Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

O Estado de S.Paulo

CHOQUE E PAVOR

"TV iraquiana entrevista 5 americanos capturados", copyright O Estado de S.Paulo, 24/3/03

"As tropas dos EUA que avançam pelo sul do Iraque rumo a Bagdá sofreram ontem perto de Nasiriya (Nassiria) seu maior revés desde o início da guerra. Durante ferrenhos combates pelo controle de posições na área, pelo menos dez marines (fuzileiros navais americanos) foram mortos, cinco foram capturados por forças de elite iraquianas ? e exibidos pela TV ? e sete estavam desaparecidos, informou o Comando Central dos EUA. Já o Exército do Iraque anunciou ter matado 25 soldados americanos na área de Nasiriya (320 quilômetros ao sul de Bagdá).

Na madrugada de ontem, o Ministério da Defesa britânico informou que pelo menos dois de seus soldados haviam desaparecido no sul do Iraque.

A TV iraquiana mostrou imagens de pelo menos seis alegados americanos mortos (alguns com mutilações, outros com buracos de bala na cabeça ou no estômago) e exibiu uma pequena entrevista com os prisioneiros ? quatro homens e uma mulher, visivelmente tensos numa sala ?, retransmitida depois pela TV Al-Jazira, do Catar. Washingtou reagiu acusando o Iraque de violar a Convenção de Genebra (cuja versão atual entrou em vigor em 1950) por mostrar imagens de prisioneiros de guerra. O presidente americano, George W. Bush, pediu que eles sejam tratados ?humanamente, assim como vamos tratar os prisioneiros iraquianos?.

?A Convenção de Genebra indica que não é permitido fotografar, envergonhar ou humilhar prisioneiros de guerra?, disse o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, à TV americana CBS. Afirmando que as forças americanas já têm sob custódia cerca de 2 mil combatentes iraquianos, ele acrescentou: ?Os EUA evitam mostrar seus prisioneiros de guerra.? Rumsfeld pediu que não fossem retransmitidas as imagens gravadas pela TV iraquiana: ?As redes que difundirem essas imagens estarão fazendo algo infeliz.? Atendendo ao pedido, a maioria das redes americanas evitou divulgar as imagens. A CNN exibiu apenas as fotos, e só a CBS pôs no ar, por poucos segundos, um trecho da entrevista.

O governo britânico e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) também afirmaram que a exibição dos prisioneiros pela TV viola a Convenção de Genebra. ?O artigo 13 diz claramente que os prisioneiros de guerra precisam ser protegidos … contra insultos e curiosidade pública?, disse em Genebra uma porta-voz do CICV, Nada Doumani.

O ministro de Defesa do Iraque, Sultan Hashim Ahmed, prometeu que o país respeitará a Convenção de Genebra: ?O Iraque não causará dano aos prisioneiros.?

No vídeo retransmitido pela Al-Jazira. o entrevistador da TV iraquiana perguntou em inglês a cada prisioneiro seu nome e lugar de origem. Com seus olhos se movendo lentamente de um lado para o outro e voz vacilante, a única mulher entre os militares capturados identificou-se como Shawna, de 30 anos, do Texas. Ela disse ser da 507.? Companhia de Manutenção. Quando a câmera se afastou, viu-se que Shauna tinha uma atadura no tornozelo.

Outro prisioneiro, que disse ser Joseph Hudson, de El Paso, Texas, encarou a câmera e falou com voz clara e firme. Indagado sobre por que foi ao Iraque, respondeu: ?Sigo ordens.? O entrevistador perguntou várias vezes se Hudson foi recebido com flores ou armas no país, mas o militar aparentemente não entendeu a questão. Já um cativo que afirmou ser do Kansas e identificou-se como Miller parecia nervoso. Seu olhar ia e voltava do entrevistador para outra pessoa, que não era mostrada pela câmera. Indagado sobre por que foi ao Iraque, ele respondeu: ?Vim para arrumar coisas quebradas.? O entrevistador perguntou então se ele tinha ido ao país para matar iraquianos. ?Não, vim para atirar só se atirarem em mim. (Se) eles (os iraquianos) não mexem comigo, eu não mexo com eles.?

Um quarto prisioneiro identificou-se como sargento James Riley, de New Jersey, e disse ter 31 anos. Ele parecia em estado de choque, virando sua cabeça de um lado para outro. O quinto cativo, que parecia ter um braço quebrado, estava estendido num tapete vermelho, mas foi posto sentado para responder às perguntas. Afirmou ser Edgar, do Texas, e disse ter entrado no país pelo Kuwait.

Um porta-voz do Comando Central dos EUA, brigadeiro Vincent Brooks, disse que os militares capturados e desaparecidos foram emboscados ? aparentemente pela milícia Fedayeen ? quando o motorista que liderava um comboio de suprimentos militares seguiu por um caminho errado. Seis veículos do comboio foram destruídos. Os dez americanos mortos foram atacados quando se preparavam para aceitar o que parecia ser uma rendição de iraquianos, acrescentou Brooks.

Do lado iraquiano, 70 militares morreram em combate perto da cidade de Najaf, disseram fontes militares americanas. Outros 77 civis já morreram e 366 ficaram feridos pelo bombardeio aliado contra Basra, afirmaram autoridades iraquianas. Mais quatro pessoas morreram e 13 ficaram feridas em ataques aéreos contra Tikrit, segundo a TV estatal.

Mãe reconhece detido ? Um dos militares americanos capturado pelas forças iraquianas foi identificado ontem por sua mãe como Joseph Hudson, do Novo México. anecita Hudson, revelou que até o momento não recebeu nenhum comunicado do Departamento de Defesa sobre a situação de seu filho. No entanto, ela disse à imprensa que a mulher de Hudson foi convocada para uma audência em Fort Bliss, na qual supostamente será informada da captura de seu marido por forças inimigas. A mãe de Hudson, que de origem filipina, reconheceu o filho por meio das imagens divulgadas por uma TV filipina captada nos EUA. (AP, Ansa e Reuters)"

"Curiosidade pública", copyright Folha de S.Paulo, 24/3/03

"As imagens eram quase tão ruins, tecnicamente, quanto aquelas dos videofones. Mas a dramaticidade era maior do que qualquer disparada de tanques no deserto.

O que a Al Jazeera pôs no ar justifica inteiramente a reação mortificada do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, em entrevista à CNN.

Os americanos capturados, entre eles uma mulher, todos machucados, transpareciam pavor diante das perguntas de um homem com o microfone da TV iraquiana. Na sequência, as cenas dos corpos desfigurados dos americanos mortos eram ainda mais chocantes.

Rumsfeld criticou a Al Jazeera e fez o que soou como um aviso às TVs americanas. Ao menos foi o que algumas entenderam -e logo cumpriram.

Mas a CNN continuou com as cenas. Só achou necessário se justificar, toda vez:

? Nós estamos mostrando porque é notícia. Para darmos uma visão total do conflito, nós acreditamos que estas imagens devem ser mostradas.

Rumsfeld, na entrevista, falou em desrespeito à Convenção de Genebra, que ?determina que é ilegal que prisioneiros de guerra sejam mostrados?. O problema foi sua frase seguinte:

? Isso é algo que os Estados Unidos não fazem.

Quem assistiu TV nos últimos dias cansou de ver prisioneiros de guerra iraquianos, alguns em imagens obtidas com o apoio do próprio Pentágono.

Iraquianos, americanos, Al Jazeera, CNN: ninguém, ao que parece, respeita a Convenção de Genebra. Segundo a BBC, o art. 13 determina que prisioneiros sejam protegidos contra toda ?curiosidade pública?.

Mas a curiosidade pública é o que define esta guerra.

No dizer da BBC, foi ?o dia mais difícil? para a coalizão. Culminou com as imagens na TV, mas houve mais -e sempre de ?fogo amigo?.

Um jato britânico foi atingido por um míssil americano. Dois tripulantes morreram.

No Kuait, um ataque matou um soldado americano. Um ?ato terrorista?, anunciou a Fox News. Falou-se em Al Qaeda, mas amanheceu e o culpado era outro americano.

Por fim, o canal britânico ITV confirmou que um enviado seu estava morto -de acordo com um membro da equipe, atingido por balas britânicas.

A Al Jazeera quer mostrar o horror da guerra para todos os lados. No sábado, apresentou a imagem de um corpo de criança -sem a parte de trás da cabeça. Era uma vítima do bombardeio da cidade de Basra."

***

"Cogumelos", copyright Folha de S.Paulo, 22/3/03

"Os cogumelos gigantes, as explosões berrantes, o inferno vermelho. Foram dez minutos de ?choque e pavor? não só para Bagdá, mas para o mundo.

George W. Bush não viu. Ele evitou a TV. Prefere receber as informações por outros meios, segundo o porta-voz.

Mas o resto viu. Na CNN, um enviado não aguentou:

? Estão destruindo Bagdá, nunca vi algo assim.

O choque levou à imediata reação. O secretário de Defesa surgiu e, de pronto, questionou a cobertura:

? Eu vi algumas das imagens na televisão. E ouvi comentários comparando com o bombardeio na Segunda Guerra. Não há comparação. A capacidade de acertar o alvo é impressionante. Provavelmente estamos vendo algo histórico.

Mais de uma década depois, a mesma conversa. São armas de precisão, cirúrgicas.

Mas as cenas, desta vez, foram nítidas demais -de impacto à simples visão.

Daí ser preciso garantir que não foi ?bombardeio à deriva?, como fez a Fox News, ou que se ?limitou à estrutura militar?, como fez a CNN.

Um enviado desta última, a certa altura, mencionou uma crítica de fontes do governo aos que trocaram uma bandeira do Iraque pela dos EUA:

? Os Estados Unidos estão lá para proteger iraquianos, não para mandar neles.

A atitude de seus soldados foi descrita como ?antipática?.

Nada de Al Jazeera -quem garantiu a nitidez das cenas de Bagdá em chamas foi o canal dos Emirados Árabes.

Até na Globo foi a câmera da TV Abu Dhabi que revelou todo o horror do ataque.

A CNN, que fez o seu nome com as transmissões de Bagdá na Guerra do Golfo, em 91, foi expulsa da capital por ter virado ?arma de propaganda?, para o governo iraquiano.

A discórdia foi menos com os dois enviados à capital do que com os jornalistas da CNN que seguem as tropas no programa apelidado de ?na cama com o Pentágono?.

Com videofones de imagem péssima mas dramática, eles se confundem com os soldados que cobrem, suas histórias humanas e o avanço de seus tanques -e fazem relatos épicos.

Descoberta ?na cama?, a CNN perdeu seu trunfo.

Para piorar as coisas, Peter Arnett, que cobriu Bagdá na Guerra do Golfo, está lá de novo. Demitido da CNN, hoje cobre a guerra para as concorrentes NBC e MSNBC.

Para piorar ainda um pouco mais, registre-se que o fundador da CNN, Ted Turner, se ofereceu para cobrir ele próprio a guerra a partir de Bagdá. Foi Turner quem conseguiu manter Arnett na capital, em 91, convencendo Saddam da cobertura isenta de seu canal.

Desta vez, os novos donos da CNN recusaram a idéia."