Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Cobertura americanizada

1991 ? 2003

Wellington Otto Bahnemann (*)

Não é de hoje que a mídia brasileira sofre a crítica de estar se americanizando. As empresas jornalísticas, que atravessam um momento de crise financeira, não resistem à influência dos grandes conglomerados americanos de comunicação e a sua alta capacidade de investir ao redor do mundo, tornando-se difusores da ideologia americana, sem que grande parte do público perceba.

Ernesto Paglia, repórter da TV Globo e ex-corresponde da emissora em Londres, alerta para os impactos que esse fenômeno tem sobre a qualidade da mídia brasileira. Segundo ele, no Brasil é praticado um "jornalismo de segunda mão, já que se copia e se reproduz tudo que é americano, principalmente da CNN e, em menor escala, de agências de notícias estrangeiras, como a inglesa Reuters".

A grande diferença, e que desequilibra em favor das empresas americanas, é o fator econômico, aponta Paglia. "Não dá para competir com eles. É só ligar a TV na CNN e ela está mostrando ao vivo o conflito na Venezuela. Essa é a desvantagem de se trabalhar com poucos recursos e pouca gente. Você acaba ‘comendo na mão’ de quem tem mais estrutura", completa.

Segundo o repórter Breno Altman, da revista Reportagem e do sítio Oficina da Informação, "projetos mais ambiciosos, como o da Folha de S.Paulo, que visava ter correspondentes em Tóquio, Moscou, Pequim, duraram pouco".

O atraso da mídia brasileira fica evidente numa cobertura de guerra. Sem recursos para enviar equipes ou para manter escritórios em outros países (a Rede Globo os tem somente em Nova York e em Londres), fica à mercê das informações e das imagens concedidas pelas redes americanas. Estas detêm amplas redes de cobertura, espalhadas ao redor do mundo, e disponibilidade de recursos financeiros e técnicos. Isso possibilita registrar qualquer fato importante que acontecer, independentemente do local, a qualquer momento.

Paglia relembra que esse processo teve início na Guerra do Golfo, em 1991, quando a CNN passou a retransmitir imagens e informações para a TV Bandeirantes. "Hoje, esse processo foi disseminado pelas emissoras brasileiras, todos fazem isso. A CNN, por sua vez, realiza acordos com esses veículos, que utilizam seu conteúdo. Este aspecto foi importante para ser conhecida não só no Brasil, mas também em todo o mundo."

A hegemonia destes veículos é tanta que eles são capazes de monopolizar a cobertura de um fato. Isso ocorreu, por exemplo, na libertação de Nelson Mandela, em 1990, na Cidade do Cabo, África do Sul. Paglia conta que no dia do ocorrido não foi possível realizar a transmissão do evento para o Brasil, porque as redes dos EUA já haviam alugado todos os equipamentos retransmissores existentes no local.

Outra conseqüência da falta de estrutura é que o jornalista brasileiro chega ao evento durante seu desenrolar. Segundo Altman, "raramente o repórter é enviado ao local do conflito ou das manifestações, e quando isso acontece é para fazer ‘contabilidade de guerra’. Por exemplo, as revistas não tinham correspondentes em Buenos Aires quando houve a queda de Fernando de la Rúa (ex-presidente da Argentina). Acabaram enviando às pressas. O fato, a matéria-prima do jornalismo, não está mais lá, já desapareceu". Com isso, as matérias produzidas serão muito mais opinativas, análises beirando o "achismo".

Quem perde com isso é a própria mídia, pois sua credibilidade acaba sendo questionada. Uma vez que as notícias são provenientes de emissoras estrangeiras, o jornalista brasileiro, que não pôde ir ao local do acontecimento, não conseguirá verificar a veracidade do que foi divulgado. Isso abre a possibilidade para que o fato tenha sido distorcido ou negligenciado.

O fator econômico

Outro aspecto destacado por Paglia é que, indiretamente, a empresa jornalística estará reproduzindo o discurso de um terceiro, e não o seu. "São informações produzidas por outras organizações, que possuem seus proprietários, pontos de vista, ideologias, que, certamente, não serão nem uma visão brasileira e nem serão isentos", adverte.

Um exemplo disso ocorreu recentemente. Quando houve o golpe na Venezuela, em abril de 2002, as empresas brasileiras, que não fizeram a cobertura no local, reproduziram o discurso dos veículos venezuelanos e americanos, que são contrários ao presidente Hugo Chávez. Segundo Altman, "todos os jornais cravaram que Chávez sairia. Não houve nenhum jornalista que procurou mostrar o outro lado, os que o apoiavam".

Em relação à América Latina, a postura da mídia brasileira é de estranhar. Nos últimos anos, a região ganhou importância geopolítica muito grande no cenário internacional. Entre os motivos estão a guerrilha na Colômbia, os golpes políticos na Venezuela e a crise econômica na Argentina. O modelo neoliberal sofre sua crise mais profunda e a população busca novas formas de organização dos países e das sociedades.

O jornalismo brasileiro, porém, não tem acompanhado essa trajetória, mantendo a cobertura internacional limitada aos EUA e à Europa. "A lógica é Paris, Nova York, Londres e, algumas vezes, Roma. A América Latina não existe", diz Altman.

A parcialidade é refletida diretamente na qualidade da informação, que, muitas vezes, é preconceituosa na abordagem dos fatos. Altman cita como exemplo o espaço dado à crise da Argentina. "A Argentina é considerada um mercado, e não uma nação. Fazer a análise da cobertura no caderno de economia é querer esterilizar na concepção do brasileiro que o povo pode se rebelar e mudar o país se quiser."

Esse fenômeno também pode ser observado com freqüência na atuação dos EUA e seus aliados em conflitos armados. Na questão do Oriente Médio, por exemplo, é comum à mídia brasileira caracterizar os atos dos palestinos como "terrorismo", enquanto o genocídio praticado por Israel, apoiado pelos americanos, é "intervenção". Como tudo no capitalismo, o fator econômico também influencia o nível do jornalismo que é produzido.

(*) Estudante de Jornalismo da PUC-SP; as fontes deste texto foram as palestras do 2? Curso de Informação sobre Jornalismo em Situações de Conflito Armado, da Oboré Projetos Especiais Comunicações e Artes (2002)