JORNALISMO SEM CIÊNCIA
José Antonio Palhano (*)
Se a memória não rateia, a expressão "efeito manada" é da lavra do ministro Pedro Malan. Quando menos, o dito cujo já a usou repetidas vezes na intenção de aferir os humores do tal mercado nestes tempos em que os capitais evoluem em revoada, cheios de amor pra dar nas aterrissagens, obscenamente gordos e debochados nas decolagens. Tão eficazes se tornaram em suas rapinagens planetárias que deixam atrás de si, à moda das tropas de gafanhotos, um rastro de destruição cuja autonomia cosmopolita bem lhes confere um caráter essencialmente epidêmico.
Se as rimas acima são paradoxalmente pobres frente a tanta e transacional bufunfa, o raciocínio serve para tratarmos de revoadas outras ? por exemplo, aquelas relativas ao Aedes aegypti. E dos estragos resultantes da turbulência que açoita nossas redações ? efeito colateral, aliás, perfeitamente admissível visto tratar-se não só de pauta médica por excelência, como também sujeita aos desdobramentos típicos de uma peste aguda e ligeira que, entre outras particularidades, pega tanto rico quanto pobre, coisa esquisitíssima numa nação tão ciosa da sua estratificação social (e que só por isto já faz um estrago danado).
O efeito manada aqui se dá a partir do exato instante em que rigorosamente todo e qualquer sintoma, de febre, dor de cabeça e coriza a caspa, bicho do pé e chulé, remete o aflito paciente ao serviço de saúde mais próximo. Turbinado, diga-se, pelo noticiário que pulsa com dramaticidade idêntica àquela que regula as maquinetas de uma boa UTI. Antes de tudo, é louvável que a imprensa se esforce para acertar o passo ao ritmo de uma doença que pode eclodir a partir do terceiro dia pós-picada e que ora ameaça, com indisfarçável escárnio, transformar-se em pandemia frente à catatonia alegórica de macróbios virulentos como, apenas para ficar na linha de frente, Anthony Garotinho e César Maia.
Mas talvez um pit stop aqui e ali não nos faça mal. É hora de entender, assim, que a dengue, por si só, pode ser perfeitamente classificada como doença benigna. Maligna é a epidemia. E parece ser este um ponto em que estamos a dar voltas feito muriçoca de ressaca na Sapucaí passada a campeã Estação Primeira de Mangueira. Onde está, mesmo aos olhos leigos de repórteres, editores e apresentadores, a malignidade do processo epidêmico? Exatamente na incúria, irresponsabilidade e vileza dos chamados homens públicos. E isto, convenhamos, é um prato cheio para nós, profissionais da comunicação, mormente em ano de eleições a dar com pau.
Placar nefasto
A questão, portanto, é respirar fundo e estabelecer um limite suportável até o qual podemos ir politizando (e assim pautando) a dengue sem afrontar o cidadão, coitado, sujeito a assimilar a doença muitíssimo mais influenciado por esta pauta sôfrega e dirigida que propriamente a partir das serenas, seguras e, até prova em contrário, alvissareiras orientações que lhe podem ser passadas por um bom clínico.
Ou poderiam, não fosse o tal efeito manada. Reconheçamos: não há criatura que, em sã consciência, não se sinta impelida a se desabalar para o hospital mais próximo após uma olhadela nas primeiras páginas (se lá fosse mesmo veria que muito pouco se pode fazer: ao contrário de picada de escorpião, não há antídoto contra a dengue). Cabem, assim, duas perguntinhas: manchetes, tamanhos de fonte e capas em geral guardam uma relação ideal com a gravidade da patologia ? expurgados seus fatores políticos e os seus índices de safadeza oficial? Ou andamos a ditar a crônica da dengue algumas escalas acima do que seria aceitável em termos estritamente clínicos e sociais ? aqueles que, em última instância, devem ser adotados na abordagem de milhares de cidadãos aflitos e desorientados numa hora dessas?
Observe-se, a propósito, o problema, gravíssimo, da subnotificação. Pergunte-se a um epidemiologista lá de Manguinhos o que ele pensa de uma notificação compatível com a realidade. Ele, na bucha, dirá do seu inestimável valor frente às projeções do futuro e o que se deverá fazer a partir daí, isto se o país efetivamente quiser combater a doença em tempo hábil. Inclusive alertar a contento as vítimas repicadas, mais sujeitas à variante hemorrágica do mal. E aí dá para imaginar a quantidade de pessoas que se recusam a ir até um serviço para dizer do seu quadro (passível de notificação). Apenas e tão-somente porque anda tudo botando gente pelo ladrão e o cara, francamente, já anda humilhado o suficiente nas filas patrocinadas pelos banqueiros.
Em outras palavras, nós, jornalistas, estamos remetendo as galeras, tanto as sintomáticas quanto as assintomáticas, aos hospitais em níveis industriais. E isto, é óbvio, embola o meio de campo. Ou o campo no qual um profissional da saúde bate o ponto, que por definição deve ser calmo, imaculado e sereno. No caso de uma epidemia, faz-se o possível. Mas o que se vê é uma mórbida inversão da variável segundo a qual quem tem o direito de entrar em pânico é exclusivamente a população, não nosotros.
Exemplo? Essa história, notadamente nas edições virtuais que se renovam ao ritmo de bytes e kilobytes, de publicar a toda hora o número de mortos. Um nefasto e alarmista placar, aliás suspeitíssimo em suas intenções e efeitos, bem mais que bucho de mosquito carioca. Em primeiro lugar, cabe-nos, por mais que isto possa parecer frio e insensível, lembrar, e divulgar, que a dengue tem baixa mortalidade, independentemente da incúria dos que deveriam evitá-la. Uma vida vale por ela mesma, e devemos todos, médicos ou não, lutar com todas as forças para preservá-la.
Insensibilidade e incompetência
Coisa bem diferente é lamentar uma vida perdida para a dengue atrelando a respectiva causa mortis a condicionantes estatísticas e demais numerologias, relativas e absolutas, apenas na bem-intencionada porém condenável intenção de fazer crítica política. O bordão "já são tantos mortos" há muito se impregnou em nossas capas na conta de pavorosa advertência, falsa feito uísque paraguaio no seu propósito de focar uma mortalidade que nem de longe diz da realidade. Aos olhos de um leigo, espremido entre o pavor da doença e o ceticismo com os governantes, as reticências que se seguem à macabra e diária frase são traduzidas por um "o próximo pode ser você…".
Nem pensar em tirar a dengue das primeiras páginas. Mas urge separar o noticiário político-administrativo que remete à mesma (100% revelador da incompetência, seja federal, estadual, municipal ou lá que diabos for, e portanto contaminado por irresistíveis e subjetivos níveis de indignação de quem o produz) dos desdobramentos clínicos da patologia em si, de resto tudo aquilo que fundamentalmente interessa ao leitor/paciente, válido o trocadilho. Estes tais desdobramentos exigem, além de noções mínimas de conhecimento da matéria, altíssimas doses de moderação e calma a fim de serem digitados a contento.
Vale a pena voltar ao epidemiologista lá de cima. Ele poderia dizer que mortalidade pra valer, ou seja, capaz de justificar um contexto medularmente dramático, se daria no rastro de uma epidemia de meningite meningocócica, por exemplo. Aí qualquer chilique jornalístico seria aceitável. No presente caso da dengue, se uma só morte já seria revoltante, o índice dos óbitos ? baixo, comparado ao total de casos, não esquecer da subnotificação ? deveria nos motivar a mostrar à população que não é tão difícil assim lutar contra a doença, mesmo com o forfait dos diversos governos.
Em resumo, escorregões eventuais são inevitáveis. O que não pode é inchar artificialmente a real malignidade da dengue apenas na intenção de mostrar que estamos indignados com a insensibilidade e a incompetência oficiais. No mais, é torcer para que os mosquitos debandem logo, feito aqueles capitais canibais.
(*) Médico e jornalista