Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um juiz contra um jornal

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CASO DEBATE

Sérgio Fleury Moraes (*)

Em 1977, aos 17 anos, transformei em realidade meu ideal de vida ao fundar o Debate ? jornal que, embora pequeno, tem uma longa história de resistência, inclusive contra a ditadura militar.

Na década de 90, porém, "trombei" com um juiz de Santa Cruz do Rio Pardo (40 mil habitantes, 375 km a oeste a capital paulista), denunciado por ser beneficiário de mordomias. Iniciou-se uma perseguição sem precedentes contra o Debate.

Em 1996, tive a honra de ver Alberto Dines como convidado no programa Opinião Nacional, da TV Cultura, do qual participei, por telefone, por estar preso por ordem do mesmo juiz. Na época, o magistrado já havia ajuizado ação indenizatória contra o jornal e em nenhum momento declarou-se suspeito ou impedido para decretar minha prisão. O crime? "Desobediência" a uma ordem do próprio juiz que tentava censurar reportagens do Debate.

Cinco anos depois, o jornal vive uma situação jurídica muito delicada e pode fechar suas portas caso as sentenças de primeira e segunda instâncias sejam confirmadas pelo STJ. A imprensa noticiou o caso nas últimas semanas (Folha de S.Paulo, 13/2/01, página A-6; O Estado de S.Paulo, 16/2/01, página A-9; e Jornal da Tarde, em sob o título "Execução Sumária", dia 19/2/01,).

Escrevo esta mensagem num momento de desespero, pois meu ideal de vida pode ruir a qualquer momento. Trata-se de uma polêmica que já dura dez longos anos e que resulta, no cerne da questão, da falta de limites para ações indenizatórias. No meu caso, a situação é ainda pior porque o autor da ação é um juiz com forte influência nos tribunais. Aliás, respondo a duas ações indenizatórias (as únicas nos 24 anos de existência do Debate), mas a segunda é praticamente um "apêndice" da primeira, posto que ajuizada na mesma época, com argumentos semelhantes, pelo promotor Carlos Aparecido Rinard, que trabalhava na Vara Judicial do juiz. Ademais, esta outra ação recebe um tratamento diferenciado da Justiça, que já reduziu os valores para 25 mil reais e está permitindo todo tipo de recurso, ao contrário do processo movido pelo juiz.

O Debate é editado por uma empresa de pequeno porte e seu patrimônio cabe em poucas linhas: um imóvel comercial construído em terreno de 250 metros quadrados, um automóvel Gol 1.000, uma impressora plana Catu 660 ano 1984, uma impressora laser Xerox e quatro linhas telefônicas. Temos no momento 8 funcionários e um faturamento mensal médio de 11 mil reais.

Nossa situação jurídica atual é muito delicada. Perdemos em primeira instância, nosso recurso foi vencido no Tribunal de São Paulo e, em 6 de fevereiro, o ministro Ari Pargendler, do STJ, negou provimento ao agravo apresentado pelo advogado Samuel Mac Dowell. O derradeiro recurso deve ser julgado nos próximos dias pela 3? Turma do STJ mas, se confirmado o veto do relator, o Debate infelizmente deve fechar suas portas, pois o juiz pode confiscar todos os bens para leiloá-los ou simplesmente pedir a falência da empresa, já que o patrimônio do jornal é insuficiente para o pagamento da dívida. A sentença de primeira instância, na ação movida pelo juiz, foi reduzida pelo Tribunal de Justiça a 1.000 salários mínimos ? isto significa, entre juros, correção e honorários, uma quantia superior a 230 mil reais, valor ainda superior ao patrimônio inteiro do jornal.

Proporcionalmente, será a maior indenização imposta a um veículo de comunicação no país, mesmo considerando o caso do Zero Hora, que fechou acordo judicial com o ex-senador Bisol para o pagamento de 1,1 milhão de reais. Afinal, a RBS é empresa de grande porte, proprietária de jornais, emissoras de TV e rádio.

Sem testemunhas

Perdi a esperança na Justiça. Se ela existisse de fato, eu não seria condenado a pagar indenização e o juiz de Santa Cruz do Rio Pardo deveria devolver dinheiro aos cofres do município. Sim, porque a polêmica toda teve origem em denúncias publicadas pelo Debate que jamais foram negadas. O juiz Antônio José Magdalena morou durante muito tempo numa casa cujo aluguel era pago pela prefeitura, enquanto outra casa de propriedade do Judiciário permanece até hoje às moscas. Ele também foi beneficiado pela cessão de uma linha telefônica da prefeitura (que na época valia 4 mil reais no mercado paralelo) para uso particular, instalada em sua residência. Após as denúncias, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) determinou ao prefeito de Santa Cruz a revogação da lei que autorizava o pagamento do aluguel e o juiz também devolveu a linha telefônica. Mas restou ódio ao magistrado: em 1995 ele moveu a ação indenizatória e em 1996 chegou a decretar minha prisão por "desobediência". Cumpri pena de sete meses, sendo que 19 dias fiquei irregularmente numa sala improvisada da cadeia pública.

Na realidade, este é um caso "Escola de Base às avessas", onde a vítima é o jornal. O juiz usa a máquina do Judiciário para aniquilar um pequeno semanário. Não posso aceitar que uma indenização seja imposta não como punição, mas simplesmente como confisco do patrimônio de uma pequena empresa jornalística.

Peço perdão por me alongar um pouco, mas desejo mostrar ao nobre jornalista que a toga pesa muito no Judiciário. Ao julgar a ação do promotor, por exemplo, o TJ sentenciou: "O montante da indenização revela-se exacerbado. À míngua de maiores informações sobre as condições econômicas dos apelantes, fica a indenização fixada em R$ 25 mil". O mesmo TJ permitiu recurso ao STJ, onde a ministra Nancy Andrighi relatou: "Na fixação do valor da indenização por dano moral, o julgador deve, dentre os diversos critérios estabelecidos pelo legislador, pela doutrina e pela jurisprudência, considerar a capacidade econômica do autor do ano (…), devendo ser mantido o valor da indenização fixado".

Mas no caso em que o autor é um juiz, o TJ fixou um valor milionário, alegou ser compatível com o patrimônio da empresa (sem qualquer perícia contábil ou documento que provassem arrecadação ou bens) e negou provimento a recurso especial. No julgamento no TJ paulista, um desembargador chegou a declarar: "É irrelevante o fato de a indenização causar ou não o fechamento do jornal".

Trata-se de um processo "kafkaniano", onde não há testemunhas, provas ou documentos, porque julgado antecipadamente (a reportagem do Estado de S.Paulo de 16/2 diz exatamente isto).

Fica o registro da minha história. Há vários documentos sobre este escândalo no site www.debate.com.br (seção "Judiciário", embora sem atualização nas últimas semanas)

Clique em Próximo Texto para ter uma história resumida dessa perseguição judicial.

(*) Diretor-responsável do jornal Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo (SP)

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