Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Fosso tecnológico cresce no país

ANALFABETISMO DIGITAL

Aurélio Galvão (*)

O conceito de alfabetização modernamente foi estendido para muito além do mero saber ler e escrever, e as novas tecnologias, em especial a internet, estão aí para provar que novas competências básicas e conhecimentos mínimos são exigidos para o exercício da cidadania e a vida plena em sociedade. Competências como escrever textos num processador (como o Word), fazer desenhos (no PaintBrush, por exemplo), enviar correspondência eletrônica (e-mails) e navegar na internet, fazendo pesquisa de informações. Nesse sentido, Jorge Werthein, doutor em Educação pela Universidade de Stanford (EUA) e representante da Unesco no Brasil, concebe a alfabetização como a capacidade de "representação multimodal de linguagens e idéias por meio do texto, da figura, da imagem em movimento, em papel, em meio eletrônico e assim por diante".

Cabe, então, perguntar: como pode ser avaliado o grau de alfabetização digital da população brasileira? Como são os padrões mundiais? Existe exclusão social de parcela significativa da população? Quais medidas podem ser tomadas para ampliar o grau de alfabetização da sociedade brasileira? O presente artigo pretende discutir estas questões e apresentar a situação das iniciativas que têm sido tomadas para combater a exclusão social.

O Ocidente e a África

Tomemos alguns dados sobre o apartheid digital no mundo. Em primeiro lugar, existe grande concentração de recursos tecnológicos em países ricos. De fato, a maioria dos computadores em rede no mundo, na proporção de 8 em cada 10, estão nos 29 países altamente industrializados pertencentes à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), embora eles representem apenas 15% da população global. Outros dados são do economista americano Jeremy Rifkin: 40% da população mundial continuam sem tomada na parede, e 65% nunca deram um telefonema sequer. Ao que completa o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor de Economia da Faculdade Cásper Líbero e autor do livro Exclusão digital ? A miséria na Era da Informação: "Nosso planeta é tão desigual que a Ilha de Manhattan, sozinha, tem mais linhas telefônicas do que todo o continente africano."

Especificamente quanto ao uso de informática e internet, as estatísticas apontam que, no mundo, apenas 5% da população (305 milhões de pessoas) têm acesso à internet, assim distribuídos: Estados Unidos e Canadá (44,9%), Europa (27,4%), Ásia (22,6%), América Latina (3,5%), África (0,6%). No Brasil, o quadro de exclusão é semelhante. Somente 8% da população (13,6 milhões de pessoas) acessam a internet de computadores em casa (pesquisa Ibope e-Ratings.com). Desse total, 80% pertencem às classes A e B.

Na origem do problema, o fator renda. Segundo o presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, Eduardo Vieira, 66 milhões de brasileiros precisariam acumular renda durante três a oito anos de trabalho simplesmente para adquirir um computador novo com configuração básica. Quanto aos fatores que contribuem para o agravamento da exclusão digital no mundo, Francisco Gomes Milagres e Renan Gonçalves Cattelan, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, apontam, no artigo "Exclusão digital: Aspectos e desafios", a falta de infra-estrutura em telecomunicações, o custo de acesso (que inclui preço dos computadores, custo das tarifas telefônicas e despesas com o provedor de acesso) e o idioma (pois o inglês é a língua de 80% dos websites) como fatores impeditivos da inclusão digital.

A questão do atraso digital é tão importante que a Organização das Nações Unidas (ONU) a estabeleceu como uma das quatro grandes mazelas da atualidade, com a fome, o desemprego e o analfabetismo. Mas não é de hoje que os avanços tecnológicos provocam desigualdades. Se hoje são as tecnologias digitais que aumentam a produtividade e a riqueza para alguns, da mesmo forma o fizeram, em seu tempo, o tear mecanizado e o navio a vapor, por exemplo. A fim de interromper o processo de ampliação da distância tecnológica entre ricos e pobres e começar a trabalhar pela inclusão digital, a sociedade tem de se mobilizar o quanto antes. O economista Gustavo Franco, ex-diretor do Banco Central, ilustra como é relativamente simples entender por que essa distância entre ricos e pobres (países ou classes) fica cada vez maior com o avanço tecnológico:


"Vamos imaginar um mundo formado de dez ilhas incomunicáveis, cada qual com um PIB de 100 unidades de uma mercadoria existente em todas as ilhas, e todas sem crescimento. Uma delas, todavia, descobre novas técnicas de produção, ou de processamento de informações existentes na natureza, e passa a crescer o pouco notado 1% anualmente. Em dois séculos, todavia, tal ilha elevará sua participação na renda mundial de 10% para 45%. Em três séculos, a participação chegará a quase 70%. Nada muito diferente do que ocorreu com o Ocidente e com a África a partir do século 17."


Ações isoladas

Cabe, então, perguntar diante da relevância da questão: o que está sendo feito nas iniciativas pública e privada para combater o atraso e o analfabetismo digital no Brasil? Na iniciativa pública, a exclusão digital não tem sido combatida a contento, principalmente devido ao desvio da finalidade de fundo constituído especificamente para o combate à exclusão digital. Falamos aqui do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que arrecada 1% do faturamento bruto das empresas de telecomunicações, em troca de redução de impostos. O fundo foi criado e o governo federal já recolheu por essa via 2 bilhões de reais nos dois últimos anos, mas 13 mil escolas públicas de ensino médio e profissionalizante, entre outros potenciais beneficiários, continuam aguardando a construção de laboratórios de informática com acesso à internet.

Há de se destacar, todavia, que algumas prefeituras administradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a exemplo da de Porto Alegre na gestão Olívio Dutra, têm adotado o uso do software livre ? também chamado de código aberto ? nos órgãos públicos e na rede oficial de ensino como estratégia de democratização da informática. Na capital gaúcha, a iniciativa foi tomada depois de debate aberto com a comunidade e peritos europeus e americanos, que apontou como benefícios do software livre a redução de custos com licenças de software e manutenção de equipamentos, a promoção da independência tecnológica e maior incentivo para a partilha do conhecimento.

As ações, em geral tímidas, são isoladas. O Projeto Clicar, da USP, uma universidade estadual, por exemplo, nasceu da experiência de ampliar a exposição permanente de aparelhos de física e química para deixar também computadores com acesso à internet à disposição da comunidade. A demanda por essa facilidade é boa: coordenadores do projeto observaram que algumas pessoas vêm de bairros distantes e chegam a passar mais de duas horas em trens e ônibus só para usar os computadores. "Para uma criança suja e mal vestida, o projeto significa ter acesso a um objeto de desejo, um símbolo de status, conhecimento e poder no mundo atual", afirmou Dirce Pranzetti, uma das coordenadoras do Projeto Clicar, em entrevista à revista Educação, de dezembro de 2001.

Alertar não basta

Na iniciativa privada, a melhor experiência de inclusão digital parece ser a do Comitê para a Democratização da Informática (CDI). A ONG nasceu do sonho de Rodrigo Baggio, então um jovem empresário, que inaugurou a primeira escola, em março de 1995, no Morro Dona Marta, na Zona Sul do Rio. Hoje, o CDI já capacitou 263 mil pessoas de baixa renda em 617 Escolas de Informática e Cidadania (EICs) localizadas em 10 países, sendo que 92% dos atendidos são brasileiros, em 19 estados. Vários aspectos do projeto impressionam, entre eles o custo. Cada EIC é mantida com 7 mil reais por ano, investimento suficiente para capacitar e qualificar 100 alunos por mês.

Baggio credita 95% do sucesso do projeto à escolha de uma liderança comunitária que seja respeitada por todos, tenha credibilidade e idoneidade. Nas escolas, além de noções básicas de informática (Word, Excel, PowerPoint, Access, os programas para escritório da Microsoft, e internet), os alunos aprendem noções de cidadania. Para cada software utilizado há pelo menos duas idéias de trabalho. Com um editor de textos, por exemplo, eles podem criar um jornal comunitário. Ao fazer esse jornal, os jovens levantam os desafios do lugar onde vivem, os problemas existentes, os sonhos, a realidade dos moradores. Com um administrador de banco de dados, os alunos organizam as informações sobre os serviços disponíveis na região, como escolas públicas, postos de saúde, organizações não-governamentais, cursos, centros comunitários. O projeto político-pedagógico implementado nas escolas do CDI é inspirado no pensamento do educador Paulo Freire.

O objetivo, segundo o criador do CDI, é realizar microrrevoluções em cada comunidade. Em termos pessoais, 87% dos alunos afirmam que tiveram sua vida mudada para melhor em três aspectos: deixaram a criminalidade ou se afastaram da possibilidade de entrar nela; conseguiram emprego; voltaram para a escola pública. A previsão da ONG para 2007 é de ter 3 mil escolas e 45 mil computadores, formando um milhão de alunos anualmente.

O Brasil está muito atrasado na inclusão digital da população e tem muito a desenvolver-se para apenas interromper o processo de distanciamento econômico entre ricos e pobres. Alertar e mobilizar a sociedade para a importância do problema é um bom começo, mas não basta, pois o fosso tecnológico entre as classes aumenta a cada dia. No estágio atual de desenvolvimento socioeconômico, os benefícios da revolução digital são restritos à elite, tanto no Brasil quanto no mundo. A solução, então, é lutar por políticas públicas e pelo adequado uso dos recursos públicos a fim de diminuir as desigualdades sociais e incentivar, paralelamente, a manutenção e a criação de novos projetos na iniciativa privada que visem à universalização de oportunidades de inclusão social para todos.

(*) Jornalista, editor do sítio <www.aureliogalvao.hpg.ig.com.br>, sobre jornalismo empresarial