inteligente, o trabalho pode ser bem menos exaustivo do que parece à primeira vista. Evite publicações que, pela diversidade ideológica dos colaboradores, tenham alguns campos conflitantes a dificultar a percepção de seus perfis editoriais. Procure algo mais tosco, que não se preocupe em disfarçar quem tem como aliados e, por conseguinte, elege como inimigos. Uma revista que da primeira à última página seja uniforme, sem sobressaltos, totalmente previsível.

Dê preferência àquela com melhor resolução gráfica e pasteurização dos temas abordados. Não hesite: em nome do aprendizado mais rápido, vá à banca mais próxima, tape o nariz e adquira um exemplar da revista Veja. Seu sucesso pedagógico está assegurado. E você terá em mãos a mais pusilânime das publicações semanais. A que não solicita grandes abstrações para a apreensão de sua dinâmica. A que conta com a simpatia da classe média "bambanizada" do país.

Do marciano sem graça da seção Veja essa (um neoliberal esverdeado que os Civita acham extremamente sagaz) ao colunista-biógrafo-de-presidente da última página, reina a mais perfeita harmonia ideológica. Por vezes raivosos, os colaboradores defendem com unhas e dentes o modelo econômico excludente e os atores políticos que o tornam viável no plano institucional. Quando enfurecidos, vale para eles a felicíssima definição de Arnaldo Jabor feita por Jaguar: "Rebeldes a favor". Nosso colunista-biógrafo, Roberto Pompeu de Toledo, é o mais famoso prestidigitador da imprensa. Espécie de consciência cívico-crítica do leitor, não foram poucas as semanas em que a uma crise envolvendo o governo em escândalos corresponderam colunas que tratavam da "importância antropológica do elevador" ou do "escasso repertório de piadas de botequim nos dias contemporâneos". E não são raros os seus admiradores, a se dar crédito à seção de cartas. O que nos remete à máxima de Paulo Francis nos anos 70: "A história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota". E cúmplice, acrescentaríamos.

Estamos diante de um aluno estupefato e uma publicação "tipo-ideal". Execra movimentos sociais substantivos, condena ações políticas reivindicatórias e desqualifica políticos que não rezem a cartilha da "modernidade neoliberal". A edição n? 1.745 (3/4/02), como todas as anteriores, é um monumento à transparência do que pensam (e do que são) os senhores da Abril. Quem quiser maiores detalhes que leia Castelo de âmbar, do jornalista Mino Carta, mas para o nosso objetivo, que é o de ajudá-lo a dar uma visão crítica ao jovem estudante, as três matérias que tratam de política brasileira são mais que suficientes. Interligam-se na recorrência obsessiva à criminalização do MST. O mesmo procedimento é adotado quando se trata de CUT, no âmbito sindical, ou PT, na arena partidária. Tudo que se relacione a manifestações contra o neoliberalismo no plano internacional também é alvo de artilharia pesada. De Seattle ao movimento zapatista, textos adjetivados do primeiro ao último parágrafo misturam jocosidade e agressão. Se o seu aluno já tiver freqüentado aulas de Ética, Veja será de grande valia para mostrar como os ditames político-empresariais obstam a efetivação de preceitos ali ensinados.

Direitismo cínico

Vejamos como a publicação trabalha com seus artefatos ideológicos. Mais uma vez, devemos lembrar que não estamos legitimando a ação do MST em Buritis, mas demonstrando o modus operandi da imprensa. Como, em seu campo, opera discursivamente. A primeira matéria trata das candidaturas de Serra e Lula sob o impacto das decisões do TSE. O uso de aspas é extremamente interessante e significativo. Peça ao seu aluno para ficar atento ao trecho que segue:


"O PT tentava essa aliança com um partido de centro como o PL porque acha conveniente mostrar-se menos esquerdista ao eleitor brasileiro. Mas nada impede o apoio informal do PL ao PT nas eleições presidenciais e a reciprocidade petista na esfera estadual. Além do mais, o impedimento de uma aliança com o PL livra o candidato petista de ficar até o fim de seus dias explicando para a ala mais à esquerda do PT por que se aliou com ?a direita?."


Percebamos que o uso de aspas só é aplicável a uma das forças do espectro político. A "direita", assim, aspeada, conota algo construído pela intolerância de uma esquerda sem aspas. Puro sectarismo de um pensamento empobrecido e binário. Pergunte ao jovem se ele notou o "joguinho "da revista. Se ele anuir e der a entender que já compreendeu tudo, peça-lhe um pouco mais de paciência. O melhor está por vir. E será na matéria que trata das possibilidades da candidatura do governador do Rio, Anthony Garotinho.


"Populistas como os dos velhos tempos são espécimes mais raros porque o terreno onde vivem e se alimentam está se exaurindo no Brasil à medida que o país avança para a modernidade."


Assim começa o texto. Há uma premissa inconteste. O inexorável avanço do Brasil rumo à modernidade. Sem defini-la, é dada como conquista do atual governo. Pergunte ao seu aluno se ele pensou em concentração de renda, 50 milhões de miseráveis, dezenas de mortes por dengue na capital da segunda maior cidade do país, escolas sucateadas e milhões de desempregados. Se ele pensou e não viu tais fatos como acidentais, diga-lhe que é um pré-moderno. Continuemos a leitura da prestigiosa revista.


"Ele encarna um populismo sustentado sobre uma plataforma de gastos públicos desmedidos, obras e religião", avalia o cientista político Sérgio Abranches. "Só opera nas periferias desestruturadas. Seu discurso é do tipo ?vim para fazer o bem?, diz."


O que a revista não diz é que, a seu ver, o grande pecado do populismo não é o gasto desmedido, mas sua natureza pública. Registre-se, também, que o cientista político Sérgio Abranches é amigo pessoal de FHC e colaborador da revista. Mas isso são detalhes menores. Voltemos ao texto.


"O que condena a prática populista é o expediente de pautar a administração por obras de fachada e nenhum compromisso com medidas que tenham a mais leve coloração de impopularidade, por mais necessárias que sejam. Não se ouve o governador do Rio falar mal ou bem do MST, criticar sindicatos nem dizer coisa alguma que o comprometa."


Parece que o candidato ideal deve ter uma ligeira coloração de impopularidade e a coragem de falar mal ou bem do MST. Abstraindo o caráter obsessivo com o movimento (o que se revelará impossível, como logo veremos), o estadista moderno deve ter "coragem" de se posicionar contra movimentos sociais e instâncias sindicais. Qualquer estrutura associativa reivindicatória deve ser combatida. Seu aluno já está mais ligado? Pois bem, o terceiro artigo é sobre o MST. Seu trabalho será extremamente facilitado pela fúria da revista. Vamos logo ao discurso significativo.


"Movimento político que manipula massas empobrecidas, o MST ostenta em sua cúpula uma salada ideológica anacrônica que consegue compatibilizar maoístas, guevaristas, marxistas, fidelistas e até representantes de correntes políticas moderadas."


Quem disser que a imprensa se pronuncia apenas em editoriais e, sub-repticiamente, por capas, fotos e espaços dedicados ao tema, é tão anacrônico quanto a ideologia atribuída ao MST por Veja. Isso não é um artigo ou uma coluna. Supostamente é um relato isento dos fatos. "Manipular" é juízo de valor que enquadra o movimento. Onde está a objetividade do discurso jornalístico no texto acima? Na "salada"? No "anacrônica"? Quem sabe em "correntes moderadas"? Se o seu aluno já sabe o que é signo e significado, deve estar pensando em trancar matrícula. Não deixe. Pelo menos até o próximo momento transcritivo:


"Criado em 1984, o movimento começou invadindo fazendas improdutivas, sob o lema ?Ocupar, resistir, produzir?. Nessa altura, a atuação do grupo favoreceu o avanço da reforma agrária. De lá para cá, o governo desapropriou mais de 20 milhões de hectares, equivalentes à área agricultável de um estado como Mato Grosso, na maior reforma agrária da história."


De quem são estes dados? Do próprio governo. Onde está a contestação a eles feita pelo MST, a CNBB e a Contag? Tristes tempos em que o press release se imiscui de tal forma no corpo da matéria que já não sabemos onde começa o texto da revista e termina a reprodução do material fornecido pelos organismos governamentais. Mais uma lição para seu aluno. E olha que essa é importante para que ele não se adapte a procedimentos acomodatícios de certas redações.

O mais interessante está no que vem abaixo. Vale a pena a leitura pelo que ela encerra de patético e paradoxal. Pelo que expressa como legítimo na ação política segundo a ótica de certos setores da imprensa.


"O episódio atingiu o candidato petista no coração. De início, ele ficou na dúvida se condenava ou não a invasão. Demorou para condená-la e, quando finalmente abriu a boca, disse que era contra a ação do MST mesmo porque ela não ajudava em nada a reforma agrária. Deu a entender que, se ajudasse a reforma agrária, então a ação seria positiva."


Ora, chega a ser acaciano. Se ajudasse, quem, sendo favorável à reforma agrária, não apoiaria o ato? Por ajudar, entendemos, como o senso comum, a conquista de subjetividades, a adesão da maioria. Quem seria contra a não ser os inimigos de qualquer alteração no quadro fundiário nacional? Deixemos claro que Veja reproduz, num pequeno trecho, as opiniões de Stédile e repudia, por leviandade, as correlações estabelecidas entre o PT e o MST pelo ministro da Justiça. Mas o dever de casa está cumprido. Seu aluno teve contato com uma publicação que assume um direitismo cínico. Isso é condenável, porém o mais perturbador talvez esteja na indagação: o que possibilita tal publicação e seu sucesso editorial? Há inocentes nesse processo? O desdobramento das questões levantadas é por demais extenso. Não cabe no espaço desse artigo. Aprofunde a discussão com seu aluno.

(*) Professor de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro