Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O Machado da grande área

FUTEBOL & POESIA

Sérgio Augusto (*)


Prefácio de A ginga e o jogo, de Armando Nogueira, 200 pp., Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2003; URL <www.objetiva.com.br>; preço R$ 28,90; título da redação do OI


Muitos lamentam que Machado de Assis não tenha sido contemporâneo da popularização do futebol entre nós. Eu também adoraria ler crônicas do Machado sobre os primeiros jogos do Fluminense contra o Botafogo, mas, ao que sei, o Bruxo do Cosme Velho jamais sequer pôs os pés num estádio de futebol. Não obstante, Paulo Mendes Campos suspeitava-o tricolor-potencialmente tricolor, como Flaubert, Baudelaire e Mozart ? suposição cuja lógica pouco tem a ver com o fato de Machado ter sido vizinho do campo (ou field, como então se dizia) do Fluminense e morrido no ano em que o Fluminense sagrou-se campeão invicto do Rio.

Há tempos me pergunto se realmente precisamos lastimar o desencontro de Machado com o futebol tendo um estilista como Armando Nogueira de olho no gramado. Sei que não estou sendo original ao aproximar Armando de nosso maior escritor, mas há certas coisas que precisam ser ditas e reditas para que não caiam no esquecimento.

Se a crônica esportiva brasileira tivesse uma santíssima trindade, Mario Filho e Nelson Rodrigues dividiriam o halo com Armando, e ninguém, nem os fãs de João Saldanha, gênio da oralidade, objetariam. "Na Grande Área", sua legendária coluna no Jornal do Brasil, desde o início foi lida, com interesse e admiração, até por gente pouco ligada no dia-a-dia esportivo.Como o Paulo Francis, por exemplo, que a considerava "uma aula de português
e uma experiência estética."

Já que Machado morreu no ano em que o seu (suposto) Fluminense sagrou-se campeão invicto, Armando merecia ter nascido sob as bênçãos de um triunfo botafoguense. Quiseram os fados que o campeão carioca de 1927 fosse o Flamengo. Com os deuses ainda conspirando a favor do rubro-negro, Armando chegou no Rio, pela primeira vez e para sempre, em 1944, com o clube da Gávea soberbando um bicampeonato e a caminho de um histórico tri. Levado por um primo a um jogo do Flamengo contra o Botafogo, no estádio de General Severiano, o jovem recém-chegado do Acre experimentou uma surpresa e uma
epifania.

A surpresa foi a vitória inesperada do time da casa, de goleada: 5 a 2. A epifania foi a visão de Heleno de Freitas em campo, que, por sinal, marcou naquela tarde dois dos cinco tentos alvinegros. Ao ver a estrela de cinco pontas, "radiosa como a luz da tarde ensolarada", a reluzir no peito de Heleno, o jovem recém-chegado do Acre não teve mais dúvidas sobre qual, afinal, era o time do seu coração.

Numa das crônicas enfeixadas nesta antologia, Armando dá detalhes sobre essa conversão. Em outra, ainda mais confessional, revela que toda noite, quando folheia as páginas de sua vida, mexe e remexe aqui e ali, na tentativa de aperfeiçoar seu passado e tornar-se um exemplo de perfeição. Pura cascata. Se há coisa de que Armando está dispensado de fazer é
aperfeiçoar seu passado. Ao menos em seu passado de jornalista esportivo não precisa retocar nada.

Se há alguém, no mundo dos esportes, que pode proclamar, como o poeta, "Meninos, eu vi", sem passar por pedante ou mentiroso, esse alguém é ele. À exceção de Domingos da Guia, o Machado de Assis da grande área teve o privilégio de apreciar ao vivo e de perto os maiores craques do futebol das últimas seis décadas. De Heleno a Zizinho, de Ademir a Nilton Santos, de Puskas a Di Stéfano, de Garrincha a Pelé, de Gerson a Tostão, de Zico a
Romário, de Cruyff a Beckenbauer, de Ronaldo a Robinho.

Esse patrimônio é pessoal e intransferível. Se lhe acrescentarmos 14 Copas do Mundo, não sei quantas olimpíadas e outros tantos torneios de Roland Garros, teremos aí algo digno de uma taça. Com direito a faixa e torcida organizada. Quem sabe, até, com direito a um hino. Que o também acreano João Donato faria questão de compor, de parceria com Abel Silva.

(*) Jornalista