Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Mídia e a dispersão do real

INFORMAÇÃO & SATURAÇÃO

Ivo Lucchesi (*)

Na edição anterior, propus pensar algumas implicações que estão a envolver o campo de produção e de circulação das informações, sob o suposto novo regime do tempo real no qual se apontavam as fragilidades ou imprecisões de tal conceito e tudo que diz respeito à noção de "tempo" [veja remissão abaixo]. Parece, pois, inevitável que o desdobramento crítico presente naquele texto caminhe em direção às possíveis conexões e/ou disjunções existentes entre "informação" e "espaço".

Confronto entre espaço e tempo

Desde os primórdios da civilização, um princípio se mantém inalterado: o domínio do espaço como determinante da detenção do poder. A este, outro, com adaptações, se alia: o "lugar" ocupado por alguém conferia-lhe o direito de exercê-lo por tempo indeterminado, quando não era vitalício. Em pleno século 21, o fundamento que dava suporte ao conceito nas origens da civilização está preservado: o poder ocupa um "espaço à parte"; o segundo, porém, se tornou alvo de delimitação: quem o ocupa é transitório. Isto bastaria para fazer surgir a desconfiança quanto a quem é apresentado como poder.

Na verdade, a ocupação outrora do poder segue no percurso da modernidade a mesma lógica. Para assegurar a perpetuação do fundamento original, instituiu-se a "democracia ocidental", sob o critério de "mandatos", ou seja, ingenuamente (ou, sob certo ponto de vista, estrategicamente), formulou-se uma configuração política na qual se possa viabilizar o sentido de poder com o de tempo espacializado. Assim, para efeito de "cena pública", todos os cidadãos podem identificar e indicar o "lugar" (espaço) do poder. O que, porém, não se leva em conta é que o "lugar" visto por todos é apenas a "representação do poder".

A modernidade (ou a ordem do capital), a rigor, implantou um sistema de mascaramento, expondo a "representação" e ocultando o "espaço real do poder". O espaço real do poder está fora da esfera pública. Ele funciona com hierarquizações e projetos próprios para os quais o "tempo" tem diferentes duração e significação. Nesse novo enredo, o espaço molda o tempo, razão pela qual o sentido da vida se altera não pela passagem do tempo, mas pelas novas inserções que o ser humano consegue criar ao longo da vida. Quanto mais se ampliam espaços, mais o "tempo-vida" do ser justifica a existência. Se, ao contrário, à passagem do tempo corresponder a inércia do ser, o "tempo-vida" se nadifica e o ser coisifica-se. Para onde conduz, então, essa reflexão? A resposta e a aplicabilidade dos conceitos convergem para a compreensão de como funciona a sociedade da comunicação, em sua múltipla oferta de meios, bem como pela absorção que faz, mediante a incorporação das novas e sucessivas invenções tecnológicas.

Espaço, informação e dispersão

Queiramos ou não, "informação" contém, na base semântica e morfológica, o vocábulo "forma". Este, por sua vez, remete a conceito espacial (delimitação / limite / contorno). Daí decorre a compreensão de que toda e qualquer informação é o resultado do quanto de "espaço" ela pode ocupar, seja numa página de jornal ou revista, seja numa tela de TV ou de computador (e variantes). Muito freqüentemente se afirma que televisão é tempo; jornal é espaço. Creio tratar-se de uma simplificação tão frágil quanto enganosa. Afinal de contas, página e tela são contornos; portanto são igualmente espaços. A diferença está, segundo quem defende a oposição, no "movimento" de uma (imagem de TV) e a "fixação" de outra (texto de jornal / revista). É isto que precisa ser reavaliado.

Se o diferencial reside no "movimento", então de imediato conclui-se que a noção contida no ato de "mover" pressupõe o sentido de "espaço" por onde algo deslizará para essa ou para aquela direção. No caso da página jornalística, a "ausência de movimento" se reveste de outra configuração: o "deslocamento" entre as distintas matérias de uma mesma página e desta em relação a outras. Na televisão, o espectador se subordina ao regime móvel das imagens; no jornal, o leitor é atraído ao deslocamento, seja pelos apelos das matérias, seja pela sedução das fotos. Em ambos os casos, o receptor é objeto de um "espaço" que o controla. Ou seja, no âmbito da informação (escrita ou visual), não se escapa do confinamento. À sensação de aprisionamento, o receptor reage com o falso consolo de sentir-se inteirado dos fatos do mundo e, conseqüentemente, nele integrado, em nome do quê a experiência se repete diariamente.

O problema aqui proposto sugere uma provocação quanto à possibilidade de cada um promover uma auto-avaliação a respeito de como se sente ante o regime imposto pelo "formato midiático". É mediante essa indagação que o ser poderá elucidar para si mesmo em que níveis ele, dependente do "formato midiático" potencializa produtivamente sua existência cotidiana. Do tanto visto e lido, o que resta? Se resta algo, que conseqüências tal retenção gera? E assim por diante… respostas a esse tipo de questão tendem a sinalizar algo de renovadora atitude… Ou não…

Imaginemos agora que pouco ou nada reste do tanto absorvido. Que sentido, pois, faz o indivíduo submeter-se ao formato? Terá o indivíduo perdido progressivamente a noção de espaço, tempo e projeto? Nesse caso, na insustentabilidade dessas perdas detonadoras do "vazio", é possível que o indivíduo se entregue à mediação do "espaço-tempo" da informação. Sobra-lhe a sensação do preenchimento de algo, embora descartável.

Em sendo verdade o reconhecimento das questões anteriores, então a própria noção de "real" (e de "realidade") também terá sido atingida e transformada em "cenário simbólico", cuja rentabilidade efetiva de sua simbologia consiste em devolver ao indivíduo o "elo perdido", como simples sensação. É, portanto, no investimento da "sensorialização do real" que o aparelho midiático atua. A propósito de tais aspectos, remeto o leitor ao artigo "Mídia e a sedução sem encantamento" [remissão abaixo].

De todo um noticiário percorrido pelo receptor, ficam estilhaços, fabricados pela "dispersão do real". A "carpintaria midiática" apenas se esmera em difundir "cópias ampliadas" das ocorrências, tornando tudo excessivamente "iluminado", "sonorizado", "intenso" e "espetacular". Somente pela carga artificial de intensificação, a mídia mantém o público sob seu domínio, num estado narcotizante no qual a incomunicabilidade dominante nas relações interpessoais e societárias é compensada pela tagarelice permanente com que a mídia bombardeia o cotidiano.

O algoz habita a própria vítima

É oportuno registrar que o pensamento exposto não deve ser avaliado como sentença condenatória à mídia. Ela é o que é. Ela expõe o que tem. O vetor da mudança é em outra direção: a reeducação do olhar. O espaço midiático é um dos mais eficazes "territórios laboratoriais" para o exercício da criticidade. É com esse intuito que se consagrou e consignou-se o slogan do Observatório da Imprensa. Não se trata de não mais ler-se jornal ou revista, e sim tudo ser lido (ou visto) com o olhar aparelhado pelo saber crítico.

Está corretíssimo o teórico Muniz Sodré quando associa o efeito da mídia ao da droga. A droga, como é sabido, potencializa o que o usuário é: ativa ou apaga a consciência, expande ou retrai, em função do que a consciência é em estado natural. Igualmente se dá a ação da mídia em quem dela faz uso: multiplica conhecimento ou amplia o vazio. Com que se extrai da construção midiática, tanto se elabora a compreensão de alcance macrossistêmico quanto se reduz tudo a realidade "macroanêmica". A eficiência do primeiro e a insuficiência deformante do segundo findam por marcar dois perfis de usuários. Essa diferença, em última análise, implica decisão unilateral, própria de quem faz a escolha.

Vamos ilustrar a questão anterior da seguinte maneira: quem usa droga e não mais a quer, só resta a opção de combatê-la. Se a droga circula, não a usa e nem a quer, basta ignorá-la. Quem usa droga e a deseja, aprenda a utilizá-la, bem como a administrar as conseqüências da exposição ao próprio uso.

Agora pensemos sobre outro aspecto: a droga, extraída do ópio, existe há cinco mil anos, para os mais diferenciados fins. Em nada, ela impediu os passos civilizatórios no que estes tiveram e têm de grandioso. A "droga" midiática ? como a conhecemos hoje ? existe há apenas meio século. Será que ela é tão poderosa a ponto de haver aniquilado a consciência e a resistência da maior parte dos seres no mundo? Creio seja um julgamento extremamente equivocado e ingênuo. Quem, e em nome do quê, abdicou de sua própria autonomia? Quem está obrigado à "intoxicação gnosiológica (cognitiva e perceptiva)?

Na origem dessas questões, ressurge o "espaço" como definidor de fronteiras ? nesse caso específico ? existenciais. Cada qual acaba sendo a medida do espaço que, na construção e gerenciamento de sua vida, se permitiu ocupar e, para tanto, preparou-se (ou deixou de preparar-se). Em que momento da vida se deu (ou não se deu) a "virada" da consciência, marcando quem se submeteu ao "espaço" determinado pela vontade do "outro" e quem se rebelou contra essa mesma imposição, saindo em busca do "espaço" inventado pela própria vontade? É preciso ter clareza para o fato de que a sobrevivência psíquica (emocional) e cultural (conhecimento) no "espaço-mundo" de hoje não abriga mais o discurso do "eu vitimado". A afirmação da subjetividade exige o pacto ético: a erradicação do algoz que habita o próprio ser.

Com o propósito de melhor traduzir a neutralidade do tempo, ante a imposição do espaço, convém recordar dois depoimentos: um provém da Roma Antiga, na figura do imperador filósofo, Marco Aurélio, que reinou entre os anos de 161 e 180 de nossa era; outro vem pelas vozes dos cineastas Michelangelo Antonioni e Wim Wenders que assinaram o belo filme Além das nuvens ("Beyond the clouds" ? 1995).

A escolha das duas fontes não assinala apenas a profunda distância entre os tempos, mas também a diferença radical na configuração dos espaços culturais. Todavia, pode-se perceber que o imperador filósofo e os cineastas formariam belo trio, reunidos numa palestra à qual se fizessem presentes públicos das respectivas épocas. Todos compreenderiam bem o que estivesse sendo exposto. Na primeira citação, Marco Aurélio reproduz uma frase do dramaturgo grego Eurípedes:


"Tudo o que nasceu da Terra deve à Terra retornar, e tudo o que vem do Éter, ao Céu deve voltar" para, em seguida, sobre ela sentenciar: "ou seja, trata-se da dissolução das combinações entre os átomos e da dispersão dos elementos" (Meditações ? Livro VII – ? 50).


Na voz do narrador, em bela interpretação de John Malkovich, os cineastas abrem a narrativa com um texto do qual extraio essa passagem:


"A coisa mais difícil é não se poder interessar por nada. Não ler, não ter nenhuma distração. Alcançar o silêncio e a escuridão. É na escuridão que a realidade se acende. É no silêncio que as vozes chegam de fora".


Promovendo as adaptações necessárias às reflexões aqui sugeridas, entende-se que o "espaço" do mundo da comunicação é regido exatamente pelos princípios da "dissolução das combinações" e da "dispersão dos elementos", ou seja, as diferentes combinações de conteúdos são dissolvidos pela dispersão das informações, processo alimentador do estado de aturdimento a que os seres se entregam, por não filtrarem criticamente o que recebem e por escolherem sempre o menos enriquecedor. O que se destaca é a dissolução da subjetividade pela permanente permissão ao assédio de agentes externos: excesso de som, de luzes, ou seja, a asfixia cultural com a qual o ser se desvia de seu curso natural: o espaço do pensar.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ

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