Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Denúncia de racismo no Ballet Estatal de Berlim

Foto: Unsplash/Creative Commons

Chloé Lopes Gomes (29) nasceu em Nice, sul da França . Quando ainda menina, sua mãe a levou à Ópera de Paris para assistir o espetáculo “O Lago dos Cisnes”. Em entrevista ao portal francês BRUT, ela confessa: “Nesse dia eu sabia que me tornaria bailarina clássica”. O caminho foi prestigioso. Se formou na Escola de Ballet de Bolshoi em Moscou. Entre as estações de sua carreira estão também a Companhia de Maurice Béjart, na cidade de Lausanne, Suíça.

No início de 2018, a bailarina que também atua como modelo foi chamada para um teste para integrar o elenco da Companha Estatal de Berlim (Staatsballet). A instituição, com visibilidade mundial e financiada com verba do governo federal e regional possui um Corpo de Baile com 90 integrantes, 30 delXs, de diferentes países, incluindo o Brasil com o bailarino Murilo de Oliveira.

Porém Chloé foi a primeira afrodescendente a ocupar um lugar num terreno, pelo que tudo indica, ainda muito conservador. Entretanto, a reputação da cidade de Berlim como palco para todas as artes, solo de tolerância e diversidade e o Staatsballett como a principal companhia do país, eram fatores promissores e atrativos.

A chegada

Mesmo antes de ser contratada, ela teria ouvido de colegas que uma instrutora de ballet estaria conspirando e intrigando contra a sua contratação. Meses depois, a mesma instrutora declarou perante à dançarina: “Uma mulher negra não tem lugar numa companhia de ballet, pois esteticamente, isto não encaixa”.

Ao chegar, a bailarina contava com o apoio do diretor Johannes Öhman que dividia o cargo com a coreógrafa Sasha Waltz. O clima de trabalho e diferenças intransponíveis fizeram com que a dupla deixasse o cargo somente após uma temporada de atuação. Dali para frente, Chloé se viu sozinha e sem aliadXs, frente aos comentários racistas e discriminatórios da instrutora de ballet. Em uma das entrevistas, ela se diz “surpresa” de ter ficado 80% do tempo de treino e ensaio sob o comando de uma instrutora somente.

Os dois casos mais exemplares de racismo, denunciados em inúmeras entrevistas, são, por um lado, no contexto do “Lago dos Cines”, logo o espetáculo que a fez decidir o caminho da dança clássica. Chloé teria sido informada que, para participar do espetáculo teria que pintar seu rosto de branco. “Whitefacing” era uma prática que já havia sido proibida na companhia pelos gestores anteriores e é extremamente questionada em todos os setores de arte da atualidade.

“Exigir de uma mulher negra que ela pinte o rosto de branco é exigir que ela abdique de uma parte de sua identidade”, declarou a bailarina ao portal francês, Brut.

Outro momento emblemático para Chloé com a instrutora de ballet aconteceu durante ensaios para “La Bayadère” quando se iniciou a distribuição dos véus para as bailarinas. Ao chegar à Chloé, a instrutora teria dito: “Eu não vou te dar o véu porque ele é branco e você é negra e riu na minha cara”, declarou repetidamente em entrevistas.

Terreno de lama

O histórico de curta permanência dos dois últimos diretores, a rebelião feita contra as contratações por parte do corpo de baile são fortíssimos indícios de um clima de trabalho tóxico, recheado de inveja, intrigas e, acima de tudo, medo de represálias e/ou de não ter o contrato prolongado.

O outro aspecto institucional que contribui para medidas de força incabíveis é a discrepância que o elenco tem contrato de tempo limitado, enquanto instrutorXs de ballet gozam do privilégio de contratos vitalícios. A falta de uma gestão firme e transparente unida à política de vista grossa, tornam possíveis práticas que persistem durante anos sem que venham à tona.

Depois de ter sido informada, que seu contrato com validade até o final da temporada de 2021 não será renovado por motivos de fraco desempenho, Chloé decidiu quebrar o silêncio e iniciar uma empreitada midiática nunca ousada em intensidade e abrangência por nenhum membro do elenco Companhia de Dança Estatal de Berlim: um grito de alerta para que, como a bailarina mesmo declarou, para que o ocorrido não seja um sinal para que meninas que anseiam a profissão achem que este setor está vetado para elas.

Contra-ataque

Depois do primeiro artigo publicado em outubro na edição impressa da Revista Der Spiegel, o desdobramento midiático em toda a imprensa séria alemã, foi imediato, de efeito dominó, mas ao contrário de outros escândalos imediatamente massacrados para Cultura do Cancelamento, o caso envolvendo a bailarina francesa, ainda deixa muitas dúvidas no ar.

Na sequência, veículos da mídia internacional, passando pela BBC, o italiano La Republica, o portal francês BRUT, o inglês The Guardian, o New York Times deram visibilidade à pauta. Na noite de domingo (03/01) a notícia foi veiculada em poucos minutos pela CNN Brasil sob a rubrica “Notícias de Domingo” e pelo que parece, tomou como fonte a conta do Instagram da bailarina. Ao final, a apresentadora comentou: “Que vergonha! Que vergonha!”, mas sem se aprofundar nos detalhes de um problema de grande complexidade.

A editora do Ballet Journal, Gisela Sonnenburg, publicou em 30/11 artigo de alto cunho difamatório com o título: “Racismo, Mal-entendido ou difamação?” acusando a bailarina Chloe de difamação “contra uma instrutora de ballet atuante há 30 anos”, como se o tempo de atividade justificasse qualquer argumento ou significasse um imunizante para o racismo institucional.

A autora ainda afirma que a contratação de Chloe teria sido não apesar, mas pela cor de sua pele. No mesmo artigo ela ainda critica a “política de diversidade” do Senado de Berlim que teria sido o motivo de incluí-la no elenco do Staatsballett.

O artigo ainda tira da gaveta o fato de um bailarino cubano já teria sido “o orgulho da companhia de Berlim”. Ela cita vários exemplos de estrangeiros expoentes em companhias da Alemanha, visivelmente, misturando alhos com bugalhos. No longo artigo ela ainda rotula Chloé de “histérica, protagonista de uma rebelião e caça às bruxas”, além de questionar a saúde mental da bailarina. Para complementar, o artigo ainda avacalha a matéria inicial da revista “Der Spiegel” como “mal pesquisada”.

Correr atrás do prejuízo

Em nota publicada no site da companhia, foi publicado um texto com retórica de panos quentes e frases politicamente corretas que nada cabem no engodo que se tornou o Ballet Estatal de Berlim:

Tolerância zero

Atualmente, com o apoio de consultoria externa, está sendo feito uma investigação para detectar toda a forma de discriminação. Toda a forma de discriminação e racismo na nossa companhia são inaceitáveis. Depois da descoberta das denúncias, nós imediatamente entramos em contato com várias instituições”, entre elas o Senado para assuntos culturais, o escritório de Berlim para “Desenvolvimento de Diversidade”.

De maneira oportunista e nadando na zona de conforto daquelXs que nada tem a perder, o Staatsballett contextualiza a “procura por uma nova gestão” com a necessidade de “reestruturar” a instituição.

As acusações de Chloé, decerto, não são as primeiras e nem mesmo recentes que possam ser associadas à gestão tumultuada da dobradinha Öhman/Waltz. A mazela é bem mais profunda.

A diretora-interina, Dr. Christiane Theobald, só fez o protocolo, alegando criar um código de conduta. Além disso, afirma não ter tido nenhum conhecimento sobre o ocorrido.

No final da segunda-feira (04), Chloé divulgou por sua conta no Instagram (@chleanaislopes) a campanha “Levar o ballet para o século XXI” com meta de angariar fundos para custear a ação a ser movida contra a Companhia Estatal de Berlim: “Eu decidi mover um processo por achar o certo a fazer, mas esse passo me colocou numa situação financeira difícil. Esse fundo é para me ajudar com os custos do processo, que são muito altos (…). Por tomar esta atitude eu estou arriscando nunca mais encontrar trabalho em lugar algum, já que o mundo de ballet é pequeno, mas eu quero levantar a voz por mim e por pessoas negras neste setor”.

***

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.