Quinta-feira, 11 de dezembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1368

Insegurança informacional: quando a mídia cria um país mais violento do que ele realmente é

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A sensação de insegurança no Brasil tornou-se uma das marcas afetivas mais persistentes da vida pública. Embora a violência letal apresente tendência de queda, a percepção de perigo permanece elevada — e, em alguns casos, mais intensa do que há uma década. Esse descompasso tem sido interpretado por pesquisadores como um sintoma de um fenômeno mais amplo: a insegurança informacional, quando a percepção do risco é moldada menos pela realidade empírica e mais pelo ambiente comunicacional que organiza, amplifica e estetiza o medo.

Os dados oficiais ilustram essa contradição. O Atlas da Violência 2025, do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registrou 45.747 homicídios em 2023, a menor taxa em 11 anos (21,2 por 100 mil habitantes). Em 2024, segundo o Mapa da Segurança Pública do governo federal, houve nova queda: 35.365 homicídios dolosos, 6,3% a menos do que no ano anterior. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 também aponta redução nas Mortes Violentas Intencionais, que somaram 44.127 casos em 2024, reforçando o movimento descendente dos últimos anos.

Apesar disso, a sensação coletiva de que o país vive sob ameaça constante permanece inalterada. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, o medo contemporâneo é “difuso, flutuante e desancorado”, resultado de uma sociedade que já não organiza o risco por fronteiras claras. A violência que antes parecia localizada — em momentos ou territórios específicos — torna-se percepção ubíqua. A mídia, ao veicular acontecimentos violentos como fluxo contínuo, alimenta justamente esse medo líquido: um sentimento que não se prende ao fato, mas à possibilidade permanente do fato.

A circulação digital intensifica essa lógica. Em plataformas sociais, vídeos de crimes circulam sem contexto temporal ou espacial. Um assalto de 2016 pode viralizar como se fosse de ontem; um ataque isolado em outro país pode ser interpretado como parte da realidade brasileira. O ambiente informacional se aproxima daquilo que Ulrich Beck descreveu como “sociedade de risco”: não apenas uma sociedade que vive perigos concretos, mas uma sociedade que produz riscos simbolicamente, por meio de discursos, imagens e expectativas. O risco, assim, é menos aquilo que acontece e mais aquilo que poderia acontecer — um futuro ameaçador projetado continuamente no presente.

Nesse cenário, os meios de comunicação desempenham papel fundamental. Para Niklas Luhmann, os meios não apenas transmitem informações: eles constroem a realidade social ao definir o que merece ser percebido. A mídia opera como um sistema que seleciona acontecimentos, cria relevância, atribui sentido e estabelece hierarquias. Quando a cobertura enfatiza o extraordinário — crimes dramáticos, episódios violentos, narrativas de choque — ela cria uma percepção de que tais episódios são mais frequentes do que realmente são. A lógica da notícia, centrada na excepcionalidade, acaba produzindo um efeito paradoxal: aquilo que é exceção passa a ser percebido como norma.

Essa lógica é reforçada pela economia política da comunicação. Herman e Chomsky, no clássico Manufacturing Consent, explicam que o noticiário é filtrado por interesses estruturais — entre eles, a busca por audiência. No Brasil, programas policialescos se beneficiam diretamente da dramatização da violência. A repetição de cenas de assalto, perseguições e homicídios é acompanhada de narrativas indignadas, trilhas tensas e comentários moralizantes. A violência, nesses programas, não é apenas notícia: é espetáculo. E, como todo espetáculo, obedece a uma dramaturgia própria, mais preocupada com impacto emocional do que com precisão contextual.

O resultado é um aumento da sensação de risco independente do comportamento real da criminalidade. Para David Garland, autor de A Cultura do Controle, sociedades contemporâneas tendem a transformar a segurança pública em uma questão emocional. O medo, mais do que os dados, passa a orientar o debate. No Brasil, isso se traduz em apoio recorrente a políticas de endurecimento penal, mesmo quando a violência letal cai. A insegurança informacional, assim, converte-se em força política — capaz de influenciar eleições, fortalecer discursos punitivos e legitimar intervenções estatais mais duras, frequentemente dirigidas aos mesmos grupos racializados e vulneráveis.

Essa dinâmica tem efeitos territoriais. O medo constrói mapas simbólicos da cidade. Bairros periféricos, frequentemente associados ao crime pela mídia, tornam-se sinônimo de perigo. A violência é territorializada simbolicamente, mesmo quando os dados oficiais mostram distribuição desigual e complexa. O sociólogo Pierre Bourdieu chamaria esse processo de violência simbólica: uma forma de imposição de percepções que naturaliza desigualdades e coloca determinados grupos em posição permanente de suspeição. Jovens negros das periferias, alvo recorrente de representações midiáticas, sofrem não apenas estigmatização social, mas abordagens policiais intensificadas e discriminação cotidiana.

O medo, contudo, não opera apenas na esfera macro. Ele impacta também o cotidiano, levando indivíduos a alterar rotas, restringir circulação, evitar espaços públicos e adotar estratégias defensivas, mesmo quando os dados mostram redução da violência. O escritor Richard Sennett, ao analisar a transformação do espaço urbano, mostra como o medo fragmenta a vida pública: a cidade deixa de ser espaço de convivência e torna-se território de vigilância. A retração cívica é uma das consequências da insegurança informacional — e tem implicações profundas para a democracia e para a qualidade de vida urbana.

A mídia, por sua vez, muitas vezes organiza sua cobertura da violência como ritual. Katz e Dayan, ao analisarem os “eventos midiáticos”, descrevem como certos acontecimentos são estruturados de modo a produzir coesão social em torno de emoções compartilhadas. Programas policialescos funcionam assim: convocam o público a participar de uma experiência comunitária de indignação, medo e julgamento moral. Mais do que informar, constroem uma comunhão emocional baseada na ameaça.

Nada disso significa que a violência no Brasil seja pequena ou irrelevante. Pelo contrário: é grave e persistente, especialmente em regiões marcadas pela desigualdade. O problema é que, ao difundir a violência sem contexto e fora de proporção, a mídia empobrece o debate público e dificulta o desenvolvimento de políticas eficazes. A insegurança informacional transforma fenômenos complexos em caricaturas emocionais, bloqueando a percepção de avanços reais e obscurecendo as causas estruturais da violência — como desigualdade, ausência de políticas preventivas, precarização das relações de trabalho e racismo institucional.

A resposta para esse cenário não é silenciar a violência, mas contextualizá-la. Uma cobertura responsável deve trazer dados, discutir tendências, revelar nuances e mostrar contradições. Deve, sobretudo, ajudar a sociedade a compreender que a violência não é um fluxo homogêneo de caos, mas um fenômeno multifacetado, influenciado por fatores sociais, econômicos, políticos e históricos. Sem isso, permaneceremos aprisionados em um ciclo em que a percepção do perigo supera a realidade — e em que o medo se torna instrumento de controle social.

A insegurança informacional é, portanto, um dos maiores desafios do debate público brasileiro. Reduzi-la exige alfabetização midiática, políticas de comunicação, jornalismo comprometido com o contexto e uma sociedade capaz de diferenciar fatos de atmosferas emocionais. Em um país tão desigual e tão afetado pela violência, compreender a realidade é o primeiro passo para transformá-la.

 

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Cleyton Douglas Vital é pesquisador no departamento de Ciências da Comunicação, no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), em Portugal. Com foco em jornalismo policial, jovens e representações midiáticas da violência.