Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Diogo Pires Aurélio

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A VOZ DOS OUVIDORES


DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Para concluir", Provedor do Leitor, copyright Diário de Notícias (Portugal), 26/2/01

"Manda uma norma do estatuto do provedor do DN que o cargo seja exercido por um período de três anos, não prorrogáveis. Como, no final deste mês, se cumprem três anos desde que iniciei esta tarefa, é altura de deixar a coluna e passar o testemunho a quem vier a seguir.

Não foi uma tarefa sem espinhos, para dizer o mínimo. Sem pretender dramatizar, confesso, no entanto, que me surpreendeu, mais de uma vez, a ideia que uma parte da Comunicação Social continua a cultivar de si mesma. Passado que vai mais de um quarto de século sobre a instauração da democracia, habituados que estamos à livre e franca discussão em todos os sectores da sociedade, não supunha, efectivamente, que os jornalistas ficassem abespinhados à mínima observação dos leitores ou de quem quer que seja, e que a Comunicação, no seu íntimo, continuasse tão renitente a admitir ou discutir os seus erros e a ver-se, como acontece a qualquer indivíduo ou instituição, apanhada em falso e contestada.

É certo que as televisões, as rádios e a imprensa, muito em especial o DN, chamam regularmente a si as várias correntes de opinião e as várias forças sociais e políticas, assegurando assim um espaço de debate, que nunca será demais realçar. Receio, porém, que alguns jornalistas imaginem que a hipótese de ser refutado ou posto em causa se destina unicamente aos outros, àqueles que vêm de fora, convidados para exprimir as suas opíniões. Se eles não se imaginassem uma espécie de encenadores do debate público e que esse papel os punha a salvo de qualquer reparo ou réplica, não estranhariam, decerto, como alguns deles ainda parecem estranhar, que haja alguém que se atreva a questionar aquilo que escreveram sobre um qualquer acontecimento. Será, talvez, um efeito perverso, mas tenho a impressão de que o princípio da neutralidade, imprescindível na apresentação dos factos, pode também ser responsável por essa ideia errada de que a informação é uma actividade alienígena e de que os jornalistas constituem uma espécie de ET a pairar imunes acima do espaço público.

As consequências de semelhante equívoco não se ficam pela atitude de estranheza e resistência perante a crítica. Muito pelo contrário, elas traduzem-se frequentemente numa enorme dificuldade em explicar de forma sustentada aquilo que é noticiado. Creio mesmo não exagerar se disser que a cultura que predomina é insensível à necessidade de provas ou argumentos em abonação do que vem a público. Foi, aliás, um dos aspectos em que mais se insistiu aqui, ao longo dos últimos anos. Não sei se fui convincente, mas a verdade é que sempre me pareceu incompreensível que a uma simples discordância dos leitores, ou a um pedido de explicação para uma reportagem à primeira vista mal fundamentada, o jornalista respondesse indignado. Pedia-se-lhe uma prova e ele sacava de um rol de adjectivos, sugeria-se-lhe um comentário e ele apontava o que dizia ser a imbecilidade de quem ousara questioná-lo.

Bem sei que este mal tem raízes profundas numa cultura, como a nossa, onde o debate se fez muitas vezes aos berros, senão aos murros, e onde o jornalismo se confundiu amiúde com literatura barata. Mais do que a honesta exposição de razões e o confronto sereno de pontos de vista, essa cultura privilegiou, desde sempre, a retórica emplumada, o achado brejeiro ou a tirada assassina. Não estamos, por isso, em face de um exclusivo dos jornalistas. A avaliar por certas cartas que me chegaram, há também muitos leitores que julgam ser essa a única maneira de discutir e que, certamente, ficaram desiludidos quando viram que eu não correspondia ao perfil de justiceiro que eles imaginam ser necessário para flagelar a Comunicação. Simplesmente, a responsabilidade de um leitor, neste particular, não é comparável à de um jornalista. Daí a minha insistência.

Houve outras. Por exemplo, a insistência na necessidade de a informação manter um certo distanciamento quando se está perante causas que todas as pessoas ou, porventura, a maior parte abraça. Timor e Fátima foram dois assuntos a propósito dos quais me insurgi abertamente contra o estilo que este jornal e a maioria dos órgãos de Comunicação Social utilizaram para noticiar o que aí se passou. Como é sabido, houve muita gente que não compreendeu as minhas reticências. Se as lembro agora é tão-só para dizer que continuo a pensar da mesma forma e que, por convicção arreigada, passo muito bem sem as ?páginas heróicas? e os ?títulos eivados de misticismo?, tão do agrado de certa imprensa, que podem arrebatar corações, mas que se esquecem dessa coisa tão simples que é relatar os factos.

Pensei, algumas vezes, se este tipo de questões, além do mais, não iriam desencontradas com a acelerada mutação que se observa actualmente na Comunicação Social, um pouco por todo o mundo. Pensei, inclusive, se o nobre papel que em teoria se reserva ao provedor, teria, na prática, a possibilidade de ser algo diferente de um mais ou menos vistoso papel de embrulho. Concluí que sim, não sei se com razão, mas ao menos com uma boa dose de convicção. Por algum motivo o correio aqui recebido aumentou de semana para semana; por algum motivo, também, há cada vez mais órgãos de informação convertidos à causa da autoregulação. Poderemos sempre, a este respeito, fazer de cínicos e pensar que se trata unicamente de uma estratégia de marketing. Mas houve alguma vez quem o escondesse ou negasse? Não foi, certamente, aqui. O problema, a meu ver, é outro e resume-se nisto: é, ou não, este um serviço em que muitos leitores estão interessados? É, ou não, do interesse comum introduzir no espaço mediático uma zona destinada à intervenção crítica, vinda de outros sectores da sociedade, que possa contrariar o autismo a que, de outro modo, a informação se arrisca? Se eu não estivesse convencido de um tal interesse, teria sido, com certeza, bastante mais difícil honrar o compromisso que há três anos assumi para com o DN e, em particular, os seus leitores.

É a eles, de resto, que devo uma última palavra. Sem a participação dos leitores, a coluna do provedor não faria grande sentido; se não fosse por livre opção do jornal, ela não existiria sequer. Para lá de todas as discordâncias que houve, e apesar das reservas que fui manifestando, de cada vez que julguei conveniente, esta coluna foi sempre um espaço de inteira e total liberdade. Estou certo que o DN vai continuar a sê-lo."

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