ELEIÇÕES 2002
"Imagem e contra-imagem", copyright Folha de S. Paulo, 24/03/02
"O retrato das pilhas de dinheiro que feriu mortalmente a candidatura de Roseana Sarney já foi visto e revisto à exaustão. Primeiro, ganhou a cena pública no ?Jornal Nacional?, depois migrou para os jornais, fez uma escala ruidosa nas revistas e, de volta à TV, foi exposto até não mais poder. Vale dizer: até o poder não mais poder. Tanta exposição precipitou um cataclismo tanto no PFL como na dinastia dos Sarney. É o caso de perguntar: por que uma imagem pode tanto?
Muito se disse que a figura de Roseana Sarney foi implodida não pela notícia do dinheiro, mas pela visão dele, aqueles pacotes de cédulas de R$ 50, R$ 1,34 milhão em notas de R$ 50, em cima de uma mesa de escritório. Aquilo parecia a maquete de um cemitério e, sem dúvida, foi aquela imagem, e não a informação em si, que causou o estrago eleitoral. Mas essa imagem só teve a força que teve porque Roseana era o que era: apenas uma imagem.
Há políticos que não se abalariam nem mesmo se fossem filmados nadando numa piscina de dólares. Existem notórios demagogos que estão imunizados contra qualquer denúncia de corrupção: sua notoriedade e seu carisma canhestro vêm do atributo da esperteza, e a esperteza pressupõe algum grau de desonestidade. Eles roubam e por isso são adorados. Para outros políticos, a simples notícia de um deslize ético, mesmo sem foto de dinheiro, já seria fatal. A figura de Roseana Sarney, que agora desmorona, não era nem uma coisa nem outra. Tal como foi erguida pelo publicitário Nizan Guanaes, sua figura era um caso singular: situava-se numa dimensão etérea, fora do alcance dos ataques verbais, das acusações ideológicas. Sua figura não era feita da mesma substância de que são feitas as idéias ou os discursos políticos, não era produto de vivências sociais. Roseana não era uma figura real, não era uma liderança de massa, não tinha base social que não fosse a miséria de seu Estado. Era apenas imagem. Só isso. Ou tudo isso. Por ser apenas imagem, ou por ser toda imagem, podia passar ao largo dos debates feitos de palavras. Mas não estava a salvo do eventual ataque de uma imagem, ou de uma contra-imagem.
Foi assim que uma imagem ?negativa? (a grana preta sem certidão de nascimento) fez desmilinguir a imagem ?positiva? (o semblante sorridente e vazio da governadora do Maranhão). O dinheiro entrou aí sem ser convidado e assumiu o lugar do conteúdo que aquela face embonecada teimava em recusar ao público. À pergunta insistente, ?mas o que é que ela tem por dentro??, veio uma resposta avassaladora: ?ela tem um carregamento industrial de notas de cinquenta reais?. Roseana agoniza porque foi vitimada não por uma palavra, mas pelo seu próprio veneno: a imagem.
Não que tudo fosse previsível. Esta análise que faço aqui só é possível a posteriori. Os efeitos devastadores da exposição daquela dinheirama surpreenderam os inimigos mais maquiavélicos da candidata e, naturalmente, surpreenderam também a este modesto colunista. O que interessa, agora, é pensar a partir do que o episódio ensina. Quando a publicidade se converte na mediadora principal do jogo político, os apelos sedutores da imagem e os recursos mediáticos suplantam qualquer argumento racional. Aí, fazer política é pouco mais que conquistar minutos a mais na televisão (nisso está lastreada a maior parte das alianças entre os partidos). Os publicitários, convertidos em sacerdotisas do poder, começam a brincar de semideuses. Inventam artifícios, como Roseana Sarney, e, com esses brinquedinhos, podem até ganhar a eleição. A imagem vazia não é certamente uma invenção da televisão, mas na era da televisão se tornou uma das forças mais perversas na política. A imagem vazia está em toda parte. A imagem vazia pode até governar. E, quando cai, parece que só caiu por acidente."
"Eleições limpas (?)", copyright Folha de S. Paulo, 24/03/02
"Nem tanto pelas adulterações facciosas que recebeu na maior parte da mídia, mas pelas reações contraditórias que suscitou, merece algumas reflexões a advertência do senador José Sarney de que, a haver o que considere distorções arbitrárias do processo democrático de eleições, pedirá observadores ?da ONU, da OEA, do InterAction Council e de onde for necessário?, para fiscalizar ?o processo, as pressões, a legislação e os métodos? da sucessão presidencial.
A reação mais realçada foi, como de praxe, a de Fernando Henrique Cardoso: ?No Brasil, quem vigia as eleições é a mídia. Não precisa de mais ninguém, basta?.
Luiz Inácio Lula da Silva encabeçou a linha mais espantosa de reação: ?Somos adultos, temos a instância do Poder Judiciário e, portanto, não acho necessário?. Necessário, na sua opinião, é ?um conselho de representantes dos partidos e da sociedade? para ?fiscalizar o que parte da imprensa faz? e ?se há abuso de poder econômico? na mídia.
Senador do primeiro time e uma espécie de promotor nas inquirições do Senado, Jefferson Perez deu o tom dos que consideram a fiscalização também humilhante: ?O Brasil não é o Zimbábue. As eleições são razoavelmente limpas?.
Em eleições, como em caráter, não há razoavelmente. Eleições são limpas ou não o são. E, se precisam de uma ressalva, ainda que sob a forma de um advérbio manso, é porque sua limpeza não pode ser afirmada.
O Brasil não é o Zimbábue, embora contenha vários Zimbábues, mas também não é a Suécia, a França, o Canadá. Não é nem os Estados Unidos, cujo presidente atual não foi o verdadeiramente eleito, como provou a recontagem de votos, e que por essas e outras está introduzindo medidas de rigor extremo para suas futuras eleições.
A limpeza em eleições tem relação direta com outras limpezas, não havendo aquela onde não existam essas. A vigilância da mídia, a que se referiu Fernando Henrique Cardoso, mesmo merecendo, ela sim, a ressalva incabível nas eleições, tem feito explodir uma sequência de casos que, aqui, só interessam pelo final idêntico em todos.
Uma síntese colhida só entre os maiores escândalos pode começar pelo Sivam, o sistema militar de controle aéreo da Amazônia, que teve sua licitação fraudada para que Fernando Henrique pudesse ligar ao presidente dos Estados Unidos, como fez, para informar que o empreendimento de bilhões ficaria com a empresa desejada pelo governo e pelos militares americanos. O tráfico de influência feito de dentro do Planalto pelo embaixador Júlio Cesar Santos, assessor direto de Fernando Henrique, ficou provado, mas só resultou no prêmio de uma embaixada na Itália para o incriminado. O vazamento de informações sobre a desvalorização do real rendeu muito a alguns; Cacciola, Francisco Lopes, Tereza Grossi e outros foram muito citados, mas não pôde haver as providências devidas.
A CPI dos Bancos, a da Corrupção, a do Proer, a do Financiamento das Campanhas Eleitorais, a das Empreiteiras, entre outras, foram todas bloqueadas pela ação do próprio presidente da República. Por falar nele, o dinheiro não declarado ao TSE da campanha para a reeleição de Fernando Henrique, o chamado caixa dois, ficou provado sem que os bolsos em que foi parar pudessem ser identificados, por falta de investigação. Ah, sim, na compra de votos para a reeleição houve até quem confessasse explicitamente o recebimento de US$ 200 mil, mas investigação não pôde haver. Quem pagou, quem recebeu e quem se beneficiou ficaram impunes.
A privatização do sistema telefônico, com aquelas conversas em que Fernando Henrique autoriza até o uso do seu nome nas manobras para fraudar a licitação, só mereceu investigação como tentativa para identificar quem gravara, não para punir a fraudulência de bilhões e os seus autores-beneficiários.
E o DNER, que há meses está estourando e cujos diretores saíram todos de transações feitas pela Presidência da República? E a Sudam, a que tirou Jader Barbalho do Senado e é o motivo alegado para a operação policial na empresa de Roseana Sarney e Jorge Murad? Acima dos envolvimentos pessoais e empresariais, é um escândalo de corrupção do governo federal: todos os operadores das fraudes e estelionatos na Sudam saíram de transações feitas na Presidência da República – e sua única e urgente providência foi extinguir a Sudam.
O atual governo proporciona à mídia, em média, pelo menos um grande escândalo por semestre. Todos, absolutamente todos, tiveram as respectivas investigações impedidas pelo governo, até com o uso de meios ilícitos, inclusive no Congresso. A ?vigilância da mídia?, que ?basta? para Fernando Henrique, e vê-se que não apenas para fiscalizar eleições, por si só vale muito pouco ou nada. E, por paradoxal que seja, em certo sentido não quer valer, mesmo.
A mídia se orienta por seus interesses. Se, por exemplo, toda a mídia mais expressiva está comprometida com apoio a Fernando Henrique, seja por interesse direto ou indireto, não lhe convém levar adiante caso algum que não convenha ao governo ou a Fernando Henrique em pessoa. Os casos são explorados na superfície e, antes que esquentem reações públicas, cedem seu espaço a outros assuntos. Não há nem pode haver a perigosa persistência, é um jogo da amarelinha permanente, pulos de um escândalo para outro, e pronto.
Em se tratando de eleições, a mídia é um instrumento eleitoral. Usado escancaradamente como foi na eleição de 89, para entregar o país a Fernando Collor e Paulo Cesar Farias, ou de modo menos agudo, por ?bastar? assim a Fernando Henrique, como em 94 e 98. É como instrumento eleitoral que age outra vez: toda a mídia de maior porte está com José Serra, e nenhum assunto que não lhe conviesse conseguiu alçar-se às primeiras páginas e às relevâncias eletrônicas.
As ?instâncias do Poder Judiciário?, sabem Lula e todos os outros, nas eleições estão entregues à Justiça Eleitoral. Mas do seu poder fiscalizador nada se pode dizer, por inexistir como poder e como fiscalização. Faltam-lhe meios, que nem são muito procurados; talvez lhe falte disposição maior e, com frequência, não lhe falta partidarismo.
O que de melhor poderia acontecer à democracia e ao futuro, no Brasil, seria a fiscalização de suas eleições por ONU, OEA, InterAction Council e observadores vários. Não só nesta sucessão presidencial, mas em todas. Não só se houver casos de interferência arbitrária ou extemporânea no processo eleitoral (aí incluído o Tribunal Superior Eleitoral contra coligações), mas desde já e até o fim. Nem a ação fiscalizadora significa humilhação, é apenas o propósito de impedir vícios e viciações. Nem a limpeza das eleições no Brasil pode ser afirmada por quem quer que seja, sob pena de ser esmagado até por documentos da própria e mal denominada Justiça Eleitoral."
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"Explicações grampeadas", copyright Folha de S. Paulo, 20/03/02
"A cada explicação do contrato de R$ 1,87 milhão feito pelo Ministério da Saúde, dois meses antes da saída de José Serra, com a empresa Fence, declaradamente para verificação de escutas clandestinas, mais se constatam inverdades nos esclarecimentos e razões para que o contrato e as relações entre as duas partes sejam examinadas -não só pelas suspeitas, já publicadas, de que aí haja algo relacionado a escutas clandestinas em São Luís.
A nota do novo ministro da Saúde, Barjas Negri, a título de explicação do contrato revelado pelo repórter Otávio Cabral na Folha, deixou os rastros de um arranjo aritmético de última hora, como pretensa justificativa para a multiplicação do valor do contrato por quase seis, ao ser reformulado quando Serra já se aprestava para deixar o ministério. Negri, que falou em 600 itens mensais de verificação por serviço na Fence no ministério, foi desmentido pelo próprio dono da empresa, coronel Ênio Fontenelle, ex-chefe dos serviços ditos de eletrônica do SNI.
Os itens de verificação, disse Fontenelle à Folha, ?são mais ou menos uns 80?, dos quais seria verificado um grupo de cada vez, ?por exemplo, numa segunda e terça-feira, um grupo? de itens. Desmentido também pelo diretor da Polícia Federal, o peessedebista Agílio Monteiro Filho, por dizer que a PF não teria condições de fazer a ?varredura? no Ministério da Saúde, Barjas Negri calou a respeito. Fontenelle não tomou iniciativa para desfazer o quiproquó, mas aceitou falar outra vez à repórter Fernanda da Escóssia, aliás da Folha, e aí tentou atenuar a inverdade pela qual, em país com alguma seriedade, Barjas Negri já estaria respondendo, no mínimo, perante o Congresso.
O valor pago pelo Ministério da Saúde foi mais alto que o preço da Fence para outros clientes, estes também do Estado, porque, segundo Fontenelle, o contrato prevê serviços em três cidades, Brasília, São Paulo e Rio. Nesse caso, já devia começar por ser mais barato pela localização da Fence no Rio, o que dispensa custos de viagem dos seus ?arapongas?.
Fontenelle invocou os custos de passagens aéreas, aluguel de carro e hospedagem para explicar o preço maior. Ora, esses custos existem também para os serviços em outros órgãos públicos de Brasília, aos quais a Fence prestou serviço a preços mais baixos.
Além disso, os custos de viagem, hospedagem e outros não se alteram para a Fence se ocorrem em São Paulo, Brasília outra cidade fora do Rio, por correrem à conta do cliente, estejam ou não incluídos no preço do serviço em si.
Tal como Barjas Negri, que mentiu na afirmação de que o preço subiu porque o serviço passara de semanal a mensal (e o preço não subiu quatro, mas quase seis vezes), o coronel da Fence tentou explicar os 600 itens de Negri argumentando que, ?quando o ministério resolve aumentar a periodicidade, eu volto ao mesmo item três, quatro, cinco vezes no mês?. Para isso, o trabalho teria de ser contínuo, com a média de 20 verificações por dia, inclusive fins de semana e feriados.
Na explicação anterior, porém, aquela que derrubou as contas de chegar de Barjas Negri, Fontenelle negou enfaticamente a possibilidade de verificações diárias e até mesmo continuadas: ?levantariam suspeitas? do grampeador. O serviço ?é com periodicidade irregular?, aquelas tais segunda e terça-feira, mais tarde outro grupo, dando ?mais ou menos uns 80 itens? no mês. Os quais não chegariam a 600, faltando nada menos de 50%, se todos ?uns 80? fossem mesmo verificados cinco vezes em um mês.
Mais suspeitos do que os telefones e gabinetes do Ministério da Saúde são o contrato em torno de grampos e a linha cruzada das explicações de um lado e de outro. Enquanto José Serra finge que não foi sob sua responsabilidade que se deu a contratação da ?arapongagem? em termos pouco sanitários.
Censura
O pefelista Belo Parga pode negar o quanto quiser a intenção de aproveitar o caso Roseana Sarney, em que a Procuradoria da República se situa mal, para desengavetar o projeto de Lei da Mordaça contra procuradores, promotores e magistrados.
O PFL propôs, ontem, que o projeto seja retirado da pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, considerada a má repercussão do gesto de Parga. Melhor, porém, é o raciocínio do senador Osmar Dias, presidente da CCJ: se votada hoje, antes das eleições, a Mordaça será rejeitada; mas, se protelada para depois das eleições, ressurge o risco de aprovação."
"Entrevista – Lula", copyright Folha de S. Paulo, 24/03/02
"-Como vítima de algumas das maiores baixarias já praticadas em campanhas presidenciais, o que o senhor sugere aos seus adversários para impedir que a disputa deste ano vire uma briga na lama?
-Vamos respeitar o povo. Ele tem o direito de escolher entre propostas e idéias, em vez de ser bombardeado por insultos. Em 1986, na campanha pelo governo de São Paulo, o Maluf, o Quércia e o Antônio Ermírio de Moraes passaram meses chamando-se de tudo. Se metade fosse verdade, os três deveriam ter sido presos antes do dia da eleição. O Quércia venceu e todos esqueceram as acusações que tinham feito. Já teve caso de candidato acusado de mandar matar gente, com testemunhas. Foram ver, era mentira. Teve também candidato que fez o que bem entendeu durante a campanha e foi condenado oito anos depois, quando já tinha exercido o mandato. A baixaria destina-se a evitar o debate. O que eu sugiro é um esforço para que se discuta mais e se xingue menos.
-O senhor tem algo a propor?
-O PT vem propondo há quase dez anos o financiamento público das campanhas, acabando com as doações privadas. Essa é uma das melhores fórmulas para acabar com a corrupção política no Brasil. O TSE poderia tomar iniciativas para que as denúncias provadas tramitassem com rapidez, para que o eleitor pudesse ver a ação da Justiça. Veja esse caso do R$ 1,3 milhão achado no cofre do Jorge Murad. É coisa grave e inexplicada, mas quantos R$ 1,3 milhão estão zanzando por aí? Quantos 1,3 milhão custa essa campanha de publicidade que o governo está fazendo? Gastam o dinheiro das estatais e se recusam a informar quanto ela custa. Quer dizer que R$ 1,3 milhão, quando é gasto pelo governo, faz parte da vida normal? É o caso de pensar se não seria útil o TSE formar uma comissão com representantes de partidos e da sociedade para acompanhar a campanha, vigiando os gastos, prestando atenção no equilíbrio dos meios de comunicação. Não precisa chamar a ONU. Nós mesmos podemos fazer.
-O que a imprensa poderia fazer?
-De saída, sugiro que as faculdades de comunicação organizem grupos de estudo para analisar o comportamento da imprensa durante a campanha. Será uma grande oportunidade para os estudantes. Na campanha de 1989, eu e o Covas aparecíamos suados, enquanto o Collor estava sempre penteadinho, com uma samambaia ao fundo. A imprensa pode acompanhar os gastos. Uma vez eu fui a Governador Valadares num aviãozinho que acabou caindo em Juiz de Fora. Quando o Collor foi lá, pousaram 11 aviões. A gente deveria começar a discutir a questão dos debates. Eu falo com a autoridade de candidato que jamais recusou um convite para debater. O formato no qual aparecem dez candidatos respondendo por dois minutos já se mostrou ineficaz. Por que não fazemos debates como no futebol, com disputas dois a dois? Podemos também pensar na volta do palanque eletrônico. O cara senta diante de jornalistas e personalidades e responde a perguntas feitas por eles e pelos telespectadores. A gente precisa botar na cabeça que a eleição é uma oportunidade para estimular a consciência política do povo. As baixarias e a falta de debate destinam-se a evitar que isso aconteça."