Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Marcio Sattin

ENSAIO

“Ensaio Racional”, copyright Folha de S. Paulo, 9/02/03

“Muito já se falou sobre a excelência do programa ?Ensaio?, misto de entrevista e apresentação musical concebido e dirigido por Fernando Faro e exibido às terças-feiras na TV Cultura. Mas o verdadeiro marco que foi a presença do grupo de rap Racionais MC?s, no último dia 28, parece não ter despertado a atenção devida por parte da mídia.

O programa merece os elogios que recebe, e sua longevidade é prova eloquente disso. Exibida há poucas semanas, a reprise de um programa com Nara Leão, gravado no início dos anos 70, pôde mostrar com clareza algumas dessas qualidades: o momento do país, o estado da música popular, a ressaca do Cinema Novo, um Rio de Janeiro já com saudade de uma delicadeza perdida, de um passado recente que talvez só tenha existido na memória afetiva dos participantes, enfim, estava tudo presente ali, filtrado pelas canções e pela presença miúda e espontânea de Nara, acompanhada apenas de um violão e do famoso entrevistador ?oculto?.

Se o programa com os Racionais MC?s for exibido daqui a 30 anos, como aconteceu com o de Nara, não é difícil perceber que guardará o mesmo potencial revelador e a mesma marca duradoura. Num veículo cujo traço principal é a transitoriedade, onde o exibido hoje é esquecido ou inexistente amanhã, não é pouca coisa.

Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, os quatro membros do grupo, são conhecidos por sua aversão a entrevistas e pela recusa em participar de programas televisivos de divulgação. No entanto, enquadrados em big close-up pela lente de Faro e imersos na escuridão do estúdio, tem-se a impressão de que o formato consagrado do programa, sua fórmula simples de destacar o entrevistado com o mínimo de recursos cênicos, esteve esses anos todos à espera do grupo para poder atingir sua força máxima de expressão.

Os rostos fechados de Brown e seus companheiros, reforçados pelas perguntas inaudíveis do entrevistador e pela ausência de instrumentos (só microfones empunhados e os picapes do D.J.), preenchem a tela toda com uma disposição irada e incomum para contar suas histórias, não porque elas sejam peculiares ou curiosas, e sim porque são estranhamente familiares, como se anunciassem, a contragosto, nossa transformação de telespectadores em testemunhas de algo que sempre esteve aí, ao nosso lado.

A partir dos depoimentos de cada um deles, os anos de formação, as amizades no convívio musical, o início do movimento de rappers e funkeiros na estação São Bento do metrô, no início da década de 80, são trazidos nas entrelinhas os elementos que se tornaram habituais a qualquer morador de uma cidade grande como São Paulo: a segregação da periferia, a violência rotineira e testemunhada, o papel dúbio da polícia, a influência americana nos costumes e atitudes, a desagregação familiar, a presença norteadora da droga etc.

O que os torna o acontecimento musical mais relevante dos últimos anos é justamente essa capacidade de sintetizar, num punhado de canções acuradas, a pouca sutileza na construção de um descaso público e privado, que produziu nas últimas décadas uma massa de excluídos e cidadãos de segunda classe. A mesma rudeza, agora com sinal invertido, dá o troco e assombra os ?mais favorecidos? em semáforos mal iluminados e em letras agressivas, pondo às claras o conflito de uma cidade, de um país cujo traço inequívoco é a desigualdade que ostenta a si mesma como troféu. Precisamos de mais Racionais, não de menos. Marcio Sattin, 39, é doutorando em filosofia alemã pela FFLCH-USP e pesquisador do grupo de Lógica e Ontologia do Cebrap.”

 

BAIXARIA NA TV

“Patrocínio e baixarias nas TVs”, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 10/02/03

“Por alguns motivos a televisão brasileira e a norte-americana são comparáveis, situando-se ambas em um nível de qualidade técnica (reprodução de imagem e som), grau de linguagem especificamente televisiva (não radiofônica, teatral ou cinematográfica), padrão de filmes publicitários e até conteúdo jornalístico, acima da média mundial (inclusive européia) – e aqui tratamos apenas de emissoras de canais abertos. Mas quem assiste à TV no Brasil e nos EUA percebe uma certa disparidade: lá não existe tanta permissividade, como a freqüente em nosso vídeo. As grandes redes de TV de lá também exibem, como as daqui, programas chocantes, do tipo ?mundo-cão?, com cenas que, pela licenciosidade, pornografia e o escopo claro de chocar as pessoas e as famílias – e com isso faturar alguns pontos a mais de audiência -, se tornam aviltantes da dignidade do ser humano. Mas são exceções e tais programas nunca compõem a coluna mestra da grade de programação, como ocorre no Brasil. Indaga-se então: será que em nosso meio a liberdade de expressão é, efetivamente, maior do que a vigente na democracia norte-americana, com toda a sua exemplar tradição nesse campo?

Acresce que a Constituição norte-americana nem de longe contém um mandamento específico, como o estabelecido no artigo 221, IV, da nossa, determinando que ?a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão?, entre outros princípios, ?ao respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família?. Então, como se explica a diferença de ?liberdade? dos veículos de comunicação eletrônica de massa, lá e cá, para exibirem as cenas chocantes, degradantes e escandalosas que pretenderem, visto que em ambos os casos não há censura oficial – sendo que nos EUA nunca houve e no Brasil foi abolida de todo com a redemocratização?

Uns poderão dizer que é o moralismo norte-americano, com sua raiz calvinista (e geralmente mantido até nos mais ousados filmes de Hollywood), que sempre impediu a transmissão de cenas de devassidão ao (grande) público. Mas, convenhamos, apesar de toda a nossa tradição carnavalesca, não somos um país de devassos. A moral familiar brasileira – católica, evangélica, espírita, ou que bases religiosas tenham, em sua expressiva maioria – não deve diferir muito da norte-americana, em termos e valores cultivados. Por isso, permanece a intrigante questão: como lá eles conseguem proteger suas famílias da agressão moral de certos programas de televisão, sem recorrer a nenhum tipo de censura oficial, que também não admitiríamos aqui?

A chave da solução do problema está no patrocínio. Nos Estados Unidos são as organizações não-governamentais, como as de consumidores, de usuários de TV, de pais e mães de famílias, de moradores, de educadores, etc., que exercem pressões contra os patrocinadores de programas de televisão de baixo nível.

E o argumento que usam é muito simples: dar dinheiro para um programa de baixo nível na televisão é associar um produto ou serviço com a baixaria. Já houve campanhas de boicote – especialmente promovidas por associações de donas de casa – a produtos de empresas patrocinadoras de programas indecentes, que os fizeram sair do ar em pouco tempo.

No Brasil, depois de muitas tentativas infrutíferas de se fazer as emissoras de televisão adotarem, espontaneamente, um código ético mais rígido, para evitar as baixarias exibidas no vídeo, parece que, finalmente, se descobriu o ?caminho das pedras? da moralização das TVs. Depois do lançamento, em novembro, da campanha intitulada ?Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania? – idealizada por cerca de 40 entidades, entre ONGs, associações de empresas e de classes e movimentos sociais descontentes com as baixarias levadas ao ar pelas TVs, que resultou em uma cartilha, de mesmo nome, publicada em 24 de janeiro, durante o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre -, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados abrirá agora um novo canal para receber denúncias e reclamações contra o nível da programação da TV brasileira, por meio do site www.eticanatv.org.br. Resta esperar que, além dos desrespeitos elencados na cartilha, no tocante à incitação ao crime, discriminação racial, afronta à dignidade de pessoas e grupos de pessoas com anormalidades físicas, etc., se dê ênfase especial à preservação ?dos valores éticos e sociais da pessoa e da família?, tal como determina nossa Constituição.”

 

LEITORES RECLAMAM

“Carta dos Leitores”, copyright IstoÉ, 12/02/03

“Genéricos

Em relação à matéria publicada na edição 1740 pela revista ISTOÉ, intitulada ?Dúvida no ar?, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária esclarece: 1) O registro para a produção e comercialização de um medicamento genérico no Brasil só é liberado depois que o laboratório farmacêutico comprova a realização de testes de bioequivalência e equivalência farmacêutica, pois são estes que garantem a mesma eficácia terapêutica dos medicamentos de referência. Mesmo os importados precisam da apresentação de um processo completo, que demonstre como foram feitos os testes e os seus resultados, exatamente como o exigido pela legislação brasileira para os medicamentos genéricos nacionais. Portanto, não existem ?facilidades concedidas aos laboratórios estrangeiros para introduzirem os medicamentos aqui?, conforme afirma a reportagem. 2) Os testes de bioequivalência são feitos em lotes e a garantia da continuidade da eficácia do medicamento se dá pelo controle da qualidade do processo fabril. Antes da concessão do registro, as indústrias, tanto no Brasil como no Exterior, são inspecionadas por técnicos da Anvisa, condição indispensável para que se conceda o Certificado de Boas Práticas de Fabricação. Este certificado é válido por um ano e, depois de vencido esse prazo, uma nova inspeção é realizada. 3) Além disso, a agência tem um Programa de Monitoramento da Qualidade dos Medicamentos Genéricos em Comercialização, em conjunto com o Instituto Nacional de Controle da Qualidade em Saúde (INCQS), ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e com as vigilâncias sanitárias estaduais e municipais. O programa consiste em recolher amostras do medicamento de referência e do genérico, nas distribuidoras ou redes de farmácias, e em refazer o teste de equivalência farmacêutica. 4) No ato do registro, as indústrias também apresentam estudos de estabilidade do medicamento em determinada temperatura e umidade relativa do ar que garantem a qualidade dos medicamentos naquelas condições. Entretanto, fatores externos, como transporte e armazenamento inadequados, podem alterar as propriedades físico-químicas do medicamento, prejudicando o efeito terapêutico. 5) Os medicamentos similares também têm que ter sua qualidade e segurança atestados por meio de testes físico-químicos e estudos farmacológicos apresentados à Agência. Estes testes devem simular as condições exigidas para sua comercialização e administração. Esta classe de medicamentos só recebe registro, como o próprio nome diz, se tiver similaridade com um medicamento já previamente registrado na Anvisa mediante a apresentação de estudos que comprovaram a segurança de seu uso por seres humanos. Além disso, os similares também são alvo de monitoramento pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, tendo sido retirados de circulação sempre que algum desvio de qualidade foi detectado pela fiscalização. 6) A entrada dos genéricos no mercado de medicamentos fez com que vários produtos de marca perdessem espaço. Nessa disputa, os laboratórios dos medicamentos de referência muitas vezes se valem de artifícios pouco éticos para lançar dúvidas sobre a qualidade dos genéricos, como o uso de profissionais da área médica, que falam frequentemente à imprensa em nome da pseudodefesa da população brasileira. 7) A Agência espera da classe médica que as suspeitas sobre a eficácia de qualquer medicamento sejam comunicadas à Vigilância Sanitária, com informações sobre os lotes consumidos, para que esta tome as providências necessárias. Cabe ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária justamente zelar pela qualidade dos produtos consumidos pela população.

Gonzalo Vecina Neto, Diretor-presidente da Anvisa, Brasília – DF

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Com referência à matéria ?Dúvida no ar?, publicada na edição 1740 da revista ISTOÉ, assinada pela jornalista Juliane Zaché e na qual colaboraram Lena Castellón e Eliane Lobato, a Pró Genéricos – Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos vem apresentar sua total discordância com relação a alguns pontos abordados na reportagem. A Pró Genéricos quer também apresentar os motivos pelos quais considera inadequadas as críticas, extremamente alarmistas, e ao mesmo tempo específicas, e que desmerecem todos os esforços realizados nos últimos três anos tanto pelo governo, como pelas indústrias, pelos profissionais da saúde, e por representantes da sociedade organizada, para inserir, acelerar e fortalecer o conceito do medicamento genérico no Brasil. Além de buscar a expansão do mercado desta nova categoria de medicamentos, em média 40% mais baratos do que os de referência, nosso objetivo maior sempre foi e sempre será levar ao maior número de brasileiros o direito de ter acesso aos medicamentos e ao atendimento básico da saúde, conforme prevê a Constituição do nosso país. Em todo o mundo, o medicamento genérico é hoje uma realidade. A explicação é simples: apesar do crescente avanço das pesquisas e do desenvolvimento de novos fármacos, boa parte do arsenal terapêutico disponível tem mais de 20 anos, o que possibilita que o medicamento seja copiado. A grande aceitação pela população e o aumento da oferta de medicamentos genéricos como o que tem ocorrido no nosso país são inéditos na história do mercado farmacêutico mundial. O contínuo crescimento desse mercado no Brasil, que, em unidades, cresceu de 1,5 % em janeiro de 2001 para 7% em janeiro de 2003, é uma demonstração absolutamente clara de que uma grande parcela do universo de consumidores está bastante satisfeita. São sete milhões de pessoas que todos os meses têm se beneficiado desses produtos, que passam por rigorosos testes clínicos, imprescindíveis na avaliação da qualidade e efeito de um medicamento. Como demonstra a própria pesquisa online da ISTOÉ, os próprios internautas, mesmo depois de terem sido impactados com uma matéria tão negativa, ainda afirmam preferir os genéricos aos medicamentos de referência. Eventuais preferências de médicos que preferem prescrever medicamentos de referência são de ordem pessoal e podem não ter, como acreditamos não ter, uma relação direta com a qualidade do medicamento genérico. Também vale lembrar o resultado de recente pesquisa realizada pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária junto a 432 médicos de todo o País com o objetivo de avaliar a percepção da classe com relação aos medicamentos genéricos. O resultado da pesquisa indicou que 86% dos médicos entrevistados aprovam a eficácia terapêutica dos genéricos; 69% aprovam o controle de qualidade na fabricação dos genéricos e praticamente todos, ou seja, 95% dos médicos entrevistados sempre ou muitas vezes levam em conta o preço do medicamento no momento da prescrição. Por tudo isso, consideramos que não se justifica qualquer generalização com relação à qualidade dos medicamentos genéricos nem o grande espaço reservado na matéria para algumas questões pontuais, como as que foram abordadas, que podem ocorrer, inclusive, com os medicamentos de referência. Devemos lembrar ainda que, num país como o nosso, está emergindo um profissional da saúde com um novo perfil, que leva em consideração também a viabilidade de seu paciente ter acesso ao medicamento por ele receitado. Possibilitar a milhões de brasileiros o direito de tratar seus males sem onerar o orçamento familiar, ou mesmo conseguir fazer o tratamento, que antes não era possível para muitos, é uma questão humanitária, mais que política. Temos absoluta certeza que, como em qualquer outra lei nova, ajustes ainda devem e precisam ser feitos, tanto na legislação relativa aos medicamentos genéricos como nos sistemas que possam vir a garantir maior acesso da população a estes e quaisquer outros tipos de medicamentos. Por tudo isso, entendemos que matérias como esta, que optam por apontar como erros e não como possíveis pontos a serem melhorados os eventuais problemas de percurso deste gigantesco e árduo trabalho realizado até agora, em nada contribuem para a correta informação ao leitor. E sim, criam motivos para o surgimento de uma infundada incerteza quanto à qualidade dos mesmos. Algumas colocações feitas na matéria não resultam positivas nem para o governo nem para a indústria e nem para a própria população que, com certeza, será a maior prejudicada.

Jairo Yamamoto, Presidente Pró Genéricos – Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos, São Paulo – SP

ISTOÉ responde: A reportagem se baseia no relato de médicos respeitados que tiveram problemas no tratamento de pacientes que fizeram uso de genéricos e no depoimento de consumidores que também sofreram complicações após a utilização deste gênero de remédio. De forma alguma a reportagem desmereceu o conceito que norteia a política de distribuição desses medicamentos, tanto é que logo no início do texto a revista afirma que o oferecimento de remédios a preço mais acessível é, obviamente, bem-vindo. Na reportagem, são descritas brechas na lei dos genéricos, apontadas pelos especialistas, que podem, na opinião dos entrevistados, prejudicar a qualidade dessas drogas. A revista acredita que o debate sobre o tema só contribui para aperfeiçoar o programa de genéricos no Brasil.

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Esclarecimento

Os 182 membros do Ministério Público Federal, que esta subscrevem, vêm a público manifestar seu repúdio ao teor e à conotação da nota intitulada ?Rainha da milhagem?, publicada na revista ISTOÉ 1739, de 29/01/2003. ISTOÉ certamente quis zelar pelo patrimônio público quando informa o leitor que as viagens e diárias recebidas pela subprocuradora-geral da República Maria Eliane Menezes de Farias são muito superiores à média do período, recebidas por outros colegas da carreira. No entanto, tivesse pesquisado melhor, teria sido informada que comparou situações diferentes e, sem errar nos números, errou ao insinuar gastos incorretos e viagens desnecessárias: prestou um desserviço à defesa dos direitos humanos e dos interesses coletivos no País, objeto do trabalho de Maria Eliane. A atuação da procuradora federal dos direitos do cidadão pressupõe a coordenação dos procuradores da República de todo o País na área da cidadania, sendo sua atividade, então, nacional e singular, bem como exclusivamente extrajudicial, por imposição da Lei Complementar n? 75/93. Assim, seus deslocamentos originam-se justamente da especificidade de seu cargo, bem diferente de uma atuação judicial em uma única localidade, com recebimento de processos em gabinete.

Subscrevem 182 membros do Ministério Público Federal, Brasília ? DF”