Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Bernardo Kucinsky

CARTAS ÁCIDAS

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta
Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"10/5/02

Uso político do censo de 2000

A imprensa toda caiu como pato numa das mais sofisticadas manobras do governo para esconder suas falhas e, ao mesmo tempo, ajudar a cambaleante candidatura Serra. Com a ajuda do IBGE, foram anunciadas com pompa e circunstância as estatísticas de melhora nos índices de mortalidade infantil e na escolaridade do brasileiro, no mesmo dia em que Paulo Renato tinha que se explicar perante a comunidade internacional porque o Brasil só cumpriu 9 das 27 metas para a infância definidas pela Cúpula Mundial da Infância, em 1990. ?Foi culpa dos juros altos?, alegou Paulo Renato na última quarta-feira, em Nova York. A notícia dessa prestação de contas saiu bem escondidinha, no caderno de cidades da Folha e em mais lugar nenhum.

Quando o governo pauta a mídia

Curiosa a pauta dos correspondentes dos jornais brasileiros que esqueceram Paulo Renato nesse momento, em que ele é o pivô do escândalo da propina. Ninguém se esforçou para arrancar mais alguma coisinha do ministro. Também não ouviram as explicações de Paulo Renato para o seu fracasso: entre as metas não atingidas estão a redução em 50% no analfabetismo nesses dez anos. No Brasil ele só caiu um terço.

As tevês, especialmente a Globo, entraram no esquema, enaltecendo os maravilhosos avanços da escolaridade do brasileiro e da sua saúde. Nenhuma palavra sobre a dengue, é claro, e sobre a lepra, da qual o Brasil é um dos campeões mundiais. Nem uma palavra sobre a prestação de contas de Paulo Renato em Nova York.

Os jornais foram mais circunspectos, com exceção do Estadão. Mesmo assim entraram no jogo do governo. Folha e JB preferiram destacar na primeira página as mudanças na religiosidade do brasileiro ou outros aspectos mais culturais. Jogou a questão da renda para a página três, e com bom destaque. Assim, fizeram o jogo do governo, no atacado, mas sem deixa de registrar o essencial para o leitor mais atento. O Globo foi o único jornal a destacar o grande aumento no desemprego, que o IBGE admite chegar a 15% da população ocupada . No Rio de Janeiro chaga a 17%.

A década perdida que ninguém mais acha

Fernando Henrique quis usar o censo também para mostrar que a década de 90 não foi uma década perdida, mas do ponto de vista que realmente interessa, a renda, foi sim mais uma década perdida. O carioca César Benjamim tem, aliás, uma tese interessante sobre a década perdida, que esse censo parece corroborar. Ele diz que o conceito está errado, porque faz supor um fenômeno transitório, algo que depois se recupera. Ele sustenta que já vamos para a terceira década perdida, desde a crise da dívida de 1981, e que esse padrão de renda esmagada e crescimento medíocre está hoje incorporado à economia brasileira.

O verdadeiro retrato do Brasil

É impressionante o dado básico do Censo de 2000: a aviltante renda da massa de brasileiros ocupados. Metade dos trabalhadores brasileiros trabalha praticamente em troca de comida. Podia se dizer casa e comida, mas muitos nem casa têm. Um em cada quatro brasileiros ocupados (24,4% deles) ganha apenas até um salário mínimo. Outro tanto ( 27,5%) ganha entre 1 e 2 salários mínimos. Somados esses dois contingentes, temos que mais da metade dos brasileiros ocupados (51,9%) ganhando até o máximo de dois salários mínimos. São cerca de 32 milhões de pessoas nessa condição (e não 60 milhões como escreveram alguns jornais, que confundiram a porcentagem dos brasileiros ocupados com porcentagem da população).

A vergonhosa renda dos brasileiros

O IBGE não publicou o ganho médio desse contingente, mas deve ficar em torno de um 1,5 salário mínimo, ou cerca de US$ 130,00. Isso dá uma renda anual da ordem de US$ 1.500,00, característica da renda per capita de países pobres, apesar de nossa economia ser uma da maiores do mundo e nossa natureza rica a generosa.

Depois desse contingente de mal pagos, surgem três blocos de tamanho quase igual de brasileiros ocupados, que ganham de dois a três salários mínimos (13,6%), de três a cinco (14,2%) e de cinco a dez salários mínimos (12,5%). O primeiro bloco, na verdade, ainda está no universo dos quase pobres. Os dois outros blocos somados representam um quarto dos brasileiros ocupados, e seriam, digamos, a baixa classe média brasileira: com renda média da ordem de apenas uns R$ 1.000,00 por mês, ou US$ 400,00.

O capitalismo como produtor de neuroses

Impressionante também o dado de que 8,3% dos brasileiros sofrem algum grau de deficiência mental. São mais de 14 milhões de brasileiros com a cuca fundida ou deprimidos. É a corroboração mais forte das teses psicanalíticas de que o capitalismo é uma fábrica de neuroses. Capitalismo selvagem de periferia é um superprodutor de neuroses. Essa medida é importante porque foi feita pela primeira vez e segue recomendações da ONU.

No total há 24,5 milhões de brasileiros (14,5% da população) sofrendo algum tipo de deficiência física ou mental. Isso inclui por exemplo, portadores de óculos, mas de qualquer forma é um número pesado, afetando um em cada sete brasileiros. Só países que vivem entrando em guerras, como Estados Unidos e Israel, devem ter essa proporção de portadores de deficiências físicas. É, portanto, como se existisse uma guerra silenciosa no Brasil, produzindo, além dos seqüestros e assassinatos, os feridos e mutilados. Infelizmente nem o IBGE e muito menos os jornais fizeram a comparação com outros ?capitalismos?.

A queda relativa na mortalidade infantil

O censo mostrou acima de tudo a continuidade de tendências demográficas conhecidas, tais como famílias menores e número menor de filhos por mulher. Os dados de mortalidade infantil são isoladamente muito importantes, mas teriam que ser contextualizados no quadro geral da saúde, e especificamente comparados com dados de mortalidade em outras faixas etárias e expectativa de vida ao nascer. O número de filhos por mulher, por exemplo, é hoje de apenas 2,35, contra quase 3 no início da década de 90. Muito natural, portanto, que ocorresse queda na mortalidade infantil. Deveria ter caído muito mais, essa é a verdade. Não morreram os que deixaram de nascer. Aqueles que a mulher pobre nordestina já aceitava que seria ?anjinho?. Essa mulher foi convencida a ligar as trompas. O número de mulheres esterilizadas o IBGE também não revelou.

A mortalidade infantil está em 29,6 por mil nascimentos vivos no Brasil como um todo e mais de 44 por mil no Nordeste. Nos países desenvolvidos é da ordem de 5 por mil nascimentos vivos, e mesmo em países latino-americanos mais pobres do que o Brasil está em 10 por mil nascimentos vivos (Chile) ou 24 por mil (Paraguai). Estamos pior que o Paraguai em mortalidade infantil. Em Cuba, ilha maltratada pelo bloqueio americano, a mortalidade infantil está na casa dos 4 por mil nascimentos vivos.

A educação mal educada

Aumentou muito a presença de brasileiros de todas as idades nas escolas, mas alguns números ainda nos situam mal. Um em cada dez brasileiros não tiveram nenhuma instrução formal ou freqüentaram a escola durante menos do que um ano. Quase um terço da população com mais de dez anos de idade (31,2%) tem apenas até o máximo de três anos de estudo. Outro terço tem apenas entre 4 e 7 anos de estudo.

O que os brasileirinhos aprendem nas escolas ainda é uma grande interrogação. Em alguns estados, como Piauí e o Maranhão dos Sarneys, os analfabetos funcionais, que chegaram a ir à escola, mas não conseguem ler um jornal, são a maioria da população. Devem ir à escola principalmente por causa da merenda. Na outra ponta, apenas 4,1% dos brasileiros tem 15 anos ou mais de estudo, e essa proporção mudou pouco em dez anos (eram 3,6% em 1990).

Outros dados preocupantes

O aumento do número de adolescentes que engravidam. Mais de 9% das mulheres na faixa etárias de 10 a 15 anos declararam ter tido filho nos últimos 12 meses. No Nordeste são mais de 14%. Há dez anos,eram 8,7%. Isso pode denotar grande falha nas campanhas pelo sexo seguro, frente a fenômenos mais profundo e complexos de erotização da sociedade e falta de alternativas de ocupação e lazer para os jovens. Ou falta de dinheiro para comprar camisinha?

Na França dão camisinha de graça nas escolas. Já que o governo diz que hoje praticamente todo mundo está na escola, por que não faz o mesmo? Na verdade, na faixa de 15 a 17 anos, 28% dos adolescentes está fora da escola. E na faixa de 18 e 19 anos, metade está fora da escola.

Cuidado coma s comparações

Tanto os jornais como o governo compararam 2000 com 1991, justamente porque o governo queria faturar politicamente em cima dos dados. Mas as porcentagens não devem ser comparadas diretamente com os do início da década, porque o IBGE mudou alguns conceitos, entre eles o de pessoal ocupado. Esse conceito, por exemplo, foi alterado para abrigar os milhões que passaram a viver de bicos de modo permanente. O próprio conceito de mortalidade infantil deveria ser alterado como medida básica de qualidade de vida, na medida em que as famílias se urbanizaram, diminuíram de tamanho e mudaram de estrutura.

As falácias de FHC

O presidente tentou confundir a opinião pública, alegando haver contradição entre os níveis baixíssimos de renda do brasileiro e os indicadores positivos de posse de aparelhos eletrônicos, como televisores, geladeiras e automóveis. Questionou ?como era possível que a compra de carros tenha aumentado 82% se só 2,4% dos brasileiros ganham 20 salários mínimos, há algo de ilógico?.

FHC fez, de propósito, várias confusões. A principal foi tomar dados de posse como se fossem dados de compra. O censo mostra que há 14,6 milhões de famílias com carros, contra 8 milhões em 1991. Um aumento de 82% na posse. Daí vem o número 82%. É claro que para manter um carro é preciso ter renda, mas não significa que todo mundo está comprando carro. Pode significar, por exemplo, que ninguém está mais jogando carro velho fora. Mesmo porque o governo não oferece transporte coletivo.

FHC confundiu patrimônio (ter aparelhos de TV ou carros) com renda (poder de compra). Patrimônio é estoque, renda é fluxo. O patrimônio se forma ao longo de muitos anos, mesmo com renda baixa. Não há nenhuma contradição e nem falta de lógica. A renda é mesmo vergonhosa e isso significa que o brasileiro tem que trabalhar muito para comprar seus aparelhinhos. Com a agravante de que tem pagar muito juro, porque precisa comprar a prestação devido à pouca renda. Imaginem como a imprensa teria deitado e rolado se a confusão entre patrimônio e renda tivesse sido feita por Lula.

Especulação e terrorismo financeiro

Muito importante a confissão de Marcílio Marques Moreira, na página A8 do Estadão da última quinta-feira (9), de ser ele o responsável pelo envio de informações sobre o Brasil à sede da corretora Merrill Lynch, em Nova York. A revelação de que quadros importantes da burguesia brasileira são protagonistas centrais do processo de formação dessas análises estabelece uma primeira base factual para a suspeita de que muitas dessas análises podem visar ganhos principalmente políticos, mesmo quando também geram lucros especulativos. É uma primeira demonstração de que pode estar havendo mesmo terrorismo financeiro contra a candidatura Lula.

Ao leitor

Esta coluna foi fechada na última quinta-feira (9).

8/5/02

A crise provocada por Malan

A Folha ressalta hoje quatro indicadores da CNI, todos apontando para um agravamento da recessão: queda no emprego, na utilização da capacidade instalada, nas vendas das indústrias e alta nos estoques. Em texto à parte, o jornal destaca a estimativa também negativa de Gianetti de que o Brasil perderá este ano US$ 7 bilhões em exportações, devido à recessão no Japão e na Argentina.

Os indicadores mostram que foi especialmente desastrosa e inoportuna a última decisão do Comitê de Política Monetária do Banco Central de interromper a trajetória de redução gradual dos juros. A CNI, que divulgou os dados de hoje, põe a culpa do agravamento da crise na decisão de Malan.

Isso explica o nervosismo acentuado de Malan nos debates do Fórum Nacional no Rio de Janeiro realizados ontem. Mais uma vez ele tentou botar a culpa no PT, mas fugiu da sala quando Mercadante rebateu a altura. O Globo preferiu dar a manchete principal da primeira página a Malan.

E as origens do risco Brasil

Delfim Netto acusa a deterioração dos indicadores econômicos como principal causa da elevação do risco Brasil. Mas só a Folha deu destaque às suas declarações. ?O risco está na economia , não em Lula? é o titulo da notícia na página B3. E o artigo assinado do próprio Delfim na página dois do mesmo jornal, critica os bancos por envolvimento excessivo e leviano em análises precárias da política brasileira.

Seu argumento principal é o de que o ?mercado? vive mal informado. O artigo acusa a política econômica do governo, dizendo que o real foi um dos mais custosos programas de estabilização do mundo. Para provar que o mercado vive mal informado, Delfim termina com uma frase marota que pode ajudar a entender o ataque de Veja contra Serra. Diz que tanto o mercado está mal informado que não sabe que com Serra haveria mais mudanças do que com Lula.

Autonomia da especulação

?O risco Brasil e a SEC?, artigo de Luís Nassif na Folha de ontem, explica como funciona o processo de manipulação dos mercados financeiros pelos bancos e seus analistas. Nassif vai além das análises comuns. Ele sustenta que, a partir da percepção de que certos mercados são mais propensos a oscilações, os bancos criaram toda uma mística de analistas de mercado e gurus financeiros a fim de forçar essas oscilações e, com isso, ganhar muito dinheiro dos investidores trouxas. Em outras palavras, os bancos criaram um cassino dentro dos mercados financeiros, nos quais os analistas e avaliadores de risco são os crupiês. E o Brasil é uma das principais mesas deste cassino.

Bloco do poder continua rachado

Fracassou a tentativa de reconciliação entre os tucanos e o PFL. Ao contrário, o impasse se tornou mais nítido. O PFL não aceita Serra e os tucanos não trocam o mesmo Serra. O Estadão de ontem contou detalhadamente a tentativa de FHC de contornar a crise mandando os tucanos pararem com o bate-boca e chamando a cúpula do PFL para um jantar de aproximação. Hoje, a história que os jornais contam é do fracasso dessa tentativa. Dado o impasse, Tereza Cruvinel relembra em sua coluna n?O Globo, a suspeita de que FHC brinca com a idéia de um terceiro mandato, como fez Fujimori no Peru.

E a mídia recua…

É notável o recuo hoje dos grandes jornais no caso da propina. O tema saiu da primeira página. Ontem o JB deu manchete às declarações de Jereissati nas quais ele confirma a doação de R$ 600 mil à campanha de Serra e observa que o candidato tucano pode até se tornar inelegível por causa da não discriminação desse dinheiro na prestação de contas. Hoje só a Folha tentou aprofundar a investigação jornalística, tentando (inutilmente) entrevistar Steinbruch e conseguindo entrevistar Ermírio de Moraes, do consórcio que perdeu a disputa pela Vale.

Mas Antonio Ermírio ataca

Ermírio soltou frases comprometedoras: ?Talvez não tenhamos oferecido o que eles queriam. O importante é que perdemos mas saímos limpos?. O pior foi quando a Folha perguntou se ele achava que Serra estava envolvido: ?Na minha opinião, não. Agora, não posso jurar nada, depois desses padres pedófilos que estão por aí…?

A fotografia emblemática

Tomando toda a página A11 do Estadão de ontem, em seis colunas coloridas, aparece pela primeira vez em pose presidencial, o deputado federal Aécio Neves, um dos nomes cogitados para substituir Serra caso a crise de sua candidatura se aprofunde. Serra precisa de apenas alguns pontos mais para garantir um lugar no segundo turno. Mas a operação ?Veja?, pode ter tirado alguns pontos e não acrescentado. Aécio reuniria os atributos de reunificar o bloco do poder e aparecer para o eleitor com um rosto novo. É esse rosto que está lá, sorridente, no topo da página do Estadão, ocupando muito mais espaço do que seria justificado pelo corte correto da fotografia, que é vertical. Ao violar a regra do corte vertical, o Estadão produziu esse efeito de projetar a figura de Aécio.

Em cena, o porta voz do PT

Apesar de certa resistência, a estréia do porta-voz da campanha do PT, André Singer, foi bem sucedida. Sua primeira coletiva demonstrou segurança, mas nem todos os jornalistas se acostumaram com a idéia. Alguns tentaram colocar armadilhas no diálogo com o porta-voz.

Muitos veículos – em especial o Estadão, Globo News e JT – deram grande destaque às declarações do porta-voz, o que ajudará a legitimar essa função perante a mídia em geral. A Folha tentou ignorar o porta-voz, mas acabou registrando (erroneamente) parte de sua fala. Ficou claro o potencial do porta-voz do PT, principalmente à medida que a campanha esquentar.

Retrato do Brasil

Um estudo da Prefeitura de São Paulo a partir de dados do IBGE sobre as famílias pobres concluiu que o número de chefe desse tipo de família que não tem nenhuma renda aumentou 130% na última década: de 1,4 milhões em 1991 para 4,1 milhões em 2000. Em São Paulo, 40% dos chefes de famílias considerados pobres, não tem renda.

O estudo também descobriu que há um novo tipo de pobre no Brasil: o pobre com diploma universitário. São chefes de família sem renda, com menos de 24 anos, formação superior e na maioria dos casos, mulher. E residindo nos grandes centros urbanos. Folha e Estadão de hoje deram grande destaque ao estudo.

Não deixe de ler:

?Crise de energia não está afastada?, importante nota econômica na página B2 do Estadão de hoje. A crise só não aparece de novo agora porque a economia está em recessão e continua chovendo. Ou seja, não podemos crescer e mesmo assim ainda dependemos de São Pedro.

?Crise energética e capitalismo tupiniquim?, artigo de Cláudio Guedes, na página dois da Gazeta Mercantil de ontem, em que ele arrasa com a Medida Provisória 14 que fez com que os prejuízos dos setores produtivos do país com a crise de energia viraram lucros para as empresas que causaram essa crise.

?Infra- estrutura, desafio de tirar o sono?, artigo do agora famoso Benjamim Steinbruch, na página B2 da Folha de ontem em que ele desenha um cenário sombrio da situação em que o governo FHC deixou nossa infra-estrutura de transportes e de saneamento.

6/5/02

Só falta a fotografia

Foi esse o comentário de Cony, na Folha de hoje, comparando as acusações contra Serra com o caso Lunus. A Folha dedica mais de três páginas ao novo escândalo, incluindo uma entrevista com o empresário Carlos Jereissati em que ele tenta explicar o dinheiro que deu à campanha de Serra e que não aparece nos registros. Só que ele não combinou antes com Serra, e o próprio o candidato tucano acha a explicação difícil. Luiz Carlos Mendonça de Barros também promete jogar mais lenha na fogueira. No clima atual, em que os critérios dos eleitores são sobretudo morais, a candidatura Serra foi profundamente atingida, como propõe a manchete de hoje do JB: ?Escândalo pode tirar Serra da sucessão?. O Globo também anuncia na sua primeira página um acirramento ?da crise tucana?.

Por que Veja se voltou contra Serra?

Ao construir um caso contra Serra de forma tão incisiva e estudada, a partir de fatos que já eram conhecidos, Veja derruba as teorias que colocavam a revista, e o os meios convencionais de comunicação em geral, como fechados com a candidatura Serra. O que aconteceu? As teorias estavam erradas? Ou o racha no bloco de poder é mais profundo do que se imaginava? Há pelo menos três explicações para a virada de Veja, todas compatíveis entre si.

A hipótese da competição jornalística

A explica&ccedccedil;ão mais inocente para a reportagem de Veja contra Serra é da competição jornalística pura e simples. Veja precisa disputar com Época um mercado cada vez mais difícil, em que vem ocorrendo queda tanto de vendagem quanto de publicidade. Esse é o mecanismo virtuoso, da competição jornalística, que faz com que cada veículo queira superar o outro, com ?furos? de reportagem. O leitor e a democracia, em tese, saem ganhando.

Foi esse mecanismo de competição virtuosa que levou o Washington Post e o The New York Times a perseguirem incessantemente o escândalo Watergate, até a derrubada de Nixon. O processo se reproduziu no Brasil, duas décadas depois, quando Veja e IstoÉ competiram pela primazia do ?furo? na devassa do governo Collor, que finalmente levou também a seu impeachment.

Esta semana, Época também saiu com uma informação nova sobre o escândalo das privatizações, reforçando a hipótese de que, mesmo havendo outros motivos, as duas revistas entraram em regime de competição virtuosa pelo ?furo?.

A hipótese patrimonialista

Mas o ?furo? de Veja foi forçado: uma cozinha de coisas já sabidas. Uma segunda hipótese, que não exclui a primeira, é a de que os Civita decidiram atacar o esquema Serra por considerarem que é também o esquema Globo. Na campanha de 1994, houve uma guerra de religiões subjacente à guerra política. Nesta campanha pode estar havendo uma guerra entre grupos de comunicação, subjacente à disputa eleitoral. Tanto assim que Silvio Santos foi descartado como solução do PFL, porque empurraria a Globo para outros candidatos, talvez até para Lula. A crise do setor de comunicações é profunda e generalizada, fazendo com que cada empresa se sinta ameaçada pelas demais. E cada uma tenta cobrir os prejuízos operacionais mamando patrimônio nas tetas do Estado: empréstimos e concessões de bandas de rádio, TV e TV a cabo.

A gota d?água, para a Abril, seria o empréstimo de US$ 500 milhões que a Globo acaba de receber do BNDES. A Globo é hoje a grande predadora do mercado da Abril, justamente através do lançamento de Época . Veja é a grande máquina de fazer dinheiro dos Civita. A semanal da Globo não tirou inicialmente muitos leitores de Veja, mas tornou impossível o crescimento desta revista e ainda abocanhou parte de sua publicidade, além de levar parte de seus quadros jornalísticos. O próximo ataque da Globo contra a Abril é o lançamento da ?Vejinha de Época?, a partir do diagnóstico de que a Vejinha é hoje o pilar de sustentação da Veja.

A hipótese a rearticulação política

Essa é mais forte. A fritura de Serra teria sido uma decisão do grande empresariado, para permitir a recomposição do bloco de poder e assim zerar a campanha e derrotar Lula. Vinicius Torres Freire, na Folha de hoje, fala em ?campanha da direita do governo para derrubar (Serra)?.O próprio Serra ?acha que está sendo vítima de um complô articulado por setores políticos e empresariais interessados em trocar o candidato tucano…?, conforme reportagem da Folha de hoje. O Estadão de ontem diz que o comando (do PFL) está sendo ?pressionado por empresários, banqueiros e investidores? para recomporem a aliança com o PSDB, temendo o cenário do turno único com Lula.

O sacrifício de Serra é necessário a essa recomposição, como Bornhausen não se cansa de dizer. Veja pode ter tomado a iniciativa como parte dessa manobra. Mesmo considerando as outras hipóteses, a da competição jornalística e da competição patrimonialista, Veja não teria estruturado sua reportagem para atingir Serra se isso não fosse compatível com algum tipo de articulação política das elites dirigentes. E essa articulação só pode ter como objetivo tentar impedir a vitória de Lula.

A hipótese da rearticulação do bloco de poder é reforçada pela participação ativa de tucanos na denúncia. Claro que todos eles magoados pela escolha de Serra, mas esse é o fator subjetivo da crise. Já há claramente uma ala de tucanos que propõe tirar Serra para reconstruir o bloco de poder. O risco da operação é o envolvimento do governo FHC, por improbidade ou prevaricação. Por isso a reportagem de Veja é cuidadosa e faz questão de isentar o presidente.

A guerra dos Estados Unidos contra o mundo

Foi esse o tom de diversos editoriais deste fim de semana, após a decisão do Congresso dos Estados Unidos de destinar US$ 180 bilhões a subsídios agrícolas nos próximos dez anos, prejudicando diretamente os produtores brasileiros. ?Estados Unidos declaram nova guerra protecionista global?. Comentário forte e conciso de Gilson Schwartz, na página B2 da Folha de domingo. Ele sustenta que ao fechar ainda mais os mercados aos produtos dos países periféricos endividados, o governo norte-americano torna esses países ainda mais dependentes do FMI e do Banco Mundial.

O Estadão, sempre americanófilo, dessa vez atacou os Estados Unidos: ?Um golpe contra o comércio agrícola? é o título de seu editorial principal do domingo, que termina criticando o servilismo do governo FHC: ?O Brasil pode acionar os Estados Unidos na OMC, mas o governo, embora com pareceres favoráveis, ainda não iniciou o processo. O que está esperando??

Época dedicou um editorial sobre o que chama de ?antiamericanismo?, em que seu editor Paulo Moreira Leite critica duramente a política externa norte-americana, dizendo que : ?Bush tornou-se incapaz de distinguir parceiros de adversários?.

Não deixe de ler

– A declaração de princípios de André Singer, que assume o cargo de porta-voz da campanha de Lula. Ocupa a íntegra da página 46 de Época desta semana. Singer explica que aceitou o convite como um duplo privilégio: o de manter o compromisso com a verdade, transmitindo de modo correto e veraz as opiniões e propostas da candidatura, e o de protagonizar as transformações que o Brasil exige, um sonho da sua geração.

– A reportagem das páginas 32 e 33 de Época, revelando que o vice de Garotinho, o jurista Costa Leite, trabalhou durante mais de dez anos para o SNI durante a ditadura."