Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O buraco é mais embaixo

POLÍTICA DE COTAS

Antonio Fernando Beraldo (*)

Já que está todo mundo dando o seu palpite, aí vai minha colherzinha torta sobre a questão das cotas para negros nas universidades federais. Sou contra este sistema, do jeito que está posto ? acho uma rematada besteira desde que ouvi falar nesse negócio, faz uns cinco ou seis anos. E antes que alguém queira me rotular disso ou daquilo, peço um pouco da sua paciência para o que segue:

1. A universidade é o estágio final de um processo, e não pode ficar "corrigindo" a insuficiência dos estágios anteriores ? e nem tem condições de fazê-lo. Admitir alunos de conhecimento insuficiente, só porque são negros, ou pobres, ou paraplégicos, ou índios, ou sei lá mais o quê, sem que o governo forneça às instituições federais de ensino superior condições para ser, no mínimo, um "escolão" do terceiro grau ? o que já é o fim da picada?, é criar mais um tipo de discriminação.

Sei muito bem o que é isso. Em 1970, fui classificado entre os primeiros lugares no vestibular de Engenharia Química, da UFMG. Porém, como meus pontos na prova de Química, no próprio vestibular, foram abaixo do suficiente, tive que cumprir uns bons quatro meses de "recuperação" ? só estudando Química, na própria universidade. Eu, e mais um monte de gente, só fomos admitidos no primeiro semestre do curso depois de sermos (re)qualificados. Antes, éramos os "quase" universitários, numa espécie de "geladeira". Será que o governo federal, atualmente, daria condições de criar classes de, digamos, "equalização", para os ingressantes no sistema de cotas?

Colocar os alunos "por cotas" junto com os demais, na mesma classe, seria um massacre, no mais das vezes. São pessoas que, geralmente, têm emprego ou, desempregados, vivem se virando por aí. Não é possível que consigam se dedicar ao que exige um curso superior decente.

De acordo com o MEC, um aluno das universidades federais custa, em média, mais de 9 mil reais por ano. Esta cifra é muito contestada, mas, vá lá: um aluno que leva 8 ou 9 anos para se formar em um curso de duração estimada de 4 anos vai custar muito mais aos cofres públicos. Se do jeito que estão as coisas o cobertor anda cada vez mais curto, imagine daí em diante…

2. Desde que, num passe de mágica (e de bom-senso), houvesse a intenção de se "abrir" a universidade pública a ingressantes por cotas, o critério deveria ser pela classe socioeconômica, que por mais que seja imprecisa, é, óbvio, muito mais fácil de se averiguar do que a cor da pele. Falando tecnicamente, esta variável, quantitativa e objetiva, é muito mais fácil de mensurar do que a qualitativa "cor da pele", ou "raça" ? ainda mais num país como o nosso.

O então candidato Lula, naquele último debate da campanha, falou uma bobagem total ao dizer que dispomos de critérios científicos para dizer quem é negro ou não. E tem mais: o cidadão se autoproclamar "negro", apenas para entrar na universidade, é um convite à picaretagem, principalmente no Rio de Janeiro, lugar geométrico da malandragem nacional, no bom e no mau sentido. Sejamos francos: se aquele jovem que bem se classificou na UERJ é negro, eu sou esquimó.

3. Uma universidade federal é muito, mas muitísssimo mais do que um colegião de terceiro grau. Caso o cidadão queira, além de ensino, um pouco de pesquisa e extensão (e muito de conhecimento) não há muito o que escolher. Caso não seja este o seu intento, e quiser apenas um diploma, que fique à vontade. O ensino superior está majoritariamente concentrado nas instituições particulares, com cerca de 70% de oferecimento de vagas aos 3 milhões de universitários no país. Além disso, a capacidade de expansão do ensino superior privado é muito superior ao das instituições públicas.

Entre 2000 e 2001, a Unip (Universidade Paulista) atingiu 81,5 mil alunos, com uma expansão de 23%. Neste mesmo período, a segunda maior instituição de ensino superior do país, a Universidade Estácio de Sá (RJ), expandiu-se 77% (setenta e sete por cento!), alcançando um total de 60 mil alunos (dados do MEC, comentados na Folha de S.Paulo, 20/1/03, pág. C1).

A USP, estadual, que 12 anos atrás era a maior do país, está em terceiro lugar no ranking, com 35 mil alunos, e conseguiu uma expansão de apenas 2%; a primeira instituição federal nesta classificação está em 7? lugar: é a Universidade Federal do Pará, com 27,6 mil alunos (expansão de 20,5%, bem acima da média das federais, que foi de 8%). A UFRJ, terceira colocada em 1991 e nona em 2001, reduziu em 10% suas matrículas e agora conta com 25,3 mil alunos.

Que tal? Só não sei se as privadas aceitariam gente das classes C e D, dado o seu elevado risco de inadimplência. O crédito educativo seria uma solução, mas quem é que agüenta os juros vigentes?

Convém lembrar que quem se beneficia do "gargalo" de acesso ao ensino superior são os "cursinhos", empresas privadas, com pouco mais de 94% deste mercado.

4. A verdade é que o ensino no país está numa crise sem precedentes. Quem quiser se arrepiar, entre no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), baixe o guia "Geografia da Educação Brasileira 2001" e perca o sono. A tal da progressão continuada, ou sistema de ciclos, além de "formar" uma geração inteira de ignorantes, não conseguiu evitar a evasão no primeiro grau: de cada 100 alunos que ingressam no ensino fundamental, 41 não conseguem terminar os oito anos e caem fora. Os remanescente 59 entram no ensino médio e, destes, 44 chegam às portas da universidade, levando, em média, 14 anos para completar os 11 anos dos dois níveis. E em condições que nem convém falar. Veja alguns dos resultados do ENEM (2002):

** Dos 1,3 milhão de estudantes que fizeram o exame, 74% tiraram notas abaixo de 40 (numa escala de zero a cem). Considerados apenas os estudantes da rede pública, o desempenho foi ainda pior: 84,5% obtiveram nota abaixo de 40, com desempenho classificado pelo Ministério da Educação entre insuficiente e regular. A média geral na prova objetiva, obtida tanto pelos alunos da rede pública quanto da rede privada, ficou em 34,1 pontos.

** Apenas 0,7% dos alunos de escolas públicas conseguiu tirar acima de 70 na prova objetiva (na rede privada o porcentual chegou a mais de 9%). Quase 85% foram reprovados (notas abaixo de 40). Na prova de redação, o porcentual de estudantes da rede privada que alcançaram as melhores notas é mais de três vezes maior do que o de estudantes da rede pública ? 26,4% dos alunos das escolas particulares tiveram desempenho entre bom e excelente (notas entre 70 e 100); na rede pública, foram apenas 7,8%. Na prova objetiva, a diferença entre o porcentual de alunos com notas altas chega a ser 13 vezes maior. Quando o aluno estudou parte do ensino médio em escola particular e parte em escola pública, seu desempenho melhora em relação àquele que só freqüentou a pública. O porcentual de notas altas entre os alunos que passaram pelos dois tipos de escola ficou em 2,7% na prova objetiva e 13,7%, na redação.

Que tal? E vêm me falar em cotas? Onde é que está o buraco? Nos 56% que ficaram "pelo caminho", ou dos 8 em 100 que temos nas universidades (2 em federais e 6 em particulares)?

5. Apenas para completar a tragédia, ainda temos um "estoque" de 12% de analfabetos, umas 20 milhões de pessoas (no Maranhão, por exemplo, uma em cada três pessoas é analfabeta). E mais uns 25 milhões de analfabetos funcionais (gente que lê mas não entende), e um porcentual crescente de re-analfabetos (você já tinha ouvido falar nisso?).

Pois é…

(*) Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora