Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

O jornalismo é uma profissão, sim!

DIPLOMA EM XEQUE

Rogério Christofoletti (*)

Se você tiver uma dor de dentes agora não vá a um dentista. Se sofrer um acidente de trânsito, não ligue para seu corretor de seguros. Se a Justiça está na sua cola, não tente seu advogado. Se estiver na hora do parto, nem pense num médico. Para curar a dor, vá até a farmácia e peça ao balconista um remedinho que dê jeito. Para resolver o problema da franquia, acione o despachante da esquina, que também poderá dar uma solução para seu processo no fórum. Por fim, se estiver na hora de o bebê chegar, chame uma parteira.

Em todos estes casos, você pode ter encontrado uma saída barata e rápida. O que não quer dizer que a solução foi a melhor, a mais segura ou a definitiva. Estes exemplos banais mostram a importância da capacitação profissional no dia-a-dia, e quanto é preciso reconhecer e defender estas condições.

O mundo mudou, as sociedades tornaram-se mais complexas, o trabalho passou a ser dividido cada vez mais e certos conhecimentos se desenvolveram de tal forma que se constituem terrenos próprios de saber. Assim, embora médicos, dentistas e veterinários estejam todos atuando na área da saúde, cada um realiza seu trabalho. Bem como arquitetos e engenheiros, jornalistas e publicitários, advogados e promotores. Uma profissão é um conjunto de conhecimentos, técnicas e formas de relação com o trabalho, que define uma atividade específica. Quando temos um grupo social que desempenha as mesmas funções temos uma categoria profissional.

Jornalistas são profissionais específicos. Têm uma visão muito particular da sua função, recorrem a técnicas para exercer sua profissão, têm uma deontologia própria que ajuda a circunscrever os limites de sua atuação no campo social do trabalho. Saber escrever um lead, fazer um perfil, editar um bloco de notícias, baixar uma página são algumas das atividades exclusivas a jornalistas. Da mesma forma, fazer petições, escrever uma defesa ou representar um cliente nas barras de um tribunal são funções de um advogado. Cada um faz o que lhe cabe. Mas e se o advogado quer escrever num jornal, ele pode? Desde que seja a título de colaboração ou como comentarista de sua área específica. Reportagens e matérias noticiosas, não. Jornalistas também podem ser consultores de advogados, certo? Certo, mas representar o cliente ali diante do juiz só mesmo o seu representante legal.

Então, é preciso entender que a discussão acerca da obrigatoriedade ou não do diploma remonta a uma série de questionamentos anteriores. A ponta do iceberg chama a atenção, mas a sua existência depende da massa de gelo submersa que lhe dá sustentação.

É preciso que não se caia em armadilhas e que não se cometam impropriedades. A primeira armadilha é confundir liberdade de imprensa com regulamentação profissional. Para não ferir a liberdade de imprensa, a juíza Carla Rister soterra as regras, as condições e as atribuições que definem a atividade profissional do jornalismo. O equívoco é tão grosseiro que corresponde a confundir justiça com capacitação profissional do advogado. Tanto liberdade de imprensa quanto justiça devem existir, precisam vigorar, mas são valores que precisam ser cultivados, reforçados e se referem a um contexto maior. A capacitação do profissional que vai exercer o jornalismo ou o direito independe da liberdade de imprensa ou do quociente de justiça. Tal capacitação é o resultado da formação técnica que teve, do repertório cultural que vem montando, de sua capacidade de resolver problemas, de sua inteligência e sensibilidade, da maturidade para encontrar soluções, enfim, de um complexo processo de subjetivação que alia condições internas e externas. Todos podem ser advogados, jornalistas ou juízes, desde que se habilitem para isso. O acesso à escola ? a juíza acusa de elitismo a obrigatoriedade ? é um direito, mas não é desregulamentando profissões que ampliaremos as vagas nas universidades.

Frutos do jornalismo

Um dos argumentos: o Brasil é um dos únicos países que mantêm esta obrigatoriedade, coisa que os países mais desenvolvidos simplesmente dispensam. Pois bem, o Brasil não tem as leis rigorosas que os demais países têm; o Brasil tem larga tradição de concessão de emissoras de rádio e TV como moeda política, o que não acontece acima da linha do Equador; o sistema de comunicação brasileiro é apoiado em oligopólios comerciais e oligarquias políticas, o que nem sempre se dá lá fora; como a mais poderosa e "livre" nação do mundo, a imprensa brasileira trouxe à tona reportagens que culminaram na deposição de um presidente da República; as comparações podem ser feitas aqui e acolá, mas regulamentação profissional deve ser entendida como avanço, e não retrocesso.

Para muita gente, o diploma de jornalismo é dispensável porque "as escolas são ruins", "não formam os profissionais direito" e "a técnica se aprende em poucas semanas". Mas, se as escolas são ruins, a responsabilidade não é do dispositivo legal que regulamenta a profissão, senão seria como culpar o código de ética do advogado pelas injustiças praticadas nos fóruns. Se as escolas de Comunicação são ruins, porque os veículos empregam os recém-formados? Se as escolas não formam, são as redações que ensinam o jornalismo? Quantos jornalistas experientes estão nas redações e dão suas preciosas atenções aos focas? Quantos?

As escolas podem não oferecer a formação adequada, mas é um avanço que existam e permitam que os novos profissionais cheguem ao mercado com um nível de formação formal e técnica, em vez do que era antigamente. Jornalismo era bico, hoje é profissão, que interfere na vida das pessoas comuns e na das mais influentes e poderosas. Não dá para recuar.

É equivocado pensar que jornalismo é uma questão de talento. Não é. É uma questão de rigor, de critérios, de vontade, de vocação, de indignação social, de habilidade de escrita, de agilidade no raciocínio. E isso se aprende também. O aluno pode chegar à universidade com um bom caminho percorrido, mas é na escola que vai ser bombardeado de informações e vai despertar para uma série de novos caminhos e oportunidades. Engana-se quem pensa que pode aprender jornalismo em poucas semanas. Se isso acontecesse, as escolas teriam tantos semestres? E nós, professores, teríamos que repetir tanto e tanto como se faz uma legenda ou uma abertura de texto?

O jornalismo é uma atividade complexa, dinâmica e que depende muito da formação cultural e técnica de quem o exerce. Depende de acurácia, de percepção fina, de vontade de trabalhar e refazer tarefas. Só quem está devidamente habilitado pode fazer uma extração de dentes ou escrever uma sentença de morte, bem como escrever o roteiro de uma entrevista ou ainda fazer uma matéria investigativa sobre a corrupção no Judiciário. É evidente que há exemplos de bons jornalistas que não passaram pelas universidades, mas todos estes são de tempos em que não havia tal exigência, e são claras exceções. Ricardo Kotscho e Paulo Francis, Millôr Fernandes e tantos outros são exceções dos não-formados. Do outro lado, dos que passaram pela educação formal das universidades, estão Gilberto Dimenstein, Clóvis Rossi, Caco Barcelos, Carlos Nascimento, Neide Duarte, William Waack, Paulo Markun e uma lista interminável. E neste caso eles não são exceções, são frutos dos cursos de Comunicação e da própria luta pessoal na ascensão da carreira.

Doutor, só médico

Dispensar o diploma hoje é como rasgar o documento do obstetra e reconvocar a parteira em seu lugar. Ela pode ser hábil, atenciosa e certeira, mas não teve acesso aos conhecimentos do médico, não dispõe das mesmas condições de operação e expõe as gestantes a riscos maiores. Tempos atrás, quase não havia obstetras, e sempre se recorria às parteiras. Mas o tempo passou, e jogar o diploma do médico no lixo é voltar atrás, permitir-se involuir.

O mesmo se dá com jornalistas. O jornalismo ainda está distante do que pode ser nesta república. Ainda há muito o que fazer, mas avanços têm se dado. E eles não podem ser ignorados. O tempo não pára e o tempo não volta…

Mas eu alertava no início deste texto que era preciso não cometer impropriedades, e a primeira delas, a mais banal, é chamar advogados, médicos e juízes de doutores. Doutora Carla Abrantkoski Rister, por exemplo. Mas doutores de que, se não fizeram doutorado? Advogados e delegados são bacharéis em Direito, assim como jornalistas são bacharéis em Comunicação. Curioso, não?

(*) Jornalista há 10 anos, professor de Legislação e Ética no curso de Jornalismo da Univali (SC), doutorando em Jornalismo na USP

 

 

DIPLOMA EM XEQUE

Documento encaminhado ao procurador regional dos Direitos do Cidadão da Procuradoria da República em São Paulo, André Carvalho Ramos, manifestando seu posicionamento a favor da obrigatoriedade do diploma para o exercício da função de jornalista (*)

Cumprimentando-o cordialmente, nós, assessores de comunicação do Ministério Público Federal, gostaríamos de esclarecer alguns pontos a respeito da Ação Civil Pública impetrada por vossa excelência na 16? Vara Cível da Justiça Federal em São Paulo. No dia 31 de outubro, através da divulgação da sentença da juíza substituta Carla Rister, tivemos conhecimento que não é mais necessário o diploma para o exercício da função de jornalista.

De acordo com as matérias a decisão da Juíza baseia-se no artigo quinto, parágrafo nono da constituição de 1988, que diz: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. É preciso esclarecer que uma matéria jornalística não é uma “livre expressão da atividade intelectual”, e sim a narração de fatos. Um jornalista quando redige uma matéria não está ali retratando a sua opinião, e sim, a de outros. Tomemos como exemplo as próprias matérias em questão. Provavelmente todas foram escritas por profissionais diplomados e, em nenhum momento, é possível perceber a “livre expressão intelectual” de qualquer um deles. Apenas são relatados os fatos, mencionando as fontes. Ser um jornalista não é emitir uma opinião. É ser isento de opinião. Essa é uma técnica ensinada e treinada dentro das salas de aula das faculdades de Comunicação Social. O que mais aprendemos e discutimos durante o curso de jornalismo é que para o leitor, ouvinte ou telespectador não interessa o que o jornalista pensa. O que importa é o que os entrevistados pensam, como, onde, quando, quem, por que e o que fazem. É preciso deixar claro que quem se expressa livremente num jornal são os colunistas, editorialistas ou articulistas. Profissionais que nem sempre são jornalistas, e nem necessariamente precisam ser, pois estão ali para emitir uma opinião ou fazer uma análise técnica. São pagos para isso.Todos os grandes jornais hoje têm espaços para a sociedade debater qualquer assunto. É impossível negar a importância da informação hoje em dia. Se não fossem as técnicas específicas de redação seria impossível fazer o jornalismo na velocidade com que hoje ele é feito. A identificação do lead e do sub-lead da matéria, ou seja, o que é de fato notícia, requer técnica e treino. Agora, já pensou o dano que pode causar à sociedade uma matéria de um profissional que, apesar de talentoso, ainda não domina a técnica de apurar com precisão os fatos e redigir isento de opinião, ou seja, imparcial? A discussão deve ir mais longe. Qual o dano que uma matéria mal feita pode causar na vida das pessoas? Como a parcialidade de uma notícia veiculada nos meios de comunicação de massa interfere na sociedade? Qual a importância da reputação de um cidadão, um bem individual que pode ser facilmente abalado pela mídia? Se o senhor, assim como a Juíza Carla Rister, acredita que não são necessárias qualificações profissionais específicas para um comunicador atuar, temos uma discussão em pauta. Já tivemos alguns casos de erros da imprensa que acabaram destruindo a vida econômica e social das pessoas envolvidas. Um exemplo claro disso é o caso da Escola Base de São Paulo. A “livre expressão de comunicação” condenou os donos da escola, antes mesmo deles terem ido a julgamento. Meses depois os jornais assumiram publicamente o erro cometido. Mas, neste momento, a escola já havia sido fechada e as vítimas já não possuíam meios para sobreviver. Isso sem mencionarmos a humilhação pública a que foram expostos. Uma das maiores discussões acadêmicas atualmente é a ética na mídia, pois é inquestionável a influência da informação na vida das pessoas nesse novo milênio.

O fato de o diploma ser dispensável para o exercício da profissão pode fazer com que muitos profissionais cheguem ao mercado de trabalho absolutamente despreparados para saber o que se pode ou não escrever num veículo de comunicação de massa. Até esse profissional aprender muitas vidas poderão ser prejudicadas. Além do mais, com o enfraquecimento da faculdade de comunicação, os debates sobre imparcialidade, ética, e influência da mídia na sociedade perdem foro científico e voltam à banalidade, tal como eram até a regulamentação da profissão. A Juíza Carla Rister menciona na sentença que “a estipulação de tal requisito ( o diploma profissional), de cunho elitista considerada a realidade social do país, vem a perpetrar ofensa aos princípios constitucionais mencionados, na medida em que impede o acesso de profissionais talentosos à profissão”. É preciso mencionar também que sem o uso de qualificações profissionais específicas, a compreensão da informação pode ficar cada vez mais elitizada. Na universidade os professores de comunicação nos ensinam como transmitir uma mensagem sem ruído. Ou seja, como a mensagem pode ser compreendida tanto pela classe mais baixa quanto pela mais privilegiada. Aprendemos técnicas de redação para democratizar a notícia, para fazer com que os menos favorecidos compreendam o que muitas vezes os técnicos, aqueles que possuem “qualificações profissionais específicas”, não sabem explicar. Afinal, capacidade de síntese não é simplesmente “um talento”, é uma técnica que se adquire.

Parece ironia do destino, mas os únicos a comemorarem essa iniciativa foram os empresários donos de jornais, que agora podem desvalorizar o profissional que não mais precisa de formação acadêmica para o exercício de sua função. E não acreditamos que esses empresários sejam menos favorecidos. Gostaríamos que o senhor nos enviasse a inicial de sua ACP para que pudéssemos aprofundar o debate, pois, definitivamente, não concordamos com os argumentos da Juíza Federal expostos nas matérias. Sem mais para o momento,

(*) Assessores de Comunicação do Ministério Público da Federal (MPF).; Copyright CanalJustiça <www.canaljustica.jor.br>