Tuesday, 10 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Dogmáticos democratas

DOMINGO ILEGAL

Pedro Eduardo Portilho de Nader (*)

Concordo com Alberto Dines: este debate, em torno da entrevista falsa e da suspensão judicial do programa que a exibiu, não deve cessar. Muito mais do que algumas pessoas acusaram o que consideraram intransigência do Judiciário e a inconstitucionalidade de sua medida. Mais do que isso, foi deflagrada uma batalha contra a suposta censura prévia que estaria contida na decisão judicial de suspender o programa depois que este exibiu a entrevista falsa. Nesta campanha contra a censura, fabricou-se uma discussão sobre o suposto retorno desse dispositivo próprio das ditaduras. Desta forma, a suspensão do programa que produziu e exibiu a entrevista falsa seria um grave precedente jurídico. O pressuposto da campanha: toda suspensão é crivo antecipado e atenta contra a liberdade de expressão, sendo, portanto, antidemocrática. A cristalização deste pressuposto denota pensar a democracia a partir de dogma. A democracia, no entanto, não se assenta em dogmas. Pelo contrário.

A democracia se pensa, efetivamente, a partir de alguns princípios básicos. A primeira destas diretrizes constitutivas da democracia é a da tolerância. Esta diretriz estabelece que a tolerância deve ser estendida "a todos os que não são intolerantes e não propagam a intolerância", para empregar as palavras do filósofo inglês Karl Popper. "Isto implica, especialmente", ele escreveu, "que as decisões morais dos outros sejam tratadas com respeito, enquanto tais decisões não colidirem com o princípio da tolerância" [Popper, K. R., A sociedade aberta e seus Inimigos, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 3? edição, 1998. Estou me referindo especialmente à nota 6 do capítulo 5 e, ainda, à nota 4 do capítulo 7. Todas as citações feitas aqui e na seqüência encontram-se numa ou noutra das duas notas.].

Desta maneira, a tolerância não é ilimitada: é imprescindível estar preparado para defender uma sociedade tolerante contra as investidas intolerantes. Estender a tolerância ilimitadamente àqueles que são intolerantes levaria à derrocada da tolerância por causa dos ataques contrários a ela. O que não significa "que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes", na medida em que elas devam ser controladas pela argumentação racional, característica própria da democracia. Entretanto, na medida em que a própria argumentação racional seja combatida pela intolerância, a diretriz da tolerância determina a necessidade da defesa da democracia. "Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância".

A força do dogma

Outro princípio fundador que se depreende da diretriz da tolerância trata da necessidade "de salvaguardar os outros princípios pelos meios institucionais de uma legislação, em vez de pela benevolência dos que estejam no poder". Deste modo, uma Constituição democrática e seus princípios básicos regem-se pela diretriz da tolerância: assim se deve entender, por exemplo, o princípio da liberdade de expressão. Regida pela primeira diretriz, e tal como essa, a liberdade de expressão não é ilimitada: ela não contempla os que extrapolam, desrespeitam e ferem o princípio da liberdade de expressão e que, portanto, igual e concomitantemente abusam, ofendem e agridem a diretriz da tolerância. O direito à liberdade de expressão não pode ser estendido irrestritamente àqueles que, pretensamente através deste direito, atacam o princípio da tolerância. A liberdade de expressão deve respeitar os direitos democráticos fundamentais individuais e coletivos.

A diretriz primeira é facilmente compreensível em tipos específicos e mais evidentes de intolerância ? sobretudo, políticos, paramilitares, religiosos radicais e terroristas, enfim, em casos que assumem caráter doutrinário (ou "ideológico", como abusivamente se emprega o termo). No entanto, não é difícil perceber que ela é pertinente em casos em que a intolerância ocorre sem necessariamente possuir caráter doutrinário ? como no caso da entrevista falsa do programa. A entrevista desrespeitou a liberdade de expressão e ofendeu, assim, o princípio da tolerância.

Assim, retomo brevemente um exemplo que já usei (retomo-o tanto para explicitar uma ou duas novas considerações a seu propósito quanto para reforçar a proposta de discussão contida nele e que não vi mais ninguém suscitar. Não o considero importante porque eu o suscitei; pelo contrário: suscitei-o porque o considero esclarecedor.): uma emissora infringe a lei eleitoral exibindo uma entrevista com um candidato na véspera da eleição. A lei eleitoral prevê a suspensão da emissora como punição pela infração. A Justiça Eleitoral, então, suspende a emissora por um certo tempo. Para os "dogmáticos democratas", a lei eleitoral deveria ser considerada inconstitucional, pois a suspensão da emissora seria crivo prévio ("toda suspensão é censura"!). Embora seja fácil perceber que a suspensão se trata de punição pela infração cometida, não sendo o caso de a Justiça Eleitoral ter censurado conteúdo(s) futuro(s) da programação da emissora, os adeptos do fundamentalismo democrático devem ver aí, por força do dogma, censura preliminar. Censura prévia haveria se a entrevista na véspera da eleição fosse proibida de ser transmitida por imposição da Justiça Eleitoral!

A entrevista e o candidato

De modo similar, podemos tomar um outro exemplo, também de cunho eleitoral, talvez ainda mais esclarecedor (agora um exemplo que eu ainda não apresentara): se, durante o período de campanha eleitoral, um candidato, no programa de seu partido no horário gratuito, atacar verbalmente um candidato oponente, a lei eleitoral prevê que o partido do agressor perca parte de seu tempo no horário gratuito num programa futuro (todos sabemos, esse tempo será revertido em favor do candidato agredido). Tirar o tempo (mesmo que parcialmente) equivale a suspender o programa do partido ao qual pertence o candidato agressor. Pela concepção dogmática da democracia, essa suspensão é contrária à liberdade de expressão, configurando crivo antecipado da Justiça Eleitoral. Na verdade, a suspensão é punição porque o candidato agressor foi quem atentou contra a liberdade de expressão. Tirar o tempo, então, não se trata de censura antecipada. Teria havido censura prévia no caso de a Justiça Eleitoral impedir a exibição do programa anterior, aquele no qual o candidato cometeu a agressão verbal, difamação ou ataque à imagem!

A comparação é bastante apropriada: nesse caso, quem perde o tempo é o programa do partido porque o partido é responsável por permitir que seu candidato abuse da liberdade de expressão, do mesmo modo que, no caso da entrevista falsa, o programa foi suspenso porque o programa ? bem como sua produção e seu apresentador (que é o proprietário da produtora) ? é responsável pela exibição da entrevista falsa.

No entanto, o cotejo cessa porque, em princípio, nem na exibição da entrevista com o candidato na véspera da eleição nem no ataque verbal durante o programa partidário no horário gratuito, há apologia ao crime, fraude, falsidade ideológica ou estelionato ao telespectador ? tais como ocorridos na exibição da entrevista falsa.

Preventiva ou punitiva?

A procuradora regional da República Ana Lúcia Amaral observou que o programa não foi impedido de ser levado ao ar por conta do que seria exibido durante o seu horário naquele dia. A suspensão foi decidida não em função de conteúdo futuro, mas como punição devida ao conteúdo passado. Enfim, crivo prévio teria ocorrido se a Justiça tivesse impedido que a entrevista falsa fosse transmitida ? e esse impedimento não aconteceu.

Não obstante, os democratas dogmáticos viram na suspensão o que quiseram ver, independentemente do teor efetivo da decisão judicial. Talvez o exemplo mais contundente seja fornecido por Milton Coelho da Graça, que, logo após o dia em que o programa cumpriu a suspensão, escreveu no Comunique-se <www.comuniquese.com.br> deplorando a decisão judicial: "Nem Gugu nem qualquer outro profissional dos meios de comunicação pode ser censurado previamente sempre que um juiz achar que ele vai fazer algo errado" (grifos dele), associando desta maneira ? tão peremptória quanto indevidamente ? a suspensão judicial a crivo prévio aplicado sobre o que seria feito na edição suspensa do programa.

Não satisfeito, o mesmo Coelho da Graça, na semana seguinte, esforçou-se por amparar o que tinha dito. A partir de correspondência que lhe fora enviada por um colega da Folha de S.Paulo, o jornalista trata do texto da sentença judicial e aponta: "O direito do público a uma informação de qualidade e a proteção especial e total que a Constituição garante à família foram invocados [pela sentença judicial] para a suspensão, qualificada de preventiva e não punitiva" (novamente, grifos dele). Assim, no seu entender, o Judiciário violou a Constituição e determinou censura antecipada: afinal, seria a própria sentença da juíza que teria qualificado a suspensão do programa de preventiva, e não punitiva.

O mantra do dogma

A interpretação de texto foi dogmática (segundo o dogma do jornalista, um democrata fundamentalista): lendo a sentença, não se vê a juíza afirmar ou sugerir que a suspensão não era punitiva. É a livre, demasiado livre, interpretação do jornalista que inferiu (!) que, quando a juíza assinala que a suspensão é decidida como uma "medida preventiva", haveria admissão de crivo prévio. Rápido como uma lebre, o dogmático democrata cometeu deselegante e pouco gracioso misreading: faltou sutileza e sobrou vontade de ler mal ao se confundir o emprego da expressão "medida preventiva" com confissão de censura preliminar.

O dogmático parece achar que uma punição teria caráter estritamente vingativo, sem entender que uma punição ao erro ou ao crime cometido anteriormente possui caráter preventivo também ? na verdade, de maneira geral, a prevenção é uma das principais, senão a principal, finalidades da punição, em qualquer âmbito (penal ou, por exemplo, familiar, quando um pai pune um filho por erro cometido. Embora seja possível que alguns pais punam o filho só pelo seu próprio prazer de punir… mas isso é outra questão). O poder cautelar exercido na suspensão do programa possui caráter preventivo. Cabe observar, a livre interpretação do texto não foi tão desimpedida assim: estava completamente atrelada à concepção dogmática da democracia. O dogma foi sobreposto à consideração efetiva do texto judicial.

De modo geral, a concepção dogmática da democracia faz tabula rasa e apaga diferenças, sobrepondo o dogma à análise efetiva do caso concreto. O mantra do dogma ("toda suspensão é censura prévia; toda suspensão é censura prévia; toda suspensão é censura prévia") não deixa os fundamentalistas democratas perceberem a diferença entre a finalidade própria da punição e aquela que haveria no crivo antecipado [Cabe registrar, falei em mantra por sugestão da leitura do texto da procuradora regional da república Ana Lúcia Amaral, que observa que os princípios constitucionais não devem ser tratados como mantras.]: neste, a finalidade é impedir a divulgação futura de determinada idéia ou conteúdo; já na punição trata-se de repreender o conteúdo exibido anteriormente.

Concepção paradoxal

Coelho da Graça e seu colega viram, com pesado esforço e apesar das evidências, admissão de censura prévia na sentença da juíza. Se não conseguissem ver admissão, nada mudaria: como o dogma reza que toda suspensão é censura preliminar, na ausência da suposta admissão eles tratariam de ver na sentença uma significação oculta ? que só eles, os dogmáticos democratas, teriam a capacidade superior para enxergar. De fato, os demais fundamentalistas democratas, que não viram a admissão de censura prévia, assim procederam: pretensamente, somente eles tiveram acesso à significação de crivo prévio oculta na decisão judicial. Fazem uma divisão categórica das pessoas: as superiores (eles!), que deploram a punição-censura, e todos as demais, que se alinham com a suspensão-censura. Assim, formulam afirmações categóricas sobre a suspensão-censura, evitando qualquer dúvida suscitada sobre se se tratou mesmo de crivo prévio: desprezam a argumentação racional e preferem enunciados categóricos.

Os fundamentalistas democratas não discutem os argumentos de que a suspensão não foi crivo prévio e ainda dão simpáticos e condescendentes puxões de orelha naqueles que não são, como eles, iniciados na significação profunda (e oculta) da sentença da juíza. Para os dogmáticos democratas, há uma finalidade profunda e oculta (impedir a divulgação futura de determinada idéia ou conteúdo) por trás da finalidade expressa (repreensão do conteúdo exibido anteriormente). Somente essa pretensa superioridade ? a os separar do resto dos mortais ? é suficiente para caracterizar o seu dogmatismo (bastante) democrático.

Ainda: cabe aqui uma consideração sobre o paradoxo da concepção dogmática da democracia contido neste caso. Alguns de seus mais nobres representantes acusam a suspensão do programa de absurda, posto que caracteriza censura prévia, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, admitem como aceitável ? e até apregoam ? a cassação da emissora. A lógica dos democratas dogmáticos: um programa que exibiu uma matéria execrável deixar de ir ao ar por ser suspenso é antidemocrático, posto que censura prévia; no entanto, esse programa não ir ao ar nunca mais (e, portanto, nunca mais exibir suas matérias) porque sua emissora teve revogada sua concessão é medida democratíssima. Convém observar, nesse caso de concessão revogada, além do tal programa execrável, todos os demais programas, execráveis ou não, da emissora também terão sua exibição suspensa (e, portanto, censurada, já que toda suspensão seria crivo antecipado), o que não parece preocupar os fundamentalistas democráticos.

Selvas e chiqueiros

A faceta mais radical da concepção dogmática de democracia talvez tenha sido melhor expressa por Moacir Japiassu: no título de seu texto (também no <www.comuniquese.com.br>), ele emprega o termo "democracia radical" em contraposição a toda e qualquer censura. O jornalista deplora "a sanha autoritária das autoridades", referindo-se à suspensão-censura. Somente "os desocupados de plantão" e "débeis mentais com PhD em zoológicos" se preocupam com o que o povo assiste, ocupando-se com os programas que o povo assiste para denunciá-los "à atenção inquisitorial da censura". No seu entender, portanto, a Justiça portou-se sem equilíbrio, pois deveria ter simplesmente ignorado o pedido simplório do Ministério Público.

Parafraseando-o: que se deixe o povo assistir a todas as baixarias que quiser; não se proíba nada; não há nada demais em que as pessoas assistam a uma entrevista falsa em que os "artistas" ameaçam matar determinadas personalidades. Afinal, "proíba-se um Gugu que sempre restará um Faustão, um Ratinho". Assim, o radicalismo democrático de Japiassu é fortemente demagógico e manifesta radical e extremo desprezo pelo "povo" que gosta de assistir a programas como o suspenso. Isto embora ele atribua o mau gosto do povo à elite e aos dirigentes do país: na sua postura demagógica, o "povo" não tem sequer o direito de ter mau-gosto, que lhe foi imposto pela elite do país.

Justiça seja feita: o extremismo democrático de Japiassu parece não compactuar com a lógica formulada por outros fundamentalismos democráticos que condenam a suspensão do programa, mas defendem a cassação ? a suspender para sempre o tal programa e todos os demais ? da emissora [Ou não: dado o tipo de lógica impenetrável desses verdadeiros democratas, não seria estranho que Japiassu aprovasse a revogação da emissora. Mas, afinal, é difícil saber. Quanto à impenetrabilidade dessa lógica, ver o final da próxima nota.]. Se os que assistem a esses programas ignominiosos para delatá-los à "censura" possuem inteligência de animais de zoológico, é de se supor que, para o radical democrata, a inteligência do "povo", que não é dono nem de seu mau-gosto e que aprecia esses programas execráveis, seja a de quem reside em selvas ou chafurda em chiqueiros.

Populistas e respeitáveis

Em vez de analisarem a situação efetiva do caso, os fundamentalistas democratas preferiram pensar a democracia a partir de dogma. A concepção dogmática não argumenta; decreta. No dogmatismo, não havendo espaço para a argumentação, nada resta além da plena aceitação ou da rotunda negativa. Democracia pensada por dogma, dogmatismo democrático, democracia dogmática, fundamentalismo democrático, democracia fundamentalista: cada uma das expressões é uma contradição em termos.

Ao contrário do que argumentam os que pensam a democracia a partir de dogmas, a suspensão-punição não foi imprudente e não abre precedente para futuras censuras efetivas. A finalidade punitiva (e preventiva, sim) denotada pela suspensão-punição não tem por que ser confundida com finalidade censória [Aqueles que leiam esse texto talvez possam reclamar da insistência com que é apontada a diferença entre as duas finalidades: essa diferença é muito importante e a insistência torna-se especialmente necessária na medida em que os dogmáticos democratas a negligenciam e a desprezam sumariamente. Quanto a essa negligência, faz pensar que as caixas ósseas que protegem os encéfalos dos fundamentalistas democratas são feitas de material mais rijo e resistente que o habitual.]. Assim, qualquer ato efetivamente censório que possa vir a ser cometido no futuro será feito apesar desta decisão judicial, e não tomando-a como jurisprudência.

A jornalista Leila Reis, do Estado de S.Paulo, usou a expressão "campanha contra a censura" para referir-se aos ataques perpetrados pelos jornalistas reconhecidamente sensacionalistas (especificamente os da televisão e, sobretudo, alguns dos supostamente ameaçados de morte na entrevista falsa) que protestaram veementemente contra a suspensão-censura. Neste caso, as investidas contra a decisão judicial foram, no dizer de Leila Reis, como a própria entrevista: uma grande farsa. Na verdade, para além disso, a campanha foi mais ampla, tendo juntado, a esses jornalistas populistas, colegas profissionais habitualmente respeitáveis que, neste caso, se revelaram sequazes da concepção dogmática da democracia.

Estresse ético

Então, a democracia baseia-se não em pretensos valores superiores (postura que dá em dogmas), mas numa exigência moral por princípio (o da tolerância) e em exigências (igualmente morais) subseqüentes (como os da liberdade de expressão). A concepção dogmática da democracia quer fundamentar-se em valores superiores, tipicamente românticos e, na verdade, sem sentido, tais como "é proibido proibir", "toda e qualquer suspensão é censura" etc.. Os fundamentalistas da democracia recusam-se à discussão baseada em argumentação racional e protestam seus sentimentos humanitários; procedendo desta maneira, agem em conformidade com o conselho de Pareto.

Fora das posições dos dogmáticos democratas, há posições ambíguas e complexas. Um editorial do Estado de S.Paulo ressaltou a controvérsia sobre se a suspensão foi crivo prévio ou punição, ponderando os argumentos dos dois lados. O editorialista acabou por considerar a controvérsia uma discussão menor sobre filigranas jurídicas e saudou tanto a iniciativa do Ministério Público quanto a decisão da juíza, independentemente de ser apenas punição ou censura. Não sabe dizer ? e não se importa com a questão ? se houve crivo antecipado. Infelizmente, assim, aprovou a suspensão mesmo que esta se trate de censura prévia. O editorialista, por respeito à história de seu jornal ? tantas vezes vítima dos desmandos autoritários no passado ?, deveria ser o primeiro a saber distinguir a censura prévia (que tanto afetou O Estado de S.Paulo em períodos de ditadura) e a suspensão do programa.

Há uma dificuldade real. O perigo é que nossa educação ética, assim como nossa educação intelectual, se esgarce estragada pela admiração do brilho, do modo como são ditas as coisas, tomando o lugar de uma apreciação crítica das coisas que são ditas e que são feitas. O perigo aparece nas formulações abertamente autoritárias ("censurem mesmo") e nas ambíguas ("não sei se foi censura ou punição, mas a suspensão é ótima de todo modo"), mas também está presente (e, talvez, por fim, com maior força) nas formulações dogmáticas da democracia ("toda suspensão é censura"). O risco maior é o esgarçamento ocorrer pelo estresse, do material ético e intelectual, causado pelas pressões dos diferentes lados. A posição ambígua, afinal, talvez já seja o sinal desse estresse ético e intelectual.

Mecanismos de vigilância

Finalmente: convém ressaltar, todas estas considerações não precisam denotar, necessariamente, concordância com a sentença da Justiça. O que foi escrito acima não significa aprovação completa à punição dada. Não se trata, aqui, de apoiar e incensar ou então de desaprovar e censurar a suspensão posta ao programa (o mérito dessa questão é outra discussão). [Enquanto o Ministro da Justiça, possivelmente por hábito profissional de advogado de defesa, condenou veementemente a suspensão como sendo censura, o ministro das Comunicações, criticando a entrevista falsa por incitação à violência, observou que suspender a programação não é a solução, acrescentando ainda que as autoridades não podem proibir produções sensacionalistas porque seria uma censura prévia. Defendeu punições como advertência e até a revogação da concessão.]

Importante aqui, sim, é ressaltar que a decisão da juíza não foi inconstitucional na medida em que não configurou crivo prévio. Enfim, o que importa efetivamente, no âmbito deste texto e neste primeiro momento, é combater a força demonstrada pela concepção fundamentalista da democracia nesta controvérsia (e, é claro, também importa fazer isso sem chamar ninguém de fera, de besta, de animal de zoológico ou, muito pior ainda, de xexéu ou bodum grande).

Certamente, é importante que prossiga o debate. No entanto, seria mais proveitoso e auspicioso passar dessa discussão ? se, na suspensão, houve censura prévia (como acusam os dogmáticos democratas ou, ainda, como aplaudem os autoritários) ou simples punição posta devido à grave infração cometida em edição passada do programa ? para a discussão (ainda incipiente e, por isso mesmo, urgentemente necessária) sobre os mecanismos e os instrumentos institucionais de acompanhamento e vigilância adequados em defesa dos direitos efetivamente democráticos de cidadania. Mecanismos aptos a receber e examinar as demandas da população e observar o andamento das concessões; e instrumentos com poderes de sanção para executar punições (cautelares e punitivas) às irregularidades cometidas.

(*) Historiador, doutor em filosofia pela FFLCH-USP

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