Saturday, 18 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Responsabilidade, liberdade e formação", copyright Jornal de Notícias, 10/11/02

"Pergunta José Rodrigues da Silva, do Seixal, se os cuidados do Provedor com os limites dos direitos de cada um têm a ver com uma certa sacralização geracional da liberdade, nascida de meio século de repressão intelectual, de que a censura prévia terá sido até a parte mais visível, mas também a mais inócua.

Para o leitor, a nova geração de jornalistas, se deve lutar contra todas as formas de censura, precisa, em contrapartida, de uma mais intensa formação ético-deontológica que lhe sublime a consciência dos efeitos perversos de algumas notícias — mais na forma do que no conteúdo.

O leitor do Seixal acusa o JN de ser, como Frei Tomás, um mau seguidor das suas próprias palavras. E dá o exemplo de duas notícias de uma mesma página de finais de Outubro (?Sociedade?): uma delas a dar conta do aumento da criminalidade violenta, em Portugal, nos primeiros sete meses deste ano; a segunda, logo por baixo, divulgando a opinião de Carlos Alberto Poiares, docente de Psicologia Criminal, segundo a qual a presença constante de crimes nos noticiários pode gerar ?sentimentos terríveis de insegurança nos portugueses?. Para o especialista, os ?media? levam os cidadãos a formarem uma ideia que não corresponde à realidade.

José Rodrigues da Silva aponta, desde logo, a conflitualidade das duas notícias: se a segunda está de acordo com a opinião do leitor, a primeira, será justamente ?um exemplo de indução de conclusões mal fundamentadas e geradoras do medo, que é o pior inimigo da Democracia?. Isso porque ?o enunciado de dados estatísticos sem qualquer enquadramento e sem um explicação credível pode ser, consciente ou inconscientemente, uma das mais temíveis armas de manipulação da opinião pública?.

Entre outros exemplos de informação ?pouco responsável quanto às consequências?, aponta o leitor o noticiário sobre as acções do assassino em série de Washington, ?e outros escritos que parecem convites a espíritos menos sólidos para que imitem actos de desequilíbrio que vão do do suicídio ao homicídio mais escabroso?.

Veja-se, primeiro, a ?questão geracional? que José Rodrigues da Silva coloca sobre a ?sacralização da liberdade? por quantos foram vítimas da repress&atiatilde;o da heterodoxia e amordaçados pela censura.

É perceptível a ironia com que o leitor emprega a palavra ?sacralização?. Não parece, porém, ao Provedor, que a luta pela liberdade de expressão em Portugal tenha conduzido, no pós-25 de Abril, a desvios que hajam excedido a euforia da reconquista da voz de todo um povo, a poesia do momento e até a incapacidade de alguns (por falta de uso e de aprendizado) do exercício dessa mesma liberdade.

Diz-se que só quem passou fome ou sede pode dar verdadeiro valor ao pão e à água. É perfeitamente legítima a analogia com a palavra, com a verdade: não há forma de fazer sentir às novas gerações a frustração e o desespero provocados pela suspensão e pelos cortes dos coronéis. Nem se vê como lhes explicar facilmente o diabólico mecanismo que acabou por gerar, numa classe permanentemente vigiada, um excessivo número de bem comportados auto-censores.

Mas é verdade que foram gerações que aprenderam à força o peso e a medida de cada palavra. Até o profundo significado dos silêncios, das omissões. Descobriram a forma de escrever nas ?brancas?, na cumplicidade com uma elite combatente que soube lê-las sem cartilha, mas com o coração.

Que os jovens jornalistas carecem de uma formação menos orientada para as técnicas e mais para as questões éticas em geral e deontológicas em particular? O acordo com esta opinião foi já por várias vezes manifestado nesta página pelo Provedor. No fundo, o novo rumo do ensino do jornalismo e do seu exercício tem a ver com as profundas alterações a que a profissão vem sendo submetida — ainda que de forma menos perceptível para alguns.

Há, hoje, um caudal de novos desafios que urge enfrentar. A bem dos jornalistas mas, acima de tudo na redefinição do seu papel na sociedade.

Não é de hoje a preocupação do impacto da informação a nível de nichos mais ou menos determinados da sociedade, e sobre indivíduos com menor solidez psicológica. O questionamento tem que ser mais intenso e sistematizado hoje, que assumimos a nossa inserção na ?sociedade da comunicação?.

As eleições ganham-se e perdem-se hoje nos ?media? — os mesmíssimos ?media? que a Administração Bush tenta desesperadamente conquistar para a sua cruzada da guerra contra o Iraque, que, por sua vez, talvez seja (a existir) a última do conceito convencional de guerra.

A ameaça é, hoje, o terrorismo. E não há terror sem medo, não há medo sem informação.

A pergunta, hoje, é se noticiar actos de terror com mais ou menos sensacionalismo coincide ou não com os interesses integrais dos terroristas. E a resposta pela afirmativa parece evidente, com o perigoso (e tenebroso) reflexo do silêncio, da mordaça, da censura — própria ou dos novos coronéis.

A encruzilhada está à vista, como visível parece a seta que indica o único e inevitável caminho da educação, da cultura.

Dos jornalistas e dos leitores.

O medo é hoje a grande arma das causas desesperadas e os jornalistas são, muitas vezes, o seu instrumento.

Há, também, o problema da imitação, a que a Suicídologia dá o nome de ?Efeito Werther?. Mais uma vez José Rodrigues da Silva tem razão. Mas a verdade é que um seminário realizado há não muito tempo sobre ?O suicídio e a comunicação social? ficou quase deserto de jornalistas, que foram expressamente convidados — como referiu Daniel Sampaio, em artigo na ?Notícias Magazine?.

Se o jornalismo acaba por ser expressão da sociedade que o gerou e que nele se revê, é tempo de os jornalistas se aperceberem de que o ritmo dos acontecimentos e dos seus efeitos pode tornar-se maior do que a sua capacidade de detectar a ultrapassagem. Há que criar espaços e tempos de reflexão, de análise. E até mecanismos de gestão desses mesmos espaços e tempos.

No Sindicato, que não é incompatível com a Ordem que alguns vêm reclamando.

Nas escolas que devem ser mais e mais centros de análise e de observação e que têm que despojar-se de alguns academismos estéreis.

Nas redacções, onde a relação causa-efeito das notícias tem de ter assento vigiado pelas hierarquias.

No mais profundo de cada jornalista ? porque só se é pessoa de bem quando se tem na consciência não ter contribuído para o desespero ou para a humilhação de alguém."