Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

O coronel e o lobisomem

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

Aqui se resume a magnífica e exemplar história de Ponciano de Azeredo Furtado, precocemente órfão, criado pelo avô, Simeão de Azeredo Furtado, nos currais do Sobradinho, em Campos dos Goitacazes.

Narra um Ponciano já velho que, determinado a torná-lo advogado, o avô o encaminha ao Sossego, local cheio de lobisomens, corujas e caburés. Mas "de letra nem queria sentir o cheiro". Desde cedo, o trabalho que mais apreciava era o andar na poeira de um bom rabo-de-saia.

Com a morte do avô, o choro diminui na exata proporção de suas descobertas: "A verdade é que Ponciano de Azeredo Furtado era um sujeito enricado." Acabam-se os dias de vadiagem e Ponciano toma respeito pela "herança de boi e pasto", pois "melhor engorda de boi é o olho do dono".

Mantém, com seus vizinhos e amigos, "relações estreitosas", de freqüentar Moulin-Rouge e outras ribaltas. Tarde, chega à conclusão de que muito comerciante de secos e molhados abriu falência nas pernonas dos tempos da francesada supimpa. Eram como ele, respeitosos por fora. "Dentro, safadeza maior não havia." E, como sói acontecer, usufruía as "libertinagens de sua autoridade de patrão". Coisa hereditária, cujo quarto, que também fora de seu avô, "dá presença uma assombração cheirosa, de "moça teúda e manteúda".

Sua figura avulta, diante de vizinhos e empregados, por força de alguns acontecimentos. Primeiro, ao modo de um Édipo dos Engenhos, surrupia de um moleque a honra da eliminação de uma onça pintada, espécie de Esfinge que aterroriza os vizinhos, outorgando-se ares de valentia que não correspondem aos fatos. Depois, no caminho, quando sai em auxílio de um vizinho para fins de eliminar um "ururau de olhos de fogo", encontra na praia uma sereia, da qual aproveita só "as partes de cima, que as partes subalternas não servem para nada".

Os desembaraços da patente, as escolas de padre e as práticas de cartório não limparam os ermos de suas heranças da imundície, e sua valentia figurava apenas no branco do papel, mas com muita imaginação. E nesse viver, passa os dias entre o Sobradinho e Campos. Enquanto em Campos entra nas graças de D. Esmeraldina, mulher de Pernambuco Nogueira, no Sobradinho ganha o galo de rinha Vermelhinho, com quem mantém um diálogo aberto que lhe franqueia uma grande vitória no rinhadeiro e mais fama com o povo

Voltando à rotina da fazenda, dentre outros fatos figurativos, terça armas com o cobrador de impostos, Jordão Tibiriçá. Ainda de maior relevância, enceta briga com um lobisomem. Vence-o, mas, magnanimamente, o liberta, para gáudio do povo dos ermos.

Em determinado momento Ponciano deixa Sobradinho aos cuidados do capataz Quintanilha e retorna a Campos. Nesta cidade, na mesma proporção da derrocada financeira de Pernambuco Nogueira, a quem subsidia, cresce sua intimidade com mulher do advogado, dona Esmeraldina. O mundo urbano envolve-o em negócios arriscados, apoiado pelas facilidades de crédito do Banco da Província, e enrolado pelas solicitudes da mulher de seu advogado. O dinheiro jorra pelos ralos das amizades. O jornalista Nonô Portela, muito bem pago, torna-o conhecido e admirado na cidade. Enquanto isso, fia os empréstimos de Pernambuco para a campanha eleitoral. A derrota deste, somada a outras de natureza afetiva e comercial, levam Ponciano à falência e ao Sobradinho.

Já no trem que o devolverá às origens, sob comentários a respeito de sua sanidade mental, faz discurso contra o governo e os impostos. Busca nova guerra ao exator Jordão Tibiriça, mas sofre um ataque e cai. A partir deste momento Ponciano segue ora caminhando ora entre as nuvens. Encontra o capeta e, montado numa mulinha de São Jorge e vestido com a farda de coronel, o enfrenta, como já o fizera com o lobisomem.

Desce o pano!

Nestes dias, relendo esta obra paradigmática do jornalista e escritor campista José Cândido de Carvalho, cujo enredo se desenrola entre o fim da Primeira República e a Revolução de 30, fiquei divagando sobre o quanto aquele período de nossa história se assemelha ao atual. Era uma época de transformações, em que o mundo agrário perdia espaço, cedendo lugar ao meio urbano. Este limbo que medeia o antes e o depois torna verossímil o diálogo entre homens, sereias e lobisomens, dando a entender que se certos paradigmas eram quebrados então tudo era permitido. De corpo inteiro, fazem-se presentes as dicotomias do mundo agrário, afastado, com seus códigos próprios, e o urbano, em mutação acelerada. Na tentativa de construir a ponte destes mundos, desmorona o indivíduo desenraizado de ambos, e a exemplo de Memórias póstumas de Brás Cubas, narra a própria morte. A morte do mundo pré-industrial.

Mutatis mutandis, estes nossos também são tempos de coronéis e lobisomens. Agora é o mundo pós-industrial que entra em colapso, e dá lugar a um novo paradigma. Este é um tempo, ao mesmo tempo novo, como aquele de Dante: "Da vida ao meio da jornada, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me embrenhado em selva escura." Conclui-se então que, de tempos em tempos, o mundo sofre mudanças, quebra paradigmas, e, nesta selva selvagia, alguns ficam pelo caminho. Até aqui, Darwin também está de acordo, ou não?!

Não se pode olvidar o processo histórico ? a história não acabou não, seu Fukuyama ? para não vermos se repetindo, como farsa, acontecimentos próprios da ficção. A realidade por vezes suplanta a mais criativa das ficções.

Acontece que, ao professar a fé da globalização, certos coronéis atuais usam e abusam da patente que o poder monetário lhes outorga nos tempos que correm. Vimos, não faz muito, empresas de comunicação se encantando com o dólar fácil tal qual um Ponciano diante dos créditos do Banco da Província. Nada mais simbólico que o comércio de açúcar do coronel ? o doce que se desmancha ?, para simbolizar os riscos de uma época em mutação, com a intrepidez dos coronéis deslumbrados com a globalização. Também eu fico Ponciano e começo a ver lobisomens e sereias quando leio que a empresa que faz a defesa intransigente do Estado mínimo, do livre mercado, depende do dinheiro público para tocar adiante os seus negócios privados.

Jogam-se se no lixo os escrúpulos ideológicos desde que o BNDES continue dando sustentação a um oligopólio.

Como não poderia deixar de ser, o manual de ética do jornal Zero Hora, por exemplo, propugna o livre mercado, professando os credos da livre iniciativa, na esteira do que a empresa RBS professa. O jornal, carro-chefe do Grupo RBS, procura enaltecer, para consumo de seu público, tais princípios, mas em nenhum momento associa tais idéias ao favorecimento estatal a uma de suas empresas. Se tudo estiver dentro da lei, bola para frente. Contudo, é possível que tais veículos possam informar com isenção a respeito dos critérios que levam o BNDES a preferir investir em televisão a cabo do que em saneamento básico?

E há mais questões.

O MST gaúcho, ciente da incapacidade governamental de atender a demanda ? olha aí as famosas leis ? e diante da tentativa de mascarar os números de assentamentos, como denunciou a Folha de S.Paulo em várias reportagens, e também vítimas da lei que impede a desapropriação de fazenda ocupada por seus militantes, viram-se na iminência de buscar novas formas de pressão. Escolheram e ocuparam uma fazenda produtiva, com área superior a mais de 100 municípios gaúchos. A questão é ideológica, sim, como é ideológica a opção do BNDES!

Pela lógica, a ocupação do MST deveria ter desencadeado no jornal Correio do Povo um ataque sem tréguas. Afinal, a família Ribeiro é grande proprietária de terras, e tem uma forte cobertura jornalística dedicada à área rural. Contudo, o jornal noticiou, claro. Condenou também, mas manteve a compostura. Isto é, soube distinguir informação de interesse público da do interesse pessoal.

A RBS seguiu outro rumo. Seus veículos vêm destacando de forma contundente as ocupações do MST no RS. Uma série de reportagens trata-o simplesmente como um grupo criminoso. Nas palavras, vai agregando pequenos detalhes no sentido de torná-lo execrável e estereotipado perante a sociedade. As cartilhas são ideológicas, os treinamentos são de guerrilheiros, as práticas são ilegais, os procedimentos repudiados! É um movimento organizado!

Contudo, "desconhecem" que estes "criminosos" são interlocutores constantes do Poder Público Federal. A tentativa de criminalização não é coisa nova na RBS quando se trata de movimentos sociais. Mas parece que apenas isto não explica o viés que caracteriza o momento.

Há um velho ditado que explica muito da ética jornalística praticada pela RBS: "Diga-me com quem andas e eu te direi quem és." Não satisfeito com o perfil ideológico da RBS para justificar tal atitude, que se acha com mais direito de receber alguns milhões do BNDES do que os mais necessitados, fui em busca de algumas respostas que pudessem justificar tamanha agressividade contra os sem-terra. Talvez ainda não tenha encontrado a razão primeva, mas há algo que este articulista "insidioso e obsessivo" gostaria de compartilhar.

Uma entrevista concedida por Nelson Sirotsky a um sítio eletrônico <www.adonline.com.br/saia_justa04.asp> me parece ser paradigmático das regras que pautam o grupo. Em determinado momento, Nelson faz um balanço das investidas do grupo em 2001: "Cito o segmento rural, um dos pilares da nossa estratégia de segmentação: unificamos o segmento e abrimos o sinal do Canal Rural, que atinge sete milhões de parabólicas em todo o país, um público de 35 milhões de telespectadores." Na seqüência, vem a pergunta: "E para 2002?" Nelson vai fundo: "Vamos consolidar o segmento rural como a principal plataforma do setor nacional. Só esse negócio vai ser algo em torno de 18 milhões de reais. A metade disso é o Canal Rural. A outra metade é de iniciativas voltadas para o comércio. Temos um projeto chamado SIRB ? Sistema Integrado de Rastreabilidade Bovina ?, que é feito em cima de um site que desenvolvemos em parceria com a Farsul, que é o Agrol, e só esse negócio vai ter uma receita de dois milhões de reais. É apenas um exemplo. No setor jovem, crescer a ação na Região Sul e criar uma aliança nacional para este segmento. E o Popular, que começamos neste ano."

Também na semana que passou, o superintendente do Incra no RS, Jânio Guedes da Silveira, pediu demissão depois que o presidente da Federação da Agricultura no Rio Grande do Sul (Farsul), Carlos Sperotto, conseguiu que Brasília suspendesse as vistorias que a lei previa. Então, uma conferida no sítio <www.agrol.com.br>, de que Nelson Sirotsky fala acima, e surge a dúvida. Os parceiros da RBS são nada menos que a Farsul e o Grupo Planejar, desenvolvido no subsolo da Rua Silveiro, 1.111, Porto Alegre, o mesmo local onde estava instalada a RBS Nutecnet! E tem mais. O informativo Sul Rural, que já está na edição 223, produzido em parceria com o Senar/RS <www.senarrs.com.br>, diz fazer, em sua edição n? 219, de novembro passado, disponível no sítio Agrol da RBS, o "Retrato das Invasões". Lá pelas tantas termina assim: "E que conta com a complacência de um governo do estado, que garante a sua impunidade."

Coronelismo eletrônico

Palavras retiradas do sítio do Senar: "O Senar ? Serviço Nacional de Aprendizagem Rural foi criado pela lei 8.315 de 23 de dezembro de 1991, nos termos do Artigo 62 do Ato das disposições constitucionais transitórias, onde previa sua criação nos moldes do Senai e Senac. É uma Instituição de direito privado, paraestatal, mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação Nacional da Agricultura-CNA e dirigida por um Conselho Deliberativo, de composição tripartite e paritária, por ser composto por representantes do governo, da classe patronal rural e da classe trabalhadora, com igual número de conselheiros."

Estes espaços nebulosos, talvez promíscuos, deveriam ser mais bem explicados por alguém que entenda do riscado. Como me restam dúvidas, gostaria de compartilhar com os leitores deste Observatório:

** Primeiro, o SENAR é paraestatal. Boa parte de seus recursos são oriundos dos cofres públicos, que lá também mantêm representante. É ético usar recursos públicos federais para acusar o governo do estado de complacência sem apresentar a responsabilidade deste?

** Segundo, a RBS, ao se aliar comercialmente à Farsul e ao Senar não compromete sua isenção, sabendo-se que ambas as entidades representam interesses apenas dos grandes produtores, vítimas potenciais das ações do MST? Nunca é demais lembrar que a Farsul é uma espécie de UDR dos pampas!

** Terceiro, os profissionais da RBS que assinam as matérias e tecem seus comentários têm conhecimento disso e concordam com esta simbiose de interesses?

Assim como Ponciano tinha lá seus homens de confiança, a RBS também sabe escolher os seus. Não poderia deixar de registrar aqui uma declaração recente, arquivada nos anais da Assembléia Legislativa gaúcha [em <http://www.al.rs.gov.br/plenario/2001/010619.htm>], que também é paradigmática de determinada linha que faz a cabeça da empresa: "O Britto está na estratosfera, está cometendo erros primários, desde que saiu do governo. Deveria ter saído do governo pela porta da frente (Britto não transferiu o cargo ao seu sucessor) e ter combinado com um assessor para que acertasse um ovo, com boa pontaria. Cometeu sucessivos erros. Tem dificuldade de aceitar críticas, mas isso é normal." Não se assustem, esta pérola é da mesma lavra das orientações dadas ao candidato Fernando Collor, na campanha de 1989, de como o candidato deveria se portar por estes pagos. Alguns ainda devem se lembrar que, após as eleições daquele ano, uma revista de circulação nacional esclareceu que a "baderna" ocorrida em um comício na cidade gaúcha de Caxias do Sul foi provocada por funcionários de uma empresa de segurança contratada para tanto. Que tipo de ética é esta?

A união do coronelismo eletrônico, globalizado, com o arcaico mas igualmente plugado, pode incrementar a venda de açúcar. Outros negócios, inclusive, podem prosperar e algumas infidelidades também. Para os tempos que correm, mais do que nunca precisamos de bons ficcionistas, da estirpe de um José Cândido de Carvalho. Aliás, "Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos", também deste jornalista de linguagem inventiva, talvez possa clarear um pouco esta "selva selvagia" simplesmente pelo fato de tratar dos "contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do Povinho do Brasil".

(*) Funcionário público federal; sítio: <www.crestani.hpg.com.br/>