Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Correio da Bahia

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

ASPAS

MEMÓRIAS DAS TREVAS

"O domador de gafanhotos mortos", copyright Correio da Bahia, 28/2/01

"João Carlos Teixeira Gomes Fonseca, o Joca, sempre foi um homem de conflitos. Conflitos pessoais, conflitos familiares, conflitos profissionais. O calhamaço Memórias das trevas, primário e indigesto material de propaganda política que ele acaba de lançar, por encomenda de alguns de seus novos amigos de 30 milhões de dólares, é uma enfadonha catilinária que reúne, em longos capítulos, alguns de seus conflitos publicáveis, a que se podem juntar, como epílogo, os recalques de uma velhice feita de isolamento, de inveja, de frustrações e de uma surdez física e espiritual há muito revelada. Pobre Joca. E só tem 64 anos, idade para as condecorações dos heróis ou o enterro simbólico dos canalhas.

Que fazer? Ele se sente herói. Confessa-o logo na apresentação de seu calhau. Está na página 30: ‘Heróico não foi apenas enfrentar a ditadura e as perseguições de Antonio Carlos Magalhães. Heróico foi também – todos devem sabê-lo – publicar este livro’. O Joca, num quixotismo de certa forma compreensível dentro do universo de seus múltiplos conflitos, se considera herói por enfrentar, pela ordem, a ditadura, as perseguições do então prefeito Antonio Carlos Magalhães e a publicação de suas memórias. De todos os inimigos, a publicação de suas memórias deve ter sido realmente o mais difícil, o mais heróico. Por quê?

As Memórias do Joca, com que ele pretende devassar a vida pública e particular do senador Antonio Carlos Magalhães, são, no fundo, a egobiografia mais canalha entre as que já se escreveram e se publicaram neste país de 500 anos. Mais que do estilo, é do caráter, melhor dizendo, é da falta de caráter do Teixeira Gomes pongar na vida de homens ilustres para se projetar. Foi assim com Glauber Rocha, a quem intitulou, com justiça, de esse vulcão, mas a cuja sombra viveu e ainda hoje vive, como borralheira, parasita, sem nada de nobre acrescentar à memória do grande cineasta, de cuja convivência casual se utiliza para enriquecer seu currículo de ex-redator chefe de um jornal que já não existe. Agora, se bem que por outras vias, está pongando no prestígio do senador Antonio Carlos Magalhães para aparecer, sem se dar conta, porém, do terreno movediço em que pisa.

Não nos consta que o autor das Trevas, modesto professor da Universidade Federal da Bahia, disponha de recursos financeiros para editar um livro de cordel, para colocar um anúncio nas páginas de classificados de qualquer jornal trimestral do interior do estado, muito menos para financiar a campanha publicitária de lançamento de um panfletão de 768 páginas de repetitivas inutilidades.

No entanto, os anúncios do lançamento das Memórias do Joca estão nas páginas dos principais jornais do país, enquanto os de Salvador estão anunciando edições esgotadas e outras para se esgotar. É uma campanha milionária, sem precedentes na história editorial do país. Teria o Joquinha acertado na Megasena? É a hipótese mais plausível, já que não nos passa pela cabeça a idéia de que alguém esteja se aproveitando de suas memórias para lavar dinheiro, em nome da cultura e da democracia. De qualquer forma, porém, o certo é que jamais na história editorial do Brasil se investiu tanto na vendagem de um apanhado de arquivo morto transformado em livro como nas Memórias de Joca. Há cheiro de podridão nas trevas desse calhamaço.

***

O senador Antonio Carlos Magalhães de certa forma tem culpa pela existência do T. Gomes em sua vida. Se quando o T. Gomes, então redator-chefe do Jornal da Bahia, foi trabalhar na Sutursa o prefeito aceitasse seu paletó na cadeira como sinal de sua presença, estaria tudo resolvido. Mas o prefeito era Antonio Carlos Magalhães e exigiu presença física do diretor. Presença física e trabalho. Só. Não há nas Memórias do Joca uma linha sequer mostrando qualquer tipo de pedido, muito menos de pressão do prefeito sobre seu assessor de turismo para que ele desenvolvesse serviços extras como jornalista em troca de seu salário. Uma linha sequer para provar que Antonio Carlos Magalhães pretendeu comprá-lo como jornalista influente, compensando-o com uma diretoria fantasma.

Toda a briga de Joca – e em seu esteiro do Jornal da Bahia – com o então prefeito e mais tarde governador Antonio Carlos Magalhães foi motivada apenas porque um queria emprego e o outro, trabalho. O próprio T. Gomes assume a atitude de réu confesso. Na página 77 de seu calhamaço, ele confessa que, por causa de uma nota que escrevera criticando o então governador Luís Viana Filho, o prefeito Antonio Carlos começou a lhe exigir o cumprimento rígido de horários na direção da Sutursa, ‘como se eu fosse um funcionário qualquer, subordinado às suas ordens’. O prefeito havia se esquecido de que o diretor da Sutursa não lhe devia obediência, porque o diretor da Sutursa era o Teixeira Gomes, o poderoso redator chefe do jornal da Barroquinha.

Ainda hoje se pergunta por que Joquinha aceitou ir trabalhar na prefeitura com Antonio Carlos Magalhães. Sua resposta é convincente. Conta no livro que, chegando de uma viagem a Portugal e às colônias de Angola e Moçambique, entusiasmado com o que lá viu, disse ao amigo Flávio Costa, também da Sutursa, que poderia desenvolver um bom trabalho em termos de turismo em Salvador. Em dois tempos foi nomeado. No entanto, ‘cedo percebi que a Sutursa era bem mais um cabide de emprego que um órgão de turismo, escoadouro de interesses de vereadores e apaniguados municipais’, revela em suas Memórias. Mas lá ficou durante dois anos, dias soturno, dias alegre, mas sempre recebendo seu salário complementar em dia e estudando o turismo noturno de Salvador, nas madrugadas da Ladeira da Praça. Competente o diretor de Turismo da Sutursa, no pleno gozo de sua sinecura.

Ora, o que se esperava? Uma promoção? O prefeito Antonio Carlos Magalhães fez o que ainda hoje qualquer administrador sério faz com o servidor relapso. Mostra-lhe o caminho da rua, não importa que ele seja doutor, escritor, imortal ou um compenetrado chefe de redação de qualquer jornal. Joca escreveu 768 páginas de sua intragável catilinária sem conseguir provar, uma vez sequer, que o prefeito exigiu dele uma nota, uma frase, uma vírgula ao menos em troca da garantia de sua sinecura. Não lhe exigiu, não lhe pediu, ao menos insinuou um mínimo de lealdade. Exigiu trabalho. Aí ele foi embora uma vez, voltou, não se corrigiu, foi-se embora outra vez e por lá ficou sem fazer falta ao serviço público, muito menos ainda ao jornalismo baiano.

Agora ele volta com seu calhamaço de aluguel, vomitando suas mágoas e suas múltiplas frustrações contra Deus e o mundo. Agride o presidente Fernando Henrique Cardoso, agride o professor Roberto Campos, é grosseiro e injusto com o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas, Antônio Roberto Pelegrino, pai do candidato à prefeitura de Salvador nas últimas eleições, deputado federal Nelson Pelegrino, e não poupa nem o próprio pai, Teixeira Gomes, trazendo ao conhecimento público através de suas Trevas um fato desabonador de sua memória e de sua moral.

O destinatário principal da ira incontida de Joca, porém, embora possa parecer o senador Antonio Carlos Magalhães, na verdade é o jornalista João Falcão, proprietário do Jornal da Bahia, que incluiu sua cabeça nas negociações para a transferência das ações do jornal ao senhor Armando Gonçalves, como se fosse um móvel qualquer já sem nenhuma serventia. Ele depõe nas páginas 278 e seguintes de suas Trevas: ‘Não me agradava a maneira como João Falcão dirigia o Jornal da Bahia. Durante um certo período estivera ausente, distante, parecendo mais motivado pela condição de banqueiro. Reconhecidamente, não era um empresário audacioso, ganhara fama de cauteloso em excesso, sobretudo quando audácia significava coragem para investir e modernizar o jornal… Falcão muitas vezes se perdia em miudezas, que não deveriam ocupar um diretor, opinando até, em inócuas reuniões, sobre o uso de vinhetas e outras quinquilharias desse teor… Não são muitos os diretores de jornais que agem como profissionais do ramo. Costumam-se trancar em seus gabinetes e receber as homenagens e benesses que o poder emanado do cargo lhes oferece…’

‘Certo dia, numa reunião em seu gabinete, Falcão, de chofre, virando-se para mim, disse: Não julgue mal a proposta, mas você não gostaria de negociar sua estabilidade com o jornal? Afinal, seria um meio de comprar um apartamento para você e sua família… Fiquei surpreso com aquela súbita e rara preocupação com o conforto dos meus familiares, que ele mal conhecia e logo percebi que naquele mato havia cobra escondida. Afinal, o jornal fixou unilateralmente o valor que me dizia caber: 500 mil cruzeiros, dinheiro da época… A pior reação, porém, veio dentro da minha própria casa. Minha mulher Iracy encheu-se de revolta e de indignação contra o dono do jornal, lembrando que ele acenara com uma proposta de negociar para que eu pudesse comprar um apartamento maior e mais confortável para minha família…’

Joca não fala mal apenas dos vivos. Viu-se como nem a memória do pai ele respeita. O que ele escreve em seu livro sobre o jornalista Orlando Garcia, morto no ano passado, é de uma crueldade requintada: ‘Indisciplinado e forçando um apoio inviável, articulou-se, à socapa, com mais dois colegas, numa trama para derrubar-me do cargo de redator chefe, durante uma viagem de João Falcão ao exterior. Acabariam deixando o jornal, em conseqüência das manobras, pois venci o complô e afastei Garcia da coluna (Alça de Mira). O Garcia foi mestre na peçonha e ágil na intriga’.

Dos dois colegas a que ele se refere no parágrafo anterior, um já está morto. O outro está vivo, aliás, o outro está vivo, não, o outro é vivo. Trata-se de um dos vários cunhados de Joca, o empresário/colunista Samuel Celestino, respeitável e bem-sucedido homem de negócios do não menos respeitável vespertino A Tarde.

A Tarde, tão estigmatizada pelo quixotesco João Carlos, hoje é a casa onde ele passeia de sandálias de novo pescador. Escreveu que durante a briga JBa/ACM, ela foi omissa, vingou-se dela grafando o nome de um de seus dirigentes em minúsculo, confessa-o hoje com arrependimento, principalmente porque o nome próprio em minúsculo era de um como ele imortal da Academia de Letras da Bahia. Que falha mortal. Mas ele é assim. Em suas quase 800 páginas de velhas ruminações ele também não fala, uma vez ao menos, de Antonio Carlos Magalhães como administrador. Devassar a vida de um cidadão e não lhe apontar ao menos os erros como executivo seria uma incoerência, se partisse de alguém sério e coerente, mas a catilinária das trevas foi escrita, presume-se, por Joca. Não há por que esperar, muito menos exigir coerência. Ele é incoerente e inconseqüente por natureza. Seu cunhado empresário/colunista – o Musinho da ABI – sempre se queixou disso, desde o tempo em que se acotovelavam em busca de espaço no finado jornal da Barroquinha. O Samuel Celestino e o Joca sempre foram dois profundos poços públicos de vaidade.

O capítulo que Joca dedica em sua catilinária a Waldir, como dizem os comentaristas de cinema, é imperdível. Aliás, é a única parte do calhamaço que realmente presta. Para que não se perca tempo, é o capítulo V. Nele, Joquinha derrama toda sua ira contra o doutor Waldir, ‘homem de idéias congeladas e irremovíveis que, em certas ocasiões, argumento algum conseguia alterar, Waldir Pires organizara sua comunicação atribuindo peso excessivo ao papel do publicitário Sérgio Amado e de seu velho amigo Acácio Ferreira, um sociólogo sem nenhuma tradição no ramo, a quem foi entregue a direção do Irdeb’. Joca dedica 94 páginas de suas Trevas à política de comunicação do governo da mudança, durante o qual a comunicação do estado se escondia atrás da sigla Cocom, que a oposição chamava de Cocô, tendo como agente administrativo do sanitário principal o grande jornalista T. Gomes. Cada sanitário tem o agente que merece. E vice-versa.

Em sua eubiografia das Trevas, ele revela mágoa pela situação de constrangimentos por que passou. E não era para menos. Afinal, Joca é um pavão. O livro é chato, pesado, sonífero, mas quem conseguir chegar à página 302 vai ver o cúmulo do absurdo. Vai vê-lo dizer que, além de combater ACM, sua vida se dignificou pelo fato de ele ter partilhado de alguns acontecimentos históricos da humanidade, entre os quais a chegada do homem à Lua, a ascensão do papa João XXIII e o surgimento do movimento hippie, com suas drogas, flores, paz e amor. Nada disso teria acontecido sem o testemunho do assessor-chefe da Cocom do governo Waldir Pires.

O título completo da catilinária de T. Gomes é Memórias das Trevas – Uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães, que ele alega não ter publicado há mais tempo por causa do medo das editoras. Medo coisa alguma. Ninguém quis editar o calhau porque ele não presta. Quem o está financiando e comprando edições inteiras usa o pobre do Joquinha para fins políticos. E ele, como gosta de aparecer, está adorando, o coitado. O título vende, não pelo autor, um desconhecido ex-jornalista de um ex-jornal há muito sepultado, sem qualquer glória. Vende pelas expectativas que o termo devassa cria. Mas não há o que devassar na vida de Antonio Carlos Magalhães. Ele é a figura menos vulnerável de toda a maçaroca do Joca, que ainda não se compenetrou de que não passa de um domador de gafanhotos mortos."

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