Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

“O poder dos jornalistas”, copyright Diário de Notícias, 10/3/03

“Numa altura em que o mundo se encontra dividido sobre uma questão tão crucial como a paz ou a guerra, muitos leitores procuram nos media pistas para compreenderem o que está em causa e lamentam que a maioria dos artigos sobre ?a questão do Iraque? assuma posições meramente ideológicas, baseadas em estereótipos, sem argumentos esclarecedores e fundamentados. No que respeita ao DN, alguns condenam o que chamam ?fervor guerreiro? de certos editoriais, perguntando se, em vez de tentarem influenciar e condicionar a opinião pública, os jornalistas não deveriam apresentar os acontecimentos de uma maneira desapaixonada e transparente. Questionam, por isso, ?o poder dos jornalistas?.

Em momentos difíceis, como o actual, a actividade jornalística suscita sempre debates intensos. Aconteceu isso antes e durante a Guerra do Golfo, em 1991, e mais tarde na do Kosovo. O debate sobre o poder dos jornalistas ? considerado, em geral, excessivo ? não é, pois, novo nem linear. Segundo uns, os jornalistas disporiam de um poder de influência considerável sobre as consciências e os comportamentos. Estariam, mesmo, em condições de definir os objectos do debate social e de impor, sobre eles, os seus julgamentos. As ?vedetas? do jornalismo constituiriam uma elite social específica, capaz de fazer e desfazer hierarquias e reputações. A influência assim adquirida faria deles actores-chave do sistema político, porta-vozes da opinião pública e árbitros de modas intelectuais e culturais.

Segundo outros, os jornalistas dependem de fontes que estão em condições de ?fazer acontecer factos? que são transformados em notícias. A procura de acontecimentos levaria os jornalistas a ficar cativos, não apenas de fontes organizadas e com poder de influenciar o fluxo das notícias, mas também de certos movimentos sociais, ou mesmo de movimentos marginais e terroristas, com capacidade para produzir ?golpes mediáticos? que vão da tomada de reféns a eventos de outra natureza. Os jornalistas tornar-se-iam, nesta perspectiva, ?promotores? dessas iniciativas.

Ora, independentemente da validade destes argumentos, uma análise do poder dos jornalistas necessita de uma reflexão profunda e distanciada sobre as suas práticas. Existem, contudo, alguns obstáculos.

Em primeiro lugar, a existência de uma mitologia quase indiscutível em torno do que é ser jornalista, derivada do facto de a emergência de uma imprensa livre se encontrar historicamente ligada à construção dos regimes democráticos, faz que qualquer discussão sobre as práticas jornalísticas corra o risco de ser vista como uma ataque à liberdade de imprensa.

Um segundo obstáculo deriva de a actividade jornalística não caber na definição de ?profissão? organizada. Ao contrário dos médicos ou dos universitários, os jornalistas não são obrigados a possuir um diploma nem devem o seu prestígio social a um curso especial, mas a outros recursos, como a qualidade da escrita, a visibilidade social, a proximidade com os detentores do poder, a coragem (caso do repórter de guerra).

Uma terceira questão, quase sempre ignorada, decorre de o trabalho jornalístico não poder ser compreendido fora da análise das interacções estabelecidas no seio das redacções ou das relações com as fontes. Existem forças que decorrem dos quadros mentais próprios do campo jornalístico que engendram comportamentos específicos, tais como definições do que é ou não notícia, formas específicas de escrita, utilização de estereótipos e lógicas de afirmação face a títulos concorrenciais. Está provado que o ?saber fazer? dos jornalistas decorre e constrói-se no seio de constrangimentos próprios de uma estrutura de interdependências com a hierarquia, os colegas, as fontes, que nenhum discurso sobre a liberdade do jornalista é capaz de dissipar. De facto, a produção diária ou semanal de um título requer contribuições de serviços e profissionais muito diversos.

Em quarto lugar, há que atender às estratégias comerciais da empresa de comunicação, aos objectivos que fixa quanto aos seus lucros e ao proveito social do público. A importância de uma informação resulta, em grande parte, do que falam outros títulos da concorrência, sendo inconcebível, para um jornal, rádio ou televisão, não cobrir um facto que tenha tido acolhimento nos chamados ?grandes media?. A prática de ?vigilância cruzada? entre concorrentes produz efeitos perversos, como seja a polarização em torno dos mesmos objectos e das mesmas temáticas, com apagamento de outras questões e pontos de vista.

A questão do poder dos jornalistas merece, sem dúvida, ser debatida. Mas as argumentações simplistas devem ser postas em causa. Esse poder, identificado muitas vezes com uma capacidade de influência imediata, esconde quase sempre outros poderes. Daí que deva ser colocada a seguinte reflex&atildatilde;o: o ?poder dos jornalistas? não será, de facto, um poder exercido por uma rede de protagonistas que não se confina aos titulares duma carteira profissional de jornalista?

Bloco-notas

Notícias da guerra

Em 1993, dois anos após a Guerra do Golfo, dois investigadores americanos ? Lance Bennett e Jarol Manheim ? publicaram um artigo sobre a cobertura do conflito efectuada pelo New York Times (NYT), procurando analisar os enquadramentos transmitidos ao público e em que medida eles facilitaram ou impediram um debate esclarecedor, e em tempo útil, sobre a resposta da Administração americana à invasão do Koweit pelo Iraque. O estudo procurou determinar o que é que o público deveria ter sabido no começo do conflito e à medida que este se ia desenrolando, e abrangeu o período de 2 de Agosto de 1990 a 30 de Maio de 1991, tendo sido seleccionadas 4438 peças, incluindo textos noticiosos e editoriais.

Algumas conclusões

O estudo aponta, entre outras, as seguintes conclusões: 1 ? Além do Governo e das chefias militares norte-americanas, o NYT não recorreu a outras fontes nacionais; 2 ? As notícias colocavam forte ênfase nos países aliados dos americanos; 3 ? Os editoriais foram, durante a primeira fase do conflito, fortes apoiantes da política seguida pela Administração Bush, apesar de internamente, no jornal, ter havido oposição por parte de jornalistas que detinham informações críticas em relação ao governo Bush; 4 ? As reticências dos jornalistas só vieram à superfície na altura em que a oposição política à Administração Bush se tornou mais forte e visível; 5 ? O público americano não tinha conhecimentos (ou eram muito escassos) sobre a região na qual se desenvolvia o conflito e sobre a estratégia geopolítica adoptada pelos Estados Unidos num passado muito recente.

Relações públicas

Segundo os autores, o facto de um jornal como o NYT se ter posicionado a favor da política seguida pela Administração Bush nos primeiros três meses do conflito facilitou a campanha de relações públicas organizada para predispor a opinião pública americana a aceitar a opção da intervenção militar na defesa da soberania de um país do qual a maior parte nunca tinham ouvido falar.

A campanha de relações públicas, promovida tanto pelo Governo americano como pela família que no Koweit conduzia os destinos da nação, baseou-se na criação de uma imagem favorável do Koweit, do seu regime político e do seu povo, e na demonização da figura de Saddam Hussein e do seu exército.

Muito tarde

Concluem os autores que o NYT abordou os acontecimentos de forma passiva, absorvendo o discurso oficial sem uma explicação alternativa e crítica da guerra. O debate e a contestação desenvolvidos no seio das elites políticas só surgiu muito tarde e apenas durante um curto espaço de tempo.

Para os autores, isso significa que o público só tem hipótese de contrastar opiniões, informações e perspectivas quando são as próprias elites políticas a manifestar desacordo nos media. Não tendo, neste caso, existido contraste de factos o debate ficou comprometido à partida. As principais fontes dos jornalistas eram provenientes das próprias estruturas do poder.”