Sunday, 06 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Uma só ética para o mundo todo

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ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

SOBRE KANT

Voltaire Schilling

O filósofo Imannuel Kant, falecido em 1804 na cidade de Königsberg, capital da Prússia Oriental, foi o maior expoente do pensamento iluminista alemão, elaborando um série de críticas (a da razão pura, prática e a do juízo) que visavam aparelhar melhor a razão frente a um mundo novo de progresso material e moral que se vislumbrava no século 18, colaborando igualmente para forjar uma nova ética universalmente válida.

"Estou aprendendo a honrar o homem, e me consideraria muito mais inútil do que o mais simples operário se não acreditasse que esta consideração pode infundir valor a todas as demais encaminhadas para estabelecer os direitos da humanidade." I. Kant, Fragmentos póstumos

O filósofo Kant era dado a fazer caminhadas. Imitava assim a J.J.Rousseau, o único outro pensador de quem ele se dizia devedor direto e de quem tinha um retrato pendurado na sua sala de visitas. Em geral ele as fazia a sós. Por vezes, em dias nublados, ele se fazia acompanhar de um criado para um passeio pelas ruas de Königsberg (na Prússia Oriental, hoje ainda em mãos dos russos), formando uma dupla que a todos espantava pelo contraste. À frente ia o velho sábio, pequeno, com uma peruca enfiada na sua esmirrada cabeça, atrás dele, sempre com um guarda-chuvas a postos, seguia-o um grandalhão chamado Lampe, um ex-granadeiro do rei que por 40 anos lhe fez as vezes de lacaio. Com os anos, o criado deu para desolar-se, chegando a derramar lágrimas silenciosas porque o seu patrão que meditava em voz alta submetera tudo à crítica, inclusive descartando haver um reino dos céus com um bom Deus lá em cima morando nele. Entregou-se à bebida. Kant comoveu-se. Viu que pessoas simples como Lampe precisavam de Deus, mesmo que teoricamente a sua existência pudesse ser contestada.

Para conciliar a razão do sábio com a fé da gente comum ele então elaborou um estratagema. Afinal, pensou Kant, se os homens devem ser felizes na terra ? um dos ditames da razão prática ?, deve-se garantir a conveniência de ter-se um Deus. A razão teórica, dispensando a necessidade da divindade, ficava assim circunscrita aos grandes letrados, aos cultos e eminentes cientistas que se proclamam ateus ou indiferentes às crenças religiosas (como Kant). Com isso ele fundou o moderno agnosticismo: o mundo que nos interessa, o que nos circunda, está submetido aos cuidados da razão, sendo passível de conhecimento. O outro mundo, o da fé, do qual nada sabemos, bem pouco podemos dizer sobre ele.

Esta pequena história do sábio e do seu criado, foi contada pelo poeta Heine para mostrar como, por vezes, os grandes sistemas de filosofia sofrem significativas alterações por motivos bem triviais (se bem que Heine cogitou que o receio de Kant vir cair nas mãos da polícia prussiana, acusado de pregar o ateísmo, o inclinou à prudência). Enquanto o filósofo buscou uma acomodação conciliatória entre a razão e a fé ? procurando não inimizar-se nem com o crente nem com o censor do rei ?, o mesmo não se deu com as questões da ética. Como bom prussiano, Kant foi rígido nisto.

A geração dele e dos demais iluministas do século 18, visto o declínio da teologia e do poder das igrejas, tratou de encontrar uma outra ética ? de alcance universal ? que não viesse da boca do sacerdote carregada com os medos a Satanás. Novos princípios morais que, como disse Montaigne bem antes, "brotasse das suas próprias raízes, das sementes da razão geral", e, claro, do sentimento. Se bem que ele tratou de dividir o comportamento ético em dois tipos: o imperativo (mandamento) categórico, aquele que nos obriga a seguir ("não matarás", "não roubarás" etc.); e o hipotético, que é condicional, subordinado a determinado fim ? a ênfase dele foi no sentido de estabelecer para todos os homens uma atitude moral que fosse uniforme.

Era crença arraigada entre os iluministas que, independente do sujeito ser cristão, muçulmano, judeu , budista ou hindu, havia nele uma essência natural que obrigatoriamente fazia-o cidadão da república da humanidade. Era este miolo especial que permitia os homens se identificarem em qualquer parte do planeta como uma espécie distinta dos demais animais. A nova ética devia assentar-se na fusão do coração com a razão, e dotada de numa certa operacionalidade prática que permitisse os homens ? atiçados cada vez mais pela aproximação comercial ? a desenvolverem, cada vez mais, os traços em comum, independente deles terem nascido num ou noutro continente ou de falarem uma das mil e tantas línguas que andam por aí.

Para Kant o princípio básico desta nova forma ética, visto que os homens sempre são propensos à boa vontade, implicava que todo o agir fosse precedido de um raciocínio prévio. Que fim terá minha ação? Ela é válida para todos os seres humanos? Portanto o indivíduo cosmopolita ? o cidadão universal que emerge do Iluminismo ? não pode ser um egocêntrico que acredita que só é bom o que interessa exclusivamente ao seu país, ao seu negócio, ou a ele somente. O verdadeiro valor de uma atitude ética é antes e acima de tudo medida pelo seu alcance planetário, se ela satisfaz ao mesmo tempo o francês e o chinês, o africano ou o americano.

Dessa forma a sua doutrina ética invalidava qualquer menção a algo que tivesse serventia exclusiva, que atendesse apenas a uma classe, a uma raça, ou a um setor específico qualquer. Este foi o motivo que levou ao fracasso os muitos " ismos" do nosso tempo, como o comunismo, o racismo ou o fascismo. Por mais abrangentes que pensavam ser, por maiores que fossem suas ambições, partiam de bases limitadas, de fronteiras um pouco mais amplas dos que as de uma tribo ideológica ou étnica, jogando contra si parte considerável do restante da humanidade. As suas vitórias, como se viu no século 20, foram efêmeras, como de resto pouco adiantou ao velho Lampe conformar-se em saber que o reino dos céus era um concessão feita pelo bom coração do seu patrão. Isto não o afastou da garrafa e da melancolia.

Bibliografia

Camps, Victoria (ed.) ? Historia de la ética ( Critica, Barcelona, 1999, 2 vol.)

Cassirer. Ernst ? Kant, vida y doctrina (FCE, México,1993)

Cassirer, Ernst ? La filosofia de la ilustración ( FCE., México,1984)

Heine ? Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha ( SP. Iluminuras,1991)

Kant, Immanuel ? Fundamentação da metafísica dos costumes ( Lisboa, Edições 70, 1986)

Lebrun, Gérard ? Kant e o fim da metafísica ( SP. Martins Fontes),

Schultz, Uwe ? Kant ( Labor, Barcelona, 1971)

Vazquez, Adolfo S. – Ética ( RJ, Civilização brasileira, 1970)

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