Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Jornalismo na primeira pessoa

VIDA DE REPÓRTER
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Vida de Repórter, de José Maria Mayrink; Viagem ao Mundo dos Taleban, de Lourival Sant?Anna; Direto da Selva, de Klester Cavalcanti e Viva o Grande Líder, de Marcelo Abreu ? Geração Editorial, São Paulo, 2002 # tel. (11) 3872-0984 # www.geracaobooks.com.br

A reportagem não é só a apresentação dos fatos. Enciclopédias estão cheias de fatos, e nem por isso são reportagens. A coleção "Vida de Repórter", que a Geração Editorial lançou na Bienal do Livro de São Paulo, quer mostrar ? pelo depoimento de grandes repórteres, na primeira pessoa ? que a grande reportagem pode até estar quase desaparecida dos grandes jornais, mas resiste, realizada tanto por repórteres já lendários, por sua experiência, quanto por aqueles que estão quase no início da carreira, mas têm no sangue a mesma garra dos que já fizeram história.

A grande reportagem tem algo a mais do que os secos relatos das notícias objetivas ou dos verbetes enciclopédicos. Ela pode trazer em suas linhas o suor e o sangue com que foi feita. O olhar do repórter pode até procurar a análise objetiva, mas o coração está disparado. As emoções humanas primárias estão nas entrelinhas: o choro, a alegria, a raiva, o riso, o medo, a indignação.

Vivemos em um tempo, no entanto, em que a emoção tem lugar cada vez mais escasso nas páginas dos jornais. O repórter que viveu na pele a sua matéria quase nunca pode ser personagem de sua notícia. Vivemos dias em que as enchentes em São Paulo são interpretadas pelos quilômetros de congestionamento; os grandes desastres, pelo número de mortos; o futebol, pelo tempo em que um time esteve com a posse de bola.

A coleção "Vida de Repórter" pretende recuperar o estilo e o espaço das grandes reportagens. O título já indica que se fala: do repórter, do ser humano que investiga, cutuca, se intromete, corre atrás de onde está a notícia, busca interpretar o mundo não pelo método asséptico, mas observando-o em toda sua dimensão, ao mesmo tempo cômica e trágica.

"Vida de Repórter" é o resgate do sentido da palavra reportagem, aquela que em o repórter não se oculta ? pelo contrário, escreve na primeira pessoa, participa do que apura, é autor e ao mesmo tempo personagem.

A coleção se inaugura com um livro que tem o mesmo título: Vida de Repórter, as memórias paradoxalmente emotivas e racionais do veterano repórter José Maria Mayrink, 63 anos, hoje no jornal O Estado de S.Paulo.

O relato de Mayrink compreende 40 anos de jornalismo, quase integralmente dedicados à reportagem. Não a reportagem dos fax, dos e-mails, do telefone e da internet, mas a reportagem das ruas. Mayrink é um profissional que soube como ninguém arrancar a dimensão humana de cada fato, por menor que ele possa parecer. Em suas matérias, desfilaram mendigos e prostitutas, bandidos e políticos, funcionários públicos e desesperançados.

Os demais ? os jovens Lourival Sant’Anna, também de O Estado de S.Paulo, Klester Cavalcanti, até recentemente na revista Veja, e Marcelo Abreu, correspondente em Londres ? enveredam pelo mesmo caminho: narrativas na primeira pessoa, sem medo de usar, ainda que oculto, o pronome eu.

Todos viveram na pele o risco da reportagem. Estiveram no calor dos fatos e trouxeram uma grande história para contar.

A grande história pode vir tanto do país que se tornou o epicentro político do novo século quanto da selva amazônica ou da desconhecida e fechada Coréia do Norte. O repórter especial de O Estado de S. Paulo, Lourival Sant’Anna, foi o único repórter brasileiro ? e um dos poucos do mundo ? a entrar no Afeganistão após os atentados de 11 de setembro.Lá, ele entrevistou integrantes do Taleban, a multinacional do terrorismo que abalou o mundo. No jornal, Lourival publicou reportagens sensacionais, indispensáveis para o entendimento do conflito. Agora, em seu livro Viagem ao Mundo dos Taleban, ele nos conta como foi estar frente à frente com alguns dos inimigos número 1 do Ocidente ? com o tempero da forte emoção de sentir na pele este momento fundamental da história da humanidade.

Com a mesma disposição de contar uma história como quem conversa com amigos na mesa de bar, o jornalista Klester Cavalcanti apresenta em Direto da Selva suas aventuras durante o período em que foi correspondente da revista Veja na Amazônia. Um livro-reportagem de fôlego, que apresenta aos brasileiros a Amazônia nua e crua, e não aquela que estamos acostumados a ver em enciclopédias. Mais uma vez, tensão e esperança conviveram juntas, em um relato difícil de largar enquanto não se chega ao final.

Outro que chegou aos confins do mundo foi o repórter Marcelo Abreu. Em Viva o Grande Líder ele nos conta um feito raríssimo: como entrar na Coréia do Norte, o país mais fechado e misterioso do planeta, um enigma para o mundo. Abreu foi um dos poucos até hoje a conseguir essa façanha, e abre, em Viva o Grande Líder, uma importante janela para espiarmos um mundo onde o poder é quase divino, personificado na figura de Kim Il Song, o chefe de estado que mais tempo ficou no poder, o "Grande Líder" de que nos fala o título, ou, se preferir, "o Sol da Nação", que legou o poder ao seu não menos excêntrico filho, Kim Jong Il, o "Genial Líder Querido" dos coreanos. Marcelo Abreu nos conta seus dias de Coréia com riqueza de detalhes e humor, mostrando para o resto do mundo a realidade de um país tão diferente e tão distante do nosso olhar.

A idéia da coleção vem de um velho projeto do editor da Geração, Luiz Fernando Emediato, que passou por todos os cargos numa redação ? de estagiário a diretor de Jornalismo ? e, como Mayrink, é um dos poucos ganhadores do Prêmio Esso de Jornalismo, o maior da categoria no país. Emediato, que há 10 anos abandonou as redações para ser editor de livros, é um admirador das grandes reportagens pessoais, no estilo de Gay Talese e Tom Wolfe, entre outros, e pretende, enquanto durar a coleção, abrir espaço para que repórteres veteranos e jovens possam escrever livremente sobre qualquer assunto de interesse público. "Jornais, por mais importantes que sejam, abrem hoje pouco espaço para os grandes textos pessoais, e de qualquer forma embrulham alguma coisa no dia seguinte", diz Emediato. "Livros têm mais espaço e são registros que duram. Portanto, estamos abertos para isso mesmo: para quem quer contar grandes histórias e deixá-las registradas por um tempo maior."

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