Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nasce a Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Em 24 de novembro de 2010, nós éramos um grupo menor que acreditou em uma aventura: produzir diariamente um blog de notícias, que seria hospedado na Folha de S.Paulo, sobre as periferias de São Paulo. Quase exatos cinco anos depois, hoje (5/11/2015) lançamos a Agência Mural de Jornalismo das Periferias.

Nossa missão, desde o início, foi a de contar as muitas histórias invisíveis que aconteciam nesses bairros e regiões distantes do centro de interesse econômico e político da Grande São Paulo. Nossa atenção se concentraria nas reportagens sobre temas locais e que se situassem fora da pauta sobre violência ou das boas ações realizadas por grandes empresas ou fundações –as duas únicas pautas que nunca faltaram nas páginas dos grandes jornais ou no noticiário das TVs e rádio e que impõem aos moradores da periferia uma imagem sempre ligada ou ao crime, tornando-os algozes da cidade, ou ao assistencialismo, ou seja, suas vítimas.

Favelas Agencia Mural

Com o compromisso de publicar uma história por dia, o objetivo era também fazer um jornalismo em que refletíssemos a visão de quem morasse no bairro, ou seja, produzir a notícia com contexto.

Assim surgiu o conceito de “correspondente local”, inspirado no de correspondente estrangeiro. O nome reforça a ideia de que o território sobre o qual escrevemos pode ser desconhecido para a maior parte dos leitores, e somos nós os responsáveis em mostrar toda a complexidade dessa realidade “distante”. Agora, na agência, são quase 80 correspondentes que moram nas dezenas de bairros e cidades da região metropolitana que são cobertos por eles e elas.

Visão de dentro

Os textos publicados no blog Mural sempre tiveram, portanto, essa “visão de dentro” e nada vai mudar. Negamos a versão exótica da narrativa ou, como digo, o zoológico da pobreza. Ser morador das periferias não é uma qualidade das pessoas, é um estado de residência.

E se esses locais são menos atendidos por infraestrutura e têm menos oportunidades de emprego, os moradores têm o direito de enxergar seu contexto a partir de um processo de transformação, não como uma fatalidade imutável. Reengajar o leitor para que a informação seja útil e para que, ao mesmo tempo, a audiência participe de sua produção e circulação.

Nossas pautas, portanto, tratam sim dos problemas, mas também das soluções. As reportagens sobre a pujança cultural das periferias vêm menos prontas para o consumo fácil do olhar “de fora” e, com suas complexidades, impelem a audiência a se conectar. Consumir a notícia sobre o sarau, o restaurante “popular”, o show do rapper é importante, mas os mundos continuam separados. Por isso é importante quem escreve, quem é o repórter, que inclui todas as nuances da realidade na notícia. Para conectar lados e acabar com a separação entre nós e eles.

Em cinco anos de trabalho, publicamos mais de mil histórias. Ganhamos prêmios (TopBlog duas vezes) e espaços antes inimagináveis. Jornalistas e veículos mais “centro-centrados” começaram a procurar “muralistas”, como nos chamamos todos nós, para ajudar em pautas, para discutir reportagens, para ajudá-los a ver mais longe e melhor o que a imensa São Paulo tem em comum.

Parte do todo

Mas a missão do Mural vai além. Não estamos satisfeitos em apenas contar as histórias. Queremos que elas circulem. Queremos que todos leiam. Se fazemos parte da mesma Grande São Paulo, quem somos nós, se não todos nós? Precisamos reintegrar o olhar sobre a cidade.

Acreditamos que as pessoas que moram nas periferias da região metropolitana devem ter oportunidade de se enxergar como parte do todo. No blog, e agora com o trabalho da agência, elas podem ler, assistir (e em breve, ouvir!) outras visões sobre onde residem. Morar nas periferias começa a ser normalizado como uma posição geográfica –com todos os seus problemas–, mas não mais como um destino.

As reportagens dos muralistas reforçam que a saída não é nem apenas valorizar as qualidades das periferias nem fugir delas. A verdadeira solução está em transformá-las, transformar as periferias em centro –de atenção, de foco de desenvolvimento, em novos centros da cidade.

Assim, fazemos outras ações de jornalismo que têm a ver com a sua distribuição, ou seja, nossa audiência, os cidadãos dessa mesma grande área metropolitana. Na era digital, nós optamos por não negligenciar o “ao vivo”. Organizamos mensalmente a Expo Mural, quando ocupamos um espaço em um evento cultural da periferia para levar até os moradores as nossas reportagens e promover o contato direto com os próprios correspondentes locais.

Vitrine

O Mural nas Escolas (e agora, nas Universidades) é um projeto que leva o trabalho, em forma de seminário ou oficina, para os estudantes do ensino médio matriculados em escolas públicas que estão nas periferias. Investimos na leitura crítica da imprensa e da mídia e no debate sobre representação no fio de histórias da cidade. O site da Agência Mural de Jornalismo das Periferias vai ser a vitrine onde, de hoje em diante, mais pessoas poderão acompanhar o que andamos inventando.

Quase no final desse texto, nosso nome me faz, com alegria pelo acaso, relembrar o manifesto do movimento mexicano que invocou o direito à arte no início do século 20. Três princípios ali têm a ver com o Mural de hoje, e eu adapto, livremente, do fazer artístico e da arte para o jornalismo: incluir as vozes não ouvidas e dividir com eles o fruto do nosso trabalho; acreditar mais na colaboração do que nos talentos individuais para promover a criação e a criatividade; e que informar-se é tão importante quanto participar da produção da informação.

Se um veículo não é relevante para sua audiência, ele vai morrer. Em tempos de crise na indústria do jornalismo, acreditamos que engajar o leitor não é apenas (como se fosse pouco) uma questão de acreditar que sustentar uma imprensa livre e ativa é condição primordial para contribuir no fortalecimento da democracia. Hoje é questão de sobrevivência.

Uma última coisa, se você chegou até aqui. No Mural, e não será diferente na Agência de Jornalismo das Periferias, nós não fazemos jornalismo comunitário ou jornalismo cidadão. Nós fazemos bom jornalismo, jornalismo de qualidade. Acompanhe nosso trabalho.

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P.S – Tenho de agradecer um encontro que aconteceu em junho de 2010. Foi a jornalista Josélia Aguiar que me apresentou a Bruno Garcez, jornalista em licença da BBC, que deu o treinamento para moradores da periferia de São Paulo para estimular o nascimento do “jornalismo-cidadão” na região. Ele formou 60 CJs, na sigla em inglês, e foram cerca de metade deles que aceitaram iniciar esta aventura a meu lado.

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Izabela Moi,  é jornalista e foi bolsista no programa J.S. Knight em Stanford (California, 2014-15). É co-fundadora e co-gestora da Agência Mural de Jornalismo das Periferias