Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Tecnologia e hipocrisia digital

FOTOJORNALISMO

José Colucci Jr.(*)

A capa do Los Angeles Times de segunda-feira (31/3/2003) mostra um soldado britânico em meio a uma multidão de iraquianos durante a tomada de Zubayr. Com o dedo no gatilho, uma das mãos segura o rifle de assalto SA80 enquanto a outra faz sinal para que o iraquiano que traz no colo uma criança abaixe para proteger-se da artilharia inimiga. Diz a manchete: "Em Basra, pânico como tática de guerra". O autor é o premiado e experiente Brian Walski, fotógrafo do LA Times desde 1998. A foto custou-lhe o emprego. Dois dias depois de sua publicação, uma nota do editor explicava aos leitores que Brian Walski fora demitido por violar a política do jornal de "não alterar o conteúdo de fotos jornalísticas". [ para ver as fotos e a Editor?s Note que anuncia a demissão do fotógrafo Brain Walski]

A foto de Walski não é a mais dramática das que a invasão do Iraque originou, mas bem poderia entrar na lista das mais controversas. Alguém notou que alguns civis iraquianos aparecem mais de uma vez. Como a clonagem humana não está na lista dos muitos horrores que se atribuem a Saddam Hussein, o jornal resolveu investigar. Walski, ainda no Iraque, declarou por telefone que tinha usado o computador para combinar elementos de duas fotos, tiradas em momentos diferentes e, assim, melhorar a composição. Na nota de demissão o LA Times republicou a foto manipulada digitalmente ao lado das originais.

A condenação de Brian Walski pela imprensa mundial foi unânime e sua pena aceita como justa. Quase todos os grandes jornais americanos e brasileiros têm regras para evitar a alteração do conteúdo de fotografias por fotógrafos e editores. Nos EUA, a Associação Nacional dos Repórteres Fotográficos (NPPA) estabeleceu que "alterar o conteúdo editorial de uma foto é quebra dos padrões éticos reconhecidos pela NPPA". A Associated Press adota normas similares. Em listas de discussão, profissionais de imprensa, com raras exceções, proclamaram que Brian Walski é um pária, um homem que aviltou os ideais da profissão. A demissão de Walski foi legítima. Caso encerrado.

Será que é tão simples?

Foto não é documento

Espanta que profissionais de imprensa ainda paguem tributo à ultrapassada noção de que a fotografia é documental e imparcial, e jamais deveria ser conspurcada pela manipulação digital. A fotografia nunca foi imparcial e a manipulação sempre existiu, embora não fosse tão eficiente.

O poder documental que se atribui à fotografia advém da percepção de que a imagem fotográfica é uma espécie de impressão digital (aqui relativa aos dedos, não a dígitos, embora a raiz latina seja a mesma) do objeto fotografado. O filósofo Charles Sanders Peirce classificou a fotografia como índice, isto é, um signo que é como um traço deixado por seu objeto, a exemplo da pegada que um pé descalço deixa na areia molhada.

A crença na força documental da fotografia diminuiu através dos tempos, sem jamais desaparecer. O público que se acanhava ao fitar os olhos das diminutas figuras dos daguerreótipos, de tão reais estas lhe pareciam, já não se iludia com as extraordinárias manipulações de laboratório do começo do século. Em 1901, o genial Valério Vieira celebrizou-se com "Os Trinta Valérios", em que o rosto do fotógrafo repete-se na audiência, nos músicos, no maître, no garçom, nos retratos pendurados na parede e no busto que enfeita um móvel. Esse marco da fotomontagem no Brasil evidencia as possibilidades da montagem e faz o público suspeitar da realidade fixada pela prata no papel. Mais tarde, os fotógrafos de Stalin levaram ao grau máximo a arte da manipulação da imagem fotográfica para fins políticos.

Mas o fato é que a manipulação começa muito antes do processamento. A ideologia do fotógrafo transparece na seleção do assunto e passa pela escolha de lentes, abertura, enquadramento e exposição. O fotógrafo do jornal de oposição pode optar por fotografar o comício de perto, com uma grande angular de 20 mm, e fazer a praça parecer vazia; o fotógrafo do jornal da situação pode usar uma telefoto de 300 mm e, pela escolha do ângulo, comprimir a perspectiva para cercar o candidato de um mar de cabeças humanas. Qual das fotos retrata melhor a realidade? Por que a pós-manipulação é pior do que a pré-manipulação? Ou os fotojornalistas deveriam usar apenas a lente de 50 mm e filme preto e branco, como fazia Henri Cartier-Bresson?

A manipulação também pode ser feita pelo editor de fotografia, através da escolha das fotos, dos cortes e pela justaposição de imagens que, isoladamente, contariam uma história diferente. Nas redações de hoje, com grande perda para o leitor, o editor de fotografia freqüentemente cede lugar aos diagramadores e editores de texto.

Muitas vezes a manipulação da imagem é feita pelo fotografado. Quem não se lembra de Maluf agradecendo com as mãos para o céu e um sorriso no rosto as vaias que ouvia da multidão. Nas fotos e na TV parecia que estava sendo aplaudido.

O enquadramento é uma das formas mais dramáticas de manipulação da informação. Quem duvidar que compare duas imagens recentes da invasão do Iraque, uma no website da CNN, outra no da al-Jazira. A al-Jazira optou pelo impacto: o close-up extremo de um rosto de criança com sangue a escorrer do olho ferido. No website da CNN a mesma situação ? reconhecemos o rosto e o ferimento ? é apresentada pela imagem de um menino cercado de marines que lhe prestam os primeiros socorros. São duas posições ideológicas distintas. Qual delas representa a realidade? Seria talvez uma terceira foto, uma que mostre as demais vítimas dos bombardeios, numa profusão de sangue, nervos, ossos e vísceras? Ou seria um enquadramento ainda mais amplo, que mostre também os dirigentes de empresas americanas negociando o loteamento do Iraque pós-guerra enquanto França e Rússia choram as oportunidades perdidas?

Toda a foto é um recorte de uma realidade mais complexa, uma representação bidimensional de um mundo de três dimensões. Nesse ponto a fotografia não é diferente de um texto jornalístico. Pode-se mentir com ambos.

Manipulações e manipulações

As famosas fotos de Eugene Smith, da revista Life, sobre a contaminação por mercúrio da baía de Minamata, no Japão, foram manipuladas à exaustão. Em artigo para uma revista especializada o fotógrafo explicou como produziu o efeito dramático de luz e sombra na bela foto da mãe que banha o filho defeituoso. As áreas escuras foram ressaltadas pela exposição seletiva no ampliador e as altas luzes destacadas pelo retoque manual com ferricianeto de potássio. As imagens de Eugene Smith chamaram a atenção do mundo para o problema da contaminação ambiental e das autoridades japonesas para o drama das populações afetadas. Sua função documental e social cumpriu-se plenamente apesar da manipulação, ou mesmo por causa desta.

Caso diferente foi a capa da revista Times de junho de 1994, que mostra uma foto de O. J. Simpson manipulada digitalmente para tornar a sua pele mais escura e, portanto, na visão de muitos americanos, sua aparência mais sinistra. Como era época de seu julgamento por homicídio, a Times foi acusada de propagar o racismo e influenciar indevidamente o processo legal. O editor da revista retratou-se de sua posição inicial de que a foto fora retocada para "converter-se num ícone da tragédia" e desculpou-se em público pela manipulação.

Qual a diferença entre as duas fotos, a de Eugene Smith e a da capa da Times? Ambas foram manipuladas, mas com intenções diversas e, principalmente, interpretações diversas pelo público. Novamente a comparação com o texto jornalístico é inevitável. Há textos honestos e textos desonestos, mas a distinção pouco tem a ver com o número de adjetivos e tropos semânticos que o autor emprega.

Foto-hipocrisia

Os veículos de imprensa têm que contrapor a necessidade de estabelecer limites para a manipulação de imagens, sob pena de comprometer a sua credibilidade, com o fato sobejamente conhecido de que foto boa vende. O resultado, não poucas vezes, é a hipocrisia.

A fotografia já foi acusada de ameaçar pintores, ilustradores e redatores. Acusam-na agora de ameaçccedil;ar a credibilidade do jornalismo. Qual é o nível de manipulação a ser tolerado numa foto jornalística? Ajustar o contraste e o brilho de uma cena? Desfocar elementos visuais que distraiam o leitor? Dar uma esticadinha no fundo para encaixar o logotipo da revista? Remover uma ruga do canto da boca da atriz de telenovela? Eliminar os fios elétricos que atrapalham a composição? Eliminar de uma foto esportiva o logotipo de um produto que não pagou merchandising? Juntar numa mesma foto personagens que nunca estariam juntas por vontade própria? Que jogue a primeira pedra o fotógrafo que nunca usou nenhum desses recursos. Ou vale a teoria de que manipulação é aceitável desde que o fotógrafo não seja pego com o dedo no mouse?

João Bittar, editor de fotografia da Folha de S. Paulo, disse numa entrevista que o jornal não admite "qualquer manipulação que altere o sentido que o profissional quis dar a uma foto". Se o Los Angeles Times adotasse o mesmo critério Brian Walski não deveria ter sido demitido.

O sentido que Brian Walski queria dar à foto foi o que ele realmente deu. Pode-se parar por aqui. Pode-se também argumentar que a manipulação fotográfica produzida por Walski, ao juntar dois momentos distintos numa mesma imagem, não alterou o sentido da informação que procurava transmitir. Qualquer fotógrafo pode atestar que a perspectiva conseguida pela ampliação da figura do homem com a criança no colo é similar à que teria sido produzida naturalmente por uma teleobjetiva se o fotógrafo estivesse mais distante. É concebível dizer que a foto alterada por Walski corresponde à cena que um jornalista presente descreveria em palavras sem ser acusado de mentir. Por que Walski foi demitido? Por manipular digitalmente uma foto ou por dominar mal o PhotoShop? Fotos digitais não têm original. Será que alguém suspeitaria que a foto foi manipulada se ele tivesse sido mais cuidadoso?

Outras fotos de guerra famosas vêm à mente: o momento exato da morte de um soldado durante a Guerra Civil Espanhola, por Robert Capa, e o hasteamento da bandeira americana em Iwo Jima, por Joe Rosenthal. Esta última originou selos, um monumento e imensa memorabilia patriótica. Sob ambas pesa a suspeita de terem sido forjadas, o que não impede que estejam entre as fotos históricas mais celebradas e reproduzidas de todos os tempos.

O instante ? essa entidade fugaz e breve ? é o deus dos fotojornalistas. Para os puristas da profissão qualquer alteração feita após o momento em que o diafragma se fecha é uma mentira. E uma mentira, seja ela grande ou pequena, continua sendo uma mentira. A tecnologia digital, no entanto, tem o poder de reescrever a história e tornar a mentira à prova de detecção. A milésima cópia manipulada pode ser indistinguível do arquivo original.

É possível que na era da tecnologia digital o único meio de nos aproximarmos da verdade seja através do confronto de informações de fontes variadas, o que ressalta a importância de uma imprensa livre e multifacetada.

A verdade, versão digital

Não pretendi com este texto cheio de perguntas apresentar respostas para um problema tão complexo quanto o da manipulação de imagens jornalísticas. Quis apenas chamar a atenção para o quão ultrapassados ? e, de certa forma, hipócritas ? são os limites estabelecidos e aceitos para a manipulação de fotos na imprensa.

Se as técnicas digitais multiplicaram as possibilidades de manipulação de imagens e não há originais de fotos digitais, outras maneiras de pensar a questão da autenticidade têm que surgir. Uma sugestão é encontrar um meio de identificar alterações de conteúdo através de um código inteligível aos leitores. Fotos manipuladas e claramente identificadas como tal serão julgadas com base na intenção do autor. Como não há meio de assegurar que uma determinada foto digital não foi manipulada, o leitor só pode contar com a reputação de seu autor e do veículo que a publica para decidir. Exatamente como faz com qualquer texto jornalístico.

(*) Engenheiro em Boston (EUA); e-mail <j.colucci@rcn.com>