Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Regina Lima

 

Pontualmente a ouvidoria recebe demandas sobre matérias produzidas pela editoria internacional da Agência Brasil. Por não ter correspondentes permanentes no exterior, a agência depende em grande parte das informações obtidas das agências noticiosas internacionais para elaborar essas reportagens. As demandas mais frequentes reclamam dos vieses que os leitores identificam no tratamento dos assuntos abordados. Quase sempre as críticas denunciam a visão “ocidental” refletida nas matérias baseadas nas informações das agências noticiosas que até recentemente foram praticamente as únicas utilizadas pela agência: a Lusa, a Telam e a BBC. Muitas informações publicadas por essas agências são, por sua vez, adquiridas dos veículos convencionais da mídia dos países onde elas operam. Segundo os leitores, a combinação desses fatores leva a uma visão que, na apresentação dos fatos referentes aos países periféricos, tende a privilegiar os interesses dos países que formam o núcleo do capitalismo global, isto é, os Estados Unidos e seus aliados europeus. Para corrigir os vícios dessa visão, os leitores têm sugerido várias agências noticiosas alternativas.

Dentre os assuntos que provocaram o maior número de reclamações por parte dos leitores referentes às matérias produzidas pela editoria Internacional estão a cobertura internacional sobre a crise humanitária na Faixa de Gaza em 2008 e 2009, o golpe de estado em Honduras em 2009 e, mais recentemente, os conflitos civis na Líbia e na Síria em 2011 e 2012. Seja em resposta às críticas feitas a essas reportagens ou por outros motivos, observa-se que a editoria internacional começou a ampliar o leque de fontes consultadas. Mas parece que isso em si não resolve o problema da falta de fontes próprias.

A última demanda que a ouvidoria recebeu reclamando da cobertura internacional se refere a uma matéria publicada no dia 28 de maio sobre o programa nuclear iraniano: “Irã e comunidade internacional voltam a negociar programa nuclear do país em junho” (1). A matéria é baseada em informações obtidas da agência estatal de notícias da China, Xinhua. Ironicamente neste caso, onde a fonte é uma agência noticiosa alternativa, a crítica do leitor não é diferente das anteriores que identificaram um viés “ocidental” na reportagem, embora a observação do leitor enfoque uma frase que a repórter acrescentou ao texto.

O parágrafo é o seguinte: “O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irã, Ramin Mehmanparast, disse que a base das negociações, por parte dos iranianos, é o Tratado de Não Proliferação [TNP]. A declaração é uma indicação de que o Irã nega fins não pacíficos nas pesquisas desenvolvidas no seu programa nuclear”. Segundo o demandante, a escolha da palavra “indicação” e o uso da dupla negativa “nega fins não pacíficos” não apenas podem confundir o leitor mas caracterizam uma posição menos firme por parte das autoridades iranianas do que elas já manifestaram sobre os fins exclusivamente pacíficos do programa nuclear do país e abrem uma brecha à “Irãfobia” e à desconfiança com que os países ocidentais encaram a disposição iraniana de negociar.

Concorde ou não com a interpretação do leitor, a frase em questão poderia ter sido dispensada do texto. Na continuação da matéria reproduz-se o que de fato foi dito pelo representante do governo iraniano: “Segundo o porta-voz, o Irã “jamais quis militarizar” seu programa nuclear, que visa ao enriquecimento de urânio para fins civis”, que traduz trechos da matéria publicada em inglês pela Agência Hinsua (a matéria pode ser acessada pelo hiperlink na matéria da agência).

Independentemente da critica do leitor neste caso específico, destacam-se, além das dificuldades que os repórteres enfrentam quando são obrigados a trabalhar em cima de textos oriundos de outras agências, além da sensibilidade de alguns leitores em relação aos textos que abordam controvérsias que envolvem a política internacional, outras questões que devem ser consideradas quando se trata de informações provenientes de agências de noticias alternativas.

Em primeiro lugar, do mesmo modo que as agências “ocidentais” obtêm muitas das suas informações de veículos locais, as agências alternativas, em muitos casos, dependem de informações ou de agências estatais ou são elas próprias agências estatais. No exemplo da matéria publicada pela Agência Brasil, a Agência Hinsua, citada como fonte, obteve suas informações da agência oficial de notícias do Irã, a Irna, citada pela Agência Hinsua (mas não pela Agência Brasil).

Na sua cobertura do programa nuclear iraniano, a Agência Hinsua frequentemente reproduz informações não só da Irna mas também da Fars, uma agência que a Wikipédia descreve nos seguinte termos: “A Agência de Notícias Fars é uma agência semioficial do Irã. Embora ela se descreva como “a principal agência de notícias independente do Irã”, organizações jornalísticas como a CNN e a Reuters a descrevem como “semioficial”, apontando ligações com o governo” (2).

Em assim sendo, em que medida essas ligações afetam a qualidade das informações divulgadas? Certamente essa é uma questão a ser avaliada caso a caso, por critérios objetivos, do mesmo modo que a ouvidoria procura fazer com as matérias publicadas pela Agência Brasil, que, embora seja uma agência pública, também tem “ligações com o governo”. Trata-se de aplicar os princípios do bom jornalismo para avaliar e usar as fontes de forma responsável. No mínimo, deixando claro para o leitor quando a informação obtida de uma fonte é na verdade proveniente de outra.

Outro critério que deve estar sempre presente é checar as informações com mais de uma fonte. Da mesma maneira em que as ligações com o governo não devem desqualificar as informações, é recomendável checar essas informações para evitar, na pior das hipóteses, que a imprensa se torne instrumento de interesses alheios. A tradução do título e dos trechos iniciais de uma matéria publicada no dia 28 de maio e disponível no site da Fars que cita o mesmo porta-voz citado na matéria publicada pela Agência Brasil serve para ilustrar esse perigo: “Porta-voz: Aiea frisa carácter civil do enriquecimento do uránio de 20%. Teerã (FNA) – O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores do Irã, Ramin Mehman-Parast, frisou que a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) declarou o uránio enriquecido 20% uma atividade civil e pacífica. Mehman-Parast disse que o diretor-geral da Aiea, Yukiya Amano, declarou como civil o enriquecimento de 20%…” (3).

Além da omissão de alguns dos itens básicos do bom jornalismo – quando, onde e a quem essa declaração foi feita – a tentativa de checar a informação na internet não resultou em nenhuma confirmação, sobretudo na voz do próprio diretor-geral da Aiea. Se for verdadeira, a informação sinaliza a possibilidade de o governo do Irã contar com mais apoio da Aiea nas negociações em andamento com os integrantes do chamado grupo P5+1 (Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha) nas reuniões vindouras marcadas para junho em Moscou. Mas, se não for – e a posição do senhor Amano tem sido muito rigorosa até agora em manter o nível de enriquecimento permitido abaixo dos 20%, que, aliás, é um dos pontos nevrálgicos nas discussões (4)- há motivos de suspeitar a existência de um interesse por parte das autoridades iranianas de aproveitar da imprensa para “entornar o caldo”, possivelmente no intuito de jogar a culpa nos outros participantes, caso as negociações não avancem. A história da diplomacia mostra que essa possibilidade não seria inédita, não só no caso iraniano, claro. O fato de o porta-voz ter divulgado essa informação em um encontro com o nome sugestivo de “ Diplomacia Mediática na Era do Despertar Islâmico” no dia 27 maio em Teerã apenas reforça essa possibilidade. Portanto, até ter provas ao contrário, esse tipo de informação merece um grau elevado de desconfiança, uma atitude, aliás, que é própria do exercício da atividade jornalística.

Até a próxima semana.

1. (http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-05-28/ira-e-comunidade-internacional-voltam-negociar-programa-nuclear-do-pais-em-junho)

2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ag%C3%AAncia_de_Not%C3%ADcias_Fars

3. http://english.farsnews.com/newstext.php?nn=9102113846

4. Mais relevante ainda do que a questão do nível de enriquecimento é a posição oficial da Aiea apresentada no relatório publicado no dia 25 de maio, depois da visita do senhor Amano ao Irã na véspera da reunião do governo iraniano com o grupo G5+1. No resumo do relatório consta a seguinte observação: “Embora a agência continue a verificar o não desvio dos materiais declarados nas instalações nucleares e nos locais [hospitais] fora das instalações declarados pelo Irã no seu Acordo de Salvaguardas, pelo fato de que o Irã não está fornecendo a cooperação necessária, inclusive pela não implementação do seu Protocolo Adicional, a agência não pode dar garantias confiáveis sobre a ausência de materiais e atividades nucleares não declarados no Irã e então concluir que todos os materiais nucleares no Irã estão destinados às atividades pacíficas”.

http://www.isis-online.org/uploads/isis

reports/documents/IAEA_Iran_Report_25May2012.pdf