FOLHA DE S.PAULO
"Médico, advogado, jornalista", copyright Folha de S.Paulo, 12/5/02
"Podemos não gostar, mas somos capazes de entender a atitude de um médico que, em meio a uma rebelião violenta numa cadeia pública, tenta primeiro salvar o último fio de vida de um condenado por abuso sexual contra menores para só depois cuidar de um policial ferido com menos gravidade.
Também compreendemos que, no fundo, é em cumprimento da lei -a mesma que, em tese, garante proteção a todos os cidadãos- que um advogado às vezes faz uma defesa veemente de alguém acusado de ter cometido um crime, mesmo que este seja dos mais graves.
Até que ponto, porém, a sociedade se dispõe ou consegue entender o papel do jornalista, especialmente em situações delicadas ou excepcionais?
Foi em torno dessa questão que se desenvolveu uma das sessões do encontro da Organization of News Ombudsmen (ONO), realizado em Salt Lake City (EUA) entre 28 de abril e 1 de maio.
O raciocínio inicial fez parte da exposição do jornalista Bill Kovach sobre o tema ?Jornalismo e Patriotismo?. Autor de um livro chamado ?The Elements of Journalism?, de 2001, Kovach defende que uma das tarefas mais relevantes da imprensa é justamente ?educar? o público no sentido de que este possa compreender o lugar que ela ocupa na circulação de idéias e informações.
E isso, conclui, só é possível se os veículos de comunicação conseguirem demonstrar na prática que suas informações são confiáveis, que publicam aquilo de que realmente têm conhecimento e que o fazem de forma responsável -ainda que a revelação de certos fatos possa, eventualmente, descontentar alguns ou ferir interesses de outros.
Nos EUA, conta Kovach, atualmente membros do governo ou militares costumam pressionar jornalistas com uma pergunta que não é exatamente nova: ?O que você é em primeiro lugar, americano ou jornalista??.
Kovach responde que essa é uma forma inadequada de colocar o problema.
?Numa sociedade democrática?, ele argumenta, ?a forma mais elevada de exercício da cidadania por parte de um jornalista é monitorar os acontecimentos na comunidade, fazer com que o público os conheça e esteja consciente de sua importância, examinar com ceticismo a atuação dos governantes e das instituições do poder, encorajar e municiar o debate público mais amplo.?
Durante os debates na ONO, o ombudsman do jornal The Washington Post, Michael Getler, foi radical: ?Devemos publicar tudo o que sabemos, inclusive em tempos de guerra, salvo se claramente a divulgação puder colocar vidas em perigo. Quanto mais informação, melhor?.
Para ele, essa é a única forma de o jornalismo contribuir com seriedade para a formação de uma opinião pública viva e vigorosa.
Claro que o tema é especialmente ?quente?, no momento, para os jornais dos EUA (desde os ataques do 11 de setembro) ou de Israel, por exemplo, no atual conflito -mas os princípios aqui resumidos são obviamente válidos para toda e qualquer sociedade.
O Brasil não está em guerra, mas quem seria capaz de negar que -preservados o pluralismo, a busca do equilíbrio e da imparcialidade- a aplicação desses ?elementos?, pela imprensa local, seja essencial para que os leitores possam formar sua opinião, por exemplo, durante uma campanha eleitoral?
?Devemos sempre expor a verdade dos fatos?, defende Kovach, ?mesmo que isso seja visto ou usado por um lado ou pelo outro. Não importa. Não somos nós os eleitores. Temos que ser claros com o leitor e lhe fornecer os elementos. Ele é quem decide o que fazer com as informações. Nossa obrigação é divulgá-las.?
Suicídio
Entre outros assuntos -censura em tempo de guerra, uso de imagens ?chocantes?, crescimento da leitura de jornais on-line, para citar alguns-, os ombudsmans discutiram, também, orientações específicas para a cobertura de casos de suicídio em suas várias vertentes (no caso de celebridades, no caso de homicídio seguido de suicídio etc.).
Uma das observações feitas por Kathleen Hall Jamieson, estudiosa da Universidade da Pensilvânia, expositora da sessão:
?Dramatizar o impacto do suicídio por meio de descrições e fotos de parentes enlutados, professores ou colegas de classe ou expressões comunitárias de luto pode encorajar vítimas potenciais a verem o suicídio como um meio de atrair atenção para si ou como uma forma de retaliação contra outras pessoas?.
Objetivo desse debate? Trata-se não apenas de retratar os eventos, mas também de editá-los adequadamente, contextualizá-los e procurar fazer do noticiário um elemento educativo, socialmente útil no sentido da prevenção contra esse tipo de ato -tratando esse conjunto com transparência.
Eis um princípio elementar e teoricamente sempre repisado -a transparência- que deveria se estender para todo o jornal. Este teria de deixar bem claro tudo aquilo que apurou, mostrar, sempre que possível, como foi que soube disso ou daquilo (por exemplo, de fontes cujos interesses foram contrariados por determinados fatos) e, igualmente, admitir o que ainda não sabe, mas procurará saber para informar o leitor.
Basta uma olhadela na imprensa, inclusive na Folha, para constatar que, infelizmente, as coisas nem sempre acontecem assim.
Reproduzo a seguir uma bem-humorada lista de dez motivos pelos quais os jornais costumam cometer erros, publicada por Mike Clark, ombudsman do Florida Times-Union.
Ela tem um ar de típica piada norte-americana, mas bem pode ser entendida aqui. Por ordem crescente de importância:
1) porque adoramos receber aqueles telefonemas de professores de inglês (português!) aposentados;
2) porque um novo editor, vice-presidente encarregado de aborrecimentos para o leitor, é incrivelmente eficiente;
3) porque estamos muito ocupados com a preparação da quermesse anual de arrecadação de fundos para o comitê local ?pró-conspiração da mídia democrata?;
4) porque, se nos tornássemos de repente perfeitos, o dono do jornal iria achar que nossa equipe está com gente demais;
5) porque o editor-chefe está sempre sonhando acordado com a substituição de alguma tirinha;
6) porque um consultor descobriu que a seção de correções é a mais lida do jornal;
7) porque a equipe chegou à conclusão de que, se os programas de transmissão de rádio ao vivo não são obrigados a checar os fatos, nós também não precisaríamos fazê-lo;
8) porque adoramos deixar os fanáticos por palavras cruzadas enlouquecidos;
9) porque, se não formos procurados pelos leitores, como iremos saber se eles de fato lêem o jornal?
10) para manter os ombudsmans empregados, até que alguém um dia descubra o que esse cargo realmente quer dizer.
O Estado de S.Paulo publicou na quinta-feira que o ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, defende a criação do cargo de ombudsman para as emissoras de TV aberta.
A proposta pode parecer distante da realidade, pode ser apenas da boca para fora -mero balão de ensaio-, e não sei até que ponto as redes de TV se disporiam a acatá-la na prática. Mas pelo menos discutir o tema faz todo sentido num país em que a televisão tem tanto peso.
Para que uma eventual adoção da sugestão ministerial não seja ?de fachada?, vai desde já uma sugestão: que haja um programa do eventual ombudsman, nos moldes daquele que existe, por exemplo, no canal de TV ?France2?, cujo ?mediador? (como dizem os franceses), Jean-Claude Allanic -também presente ao encontro de Salt Lake City-, leva ao ar todo sábado um debate sobre a programação e a cobertura jornalística realizada pela emissora na semana.
Será pedir demais?"