Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Muito além da benevolência

EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Eugênia Augusta Gonzaga Fávero

Todos sabem da necessidade de se construir prédios acessíveis, da igualdade de direitos para os portadores de deficiência. Ocorre que, freqüentemente, deparamo-nos com profissionais de várias áreas indagando: mas criança surda, deficiente mental, tem mesmo que ser matriculada no ensino regular? Isto representa um benefício? A escola precisa ter livros em braile? Por que gastar tanto com acessibilidade?, não basta uma entrada pela garagem? Quantos deficientes freqüentam nosso prédio para justificar a despesa?

Todas estas perguntas demonstram que olhamos para o portador de deficiência como alguém diferente. Alguém que não cabe no "nós" da primeira pessoa do plural, nem no "todos" dos administradores, dos políticos, das autoridades [A esse respeito, veja a obra da jornalista Cláudia Werneck, principalmente os livros: Sociedade Inclusiva. Quem Cabe no Seu Todos? e Ninguém Mais Vai Ser Bonzinho na Sociedade Inclusiva] É alguém que é acolhido como um gesto de benevolência, cuja simples visão ainda nos causa receio, às vezes até medo de chegar perto por não saber como tratar.

Não é má-criação, insensibilidade, mas pura falta de informação. Enquanto a nossa visão for de simples integração da pessoa portadora de deficiência, e não entendermos como "viver" a inclusão, a exclusão permanecerá.

Fazemos questão de diferenciar os termos integração e inclusão pois a maior parte de nossa legislação, inclusive a Constituição Federal, utiliza o primeiro, assim como a maioria dos órgãos públicos. Ocorre que existe um movimento mundial pela inclusão da pessoa portadora de deficiência, e não mais uma simples integração.

Integrar significa adaptar-se, acomodar-se, incorporar-se. Não é a melhor palavra porque presume-se sempre que trata-se da reunião de grupos diferentes. Reflete sempre uma ação do portador de deficiência para tentar adaptar-se, incorporar-se. Já a inclusão, não. Ela significa envolver, fazer parte, pertencer. Representa uma ação da sociedade que vem envolver parte dessa mesma sociedade que está excluída por falta de condições adequadas. Significa trazer para dentro de um conjunto alguém que já faz parte dele.

Não se trata de uma mera troca de verbos, mas de novo olhar sobre o portador de deficiência como sendo alguém que cabe no "nós", no "todos-tudo". No momento em que alcançarmos esse progresso, esse grau de desenvolvimento humano, essa naturalidade diante da diversidade, o aborto eugenésico ? como, por exemplo, o de crianças com Síndrome de Down ? será uma realidade muito distante. No momento ainda em que alcançarmos a verdadeira inclusão, o fato de uma pessoa sofrer um acidente e transformar-se num portador de deficiência significará apenas que suas aptidões mudaram e que ela deve adequar-se a uma nova condição de vida, também repleta de oportunidades.

Falsa impressão

A jornalista Cláudia Werneck utiliza em seu livro Ninguém Mais Vai Ser Bonzinho na Sociedade Inclusiva um exemplo muito feliz para ilustrar a atual sociedade e o que representaria a inclusão. Tentaremos descrever: a sociedade atual é como uma avenida muito movimentada, onde é muito difícil adentrar e permanecer, pois não tem qualquer sinalização. Só os muito aptos é que conseguem fazê-lo. Quem está nas estradas vicinais dificilmente consegue entrar na avenida ? e isSo é muito ruim pois é na avenida que se localizam os teatros, cinemas, supermercados, escolas, etc. Só que a avenida tem uma peculiaridade: ela inevitavelmente bifurca-se em estradinhas secundárias, de forma que quem está na avenida hoje, amanhã não estará mais. Realizar a inclusão significa colocar sinais nessa avenida, facilitando a todos o livre trânsito, de forma que todos colham os seus benefícios. No início, os mais apressadinhos podem até ficar irritados com a sinalização, terão que andar um pouco mais devagar, mas com o tempo aprenderão que todos têm muito a ganhar numa sociedade inclusiva. Nesse dia então, diz a jornalista, será uma grande festa.

A educação é um dos pilares para alcançarmos essa almejada sociedade inclusiva. É começando pelas crianças, com a conscientização delas sobre as diversidades que as necessidades especiais de alguns passarão a ser vistas como devem ser ? como algo natural, que faz parte da natureza humana.

O modelo pedagógico usado em algumas escolas particulares e até em públicas, de classificação de alunos em turmas A, B e C, pelo critério da maior aptidão, está na contramão de direção desse progresso intelectual. Em tais escolas particulares, as "melhores cabeças" já são selecionadas em provinhas, aos 4 e 5 anos de idade. Vão para a turma A, onde todos são muito bonitos, saudáveis, tiram notas parecidas, podem comprar o mesmo brinquedo etc. Resultado: a criança é criada num gueto, com a falsa impressão de que o mundo é daquele jeito. Não aprende a lidar com certas dificuldades porque nem sabe da existência delas. Num futuro, se for reprovada num teste, não saberá como enfrentar essa situação. Se sofrer um acidente, perdendo uma perna por exemplo, será capaz de suicidar-se por total despreparo emocional.

Explicação do termo

Nossa legislação, desde a Constituição Federal até a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, garante a inclusão da educação especial no ensino regular. Portanto, a matrícula compulsória de crianças portadoras de necessidades especiais, inclusive a deficiência auditiva, visual e mental, já é uma realidade em nosso País. Ocorre que como a lei demora muito a ser cumprida e tendo em vista certos termos ali utilizados como "preferencialmente", "sempre que possível", ainda há muito trabalho de conscientização a ser feito. Boa parte de nossos educadores sequer sabem o que é educação inclusiva, da obrigação legal de admitir alunos portadores de deficiência, ainda que mental, e o que é pior, não conhecem os extraordinários benefícios da inclusão até para os não portadores de necessidades especiais. As experiências que poderíamos relatar são maravilhosas, fazem com que qualquer pai de criança dita normal, que conviva com um portador de necessidade especial, sinta-se extremamente orgulhoso do filho, do quociente emocional por ele adquirido com essa convivência.

Existem dispositivos legais prevendo a compulsoriedade da matrícula, mas desde que o portador de deficiência seja "capaz de se integrar na rede regular de ensino". Não foi bem isso o que a Constituição Federal garantiu mas, de qualquer forma, tais artigos devem ser interpretados no sentido de que representam, sim, uma válvula de escape, mas apenas para aquelas situações em que, apesar de todo o sistema inclusivo, o portador de deficiência não consegue se integrar em razão de algum outro problema. Exemplo: o deficiente mental de 20 anos, que sequer teve estimulação adequada. Não é salutar para ninguém que seja colocado numa sala com crianças de 6 anos de idade. Portanto, admitimos que em certos casos a integração (ato que depende do portador de deficiência) não ocorre e nem seria recomendável. Isto explica o termo "desde que capazes de se integrar", que não deve servir como desculpa para se recusar alunos em razão apenas das suas necessidades especiais, por exemplo; ou recusar aluno cego porque a escola não conta com material adequado; ou recusar portador de deficiência mental porque ele não tem condições de acompanhar a turma e o professor não está preparado.

Ora, se tais argumentos fossem válidos a Constituição Federal não teria garantido a oferta de educação especial no ensino regular. Portanto, precisamos caminhar rumo à inclusão, ainda que a nossa legislação fale em "integração". Basta uma leitura das normas em conjunto para se perceber que a intenção, na verdade, é incluir, pois exige-se ações da sociedade visando o acolhimento desse grupo e não que o portador de deficiência venha se adaptar.

Não há o que ser adaptado, pois não se adapta o que já deve fazer parte, apenas se oferece condições para que não ocorra a exclusão. São essas condições, começando pela educação inclusiva, que devemos cobrar das autoridades e de nós mesmos.

(*) Procuradora da República em São Paulo com atuação na área da tutela coletiva relativa a pessoa portadora de deficiência

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