Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

"França se rende à TV realidade", copyright O Globo, 5/05/01

QUALIDADE NA TV

ASPAS

?REALITY SHOW?
Hugo Sukman

"França se rende à TV realidade", copyright O Globo, 5/05/01

"A França resistiu mais de dois anos, mas finalmente aderiu à TV realidade que vem assolando o mundo com programas como o americano ?Survivor? e o brasileiro ?No limite?. Trata-se de ?Loft story?, que vem batendo os recordes de audiência da TV francesa e suscitando debates intermináveis entre os intelectuais, chocados com a ousadia do programa e com a adesão do público. Intelectuais e governo orgulhavam-se, até há pouco, de a França ser o único país da Europa a não aderir a este tipo de programa.

?Loft story? estreou semana passada no canal aberto M6 e conta com retransmissões mais quentes, com direito até a cenas de sexo, num canal a cabo e pela internet (com um milhão de visitas por dia). Num loft de 225 metros quadrados especialmente construído para o programa num subúrbio de Paris, seis rapazes (agora cinco, depois da desistência de um logo no segundo dia) e cinco moças são filmados por 26 câmeras (três com infravermelho para as cenas escuras) durante 24 horas por dia. O objetivo é que, depois de cerca de 70 dias, sobre apenas um casal, que ganhará uma casa de 3 milhões de francos, mas com a obrigação de morar junto por mais seis meses, sendo igualmente filmado.

O programa, diário, já é o mais visto da TV francesa. Nos horários de pico, chega a ser acompanhado por seis milhões de espectadores (10% da população do país). Segundo canal privado do país, a M6 já dobrou o preço dos anúncios no horário do programa.

Na versão francesa, 38 mil pessoas entre 18 e 35 anos, não casadas, candidataram-se a passar 70 dias fechadas numa casa. Um longo processo de seleção chegou aos 11 eleitos. Gente como a loura e siliconada Loana, uma go-go-girl com jeito ingênuo, a preferida dos espectadores e a única que já foi para a cama com um dos rapazes; a ?burguesa parisiense? Laure; o ?intelectual? (usa óculos) Philippe; a ?refugiada? Kenza; o ?árabe? Aziz; a ?meiga? Delphine… cada personagem obedecendo a um clichê da sociedade francesa.

Ainda embasbacados com o sucesso da série, os responsáveis do Conseil Supérieur de l’Audiovisuel (CSA), órgão que controla a televisão, reagiram pedindo que se evite transformar em espetáculo, como vem acontecendo, o consumo excessivo de tabaco e álcool. O CSA também pediu o fim da promoção do programa em TV fechada e do site na Internet.

Quem mais chiou mesmo foram os intelectuais. O autor do livro ?La force des émotions?, sobre psicologia e comunicação de massa, François Lelord, foi convidado a participar como consultor mas recusou. E explica por quê.

– Num esporte, as regras de competição são claras. Num programa como esse, o competidor joga toda a sua pessoa, o que é muito perigoso – teoriza.

Enquanto isso, os competidores estão conseguindo ficar famosos. Todos assinaram um contrato cedendo suas imagens a uma agência de talentos ligada ao M6. – Quando cheguei ao estúdio, com aquela multidão toda me esperando, me senti finalmente fazendo parte dos mais quentes acontecimentos de Paris – declarou o deslumbrado interiorano Steevy, um dos rapazes do programa.

A produção se defende, dizendo que o negócio é pura diversão para o espectador e, para os participantes, uma brincadeira que os fará ficar famosos.

– Eles não falam em recompensa. Sua motivação, é claro, é ganhar notoriedade. Mas, eles me falaram que o que querem mesmo é testar sua capacidade de viver em comunidade – diz a produtora do programa, Alexia Laroche-Joubert.

Viver numa comunidade, ela esqueceu de dizer, de seis milhões de pessoas através do circo romano eletrônico."

MTV
Joaquim Ferreira dos Santos

"O videoclipe branco da ‘backstreet mother’", copyright no (www.no.com.br), 3/05/01

"Não dá nem mais para repetir o discurso do Caetano em 68, aquele do ?se é essa a juventude que quer tomar o poder?, porque há décadas que a juventude não quer tomar mais poder nenhum. Mas se pelo menos é essa a juventude que quer tomar o poder musical, vamos repetir Caetano: estamos feitos. Estamos fritos. Não há nada mais conservador do que esses jovens, todos vestidos de branco, que estão dominando a parada do Disk-MTV, o programa central-revelador do que vai pela cabeça dos que vêem o canal da galera. Na onda do pagode mauriçola ainda se passava a vassourinha; na onda do tchan, ainda se abaixava na garrafinha; e na onda do funk, se agarrava na motinha. Tudo lixo, mas agredia pela vulgaridade. Vovó dizia ?epa!? Papai dizia ?comé qui é?!? A família se espantava. Os novos heróis adolescentes da MTV fogem de qualquer polêmica. Parece propaganda de Omo.

Caetano, meu velho, eu sei que você anda preocupado com o ACM e não tem tempo para esses papos. Pois saiba, eu vi o Disk-MTV que passa todos os dias às 18h e te garanto: os jovens não estão se dando nem mais ao trabalho de matar hoje o velhinho que morreu ontem, como você debochou em 68. Não se mata mais ninguém. Não se derruba mais ninguém. A Madona ainda pega o carro, no terceiro lugar da parada, e passa por cima de uns machos – mas ela não vale, já passou dos 40. Apareceu um grupo, Catedral, com um vídeo da música ‘Eu amo mais você’ que parece sugerir, nas imagens, o inferno das drogas, mas a letra é mais uma bobagem amorosa. E o que é pior, com um cantor fazendo um pastiche patético do Renato Russo. Os ídolos ainda são os mesmos, e as aparências não enganam mais. Nada se cria, tudo é paca, tatu e cotia.

Os jovens que elegem o Twister, o KLB, o Sandy e Jr, a Christina Aguilera, a Britney Spears e a Vanessa Camargo como os reis da cocada branca musical-televisiva não querem mais saber de conflitos. As músicas rimam coração com paixão, e quando ainda sobra um verso taca-se o ão de canção. A se acreditar na parada de sucessos da MTV nunca se produziu uma geração tão desinteressada com o que na vida possa ser duvidoso e questionável. Não seria o caso de pedir que eles falassem de drogas ou problematizassem o que vai por seus mundos. Ainda há um mínimo de senso crítico nos jovens para não embarcar nessa pauta cafona de revista teen. Mas está tudo descerebrado demais. Aqueles gêmeos tatoo-tatibitates do Superpositivo venceram.

Uma das cantoras – desculpem a imprecisão jornalística, mas é difícil diferenciar Sandy de Aguilera ou de Vanessa – veste-se de anjo. As imagens dos meninos nos videoclipes também são de beatitude eclesiástica, isto num momento em que se elegeu ‘Thriller’, com o então endemoniado Michael Jackson, como o melhor videoclipe de todos os tempos. Havia uma vontade de espantar o mundo. Havia Vincent Price numa ponta. Acabou. O videoclipe para adolescentes agora parece uma continuação da novela ‘O anjo caiu do céu’. E com Tarcísio Meira no papel de Deus.

Às vezes é tudo tão sem revolta, tudo tão encaixado na estética dos shoppings e dos parques de Orlando, que parece proposital. Debochar de quê? Ironizar quem? Qual é a boa luta da vez? No álbum branco dos Beatles, Charles Manson entendeu a senha para regar de sangue sua sanha assassina. No vídeo branco da Vanessa Camargo, a senha é exclusiva do proprietário do cartão e não deve ser divulgada a estranhos.

Os grandes campeões de telefonemas da MTV esta semana, como não poderia deixar de ser, são os Backstreet Boys, com uma versão ao vivo de ‘The call’. Eles estão em turnê pelo país e querem ser os novos Menudos. Rebolam mais, atuam mais, nada mais. Falta Biotônico Fontoura, proibido aos de 2001, a essa turma de efebos pélvicos. Só o hit ‘Não se reprima’ dos portoriquenhos do Rick Martin é superior em sabedoria a toda a produção do BSB. Os gritos das meninas no Maracanã e no estacionamento do Morumbi preenchem o vazio das suas canções.

Quando acaba um show dos Backstreet boys, começam os mistérios: 1) para onde vão todos aqueles ursinhos de pelúcia que elas jogam no palco?; 2) de que tratam aquelas canções? Só as mães não perguntam nada. Nas letras dos Rolling Stones, elas eram umas vadias (‘Have you seen your mother, baby, standing in the shadow?’). Nas dos Beatles, seres desprezíveis (‘She?s leaving home’). Os Backstreet Boys não falam nada, e nesse silêncio a família se perpetua em paz e sem rebeldias juvenis. Neste mês de maio, a ‘backstreet mother’, com o avental todo sujo de ovo, sorri e agradece à MTV."

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