Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A geopolítica oculta na corrida pela vacina contra Covid-19

(Foto: Governo de SP/Fotos Públicas)

O foco do noticiário da imprensa na busca da vacina contra a Covid-19 está centrado na cura da doença, mas a questão principal parece estar na área da política, mais especificamente na geopolítica global. A depender das informações publicadas na Technology Review, publicação do respeitado Massachusetts Institute of Technology (MIT), os quase 20 projetos de vacinas em pesquisa visam mais curar os males do sistema econômico mundial do que neutralizar o Coronavírus.

A preocupação principal parece ser a de que a vacina restabeleça um mínimo de normalidade econômica no planeta a partir da expectativa de que as pessoas percam o medo da contaminação pelo vírus e com isto o comércio, indústria e os serviços voltem a funcionar a pleno vapor. Estados Unidos, China, Rússia e os países europeus travam uma corrida para ver quem consegue a pole position no GP da Covid-19, porque quem sair na frente vai vender vacinas como pão quente e recompor a economia doméstica antes dos concorrentes.

A corrida pela vacina, além de ser um objetivo geopolítico estratégico, é também uma bandeira eleitoral importante para personagens como Donald Trump e Jair Bolsonaro, cujo futuro político depende diretamente da possibilidade de se apresentarem como os responsáveis pelo fim das medidas de emergência e do retorno à segurança em matéria de saúde pública.

A batalha geopolítica em torno da vacina tem um grande divisor de águas: quem terá direito à se vacinar? O governo Trump, nos Estados Unidos, já deixou claro que fará tudo para que os norte-americanos sejam vacinados em primeiro lugar, para tranquilizar empresários e sindicatos, e de quebra, ganhar votos. No lado oposto estão os chineses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e alguns países europeus que defendem a democratização ampla no acesso à imunização contra o Coronavírus. O risco maior é que na hora “do pega”, os países ricos acabem priorizando os seus cidadãos e que muitas nações da África e América Latina só recebam a vacina bem mais tarde.

No discurso, à exceção dos Estados Unidos, os demais países envolvidos na corrida da vacina, garantem que a imunização contra a Covid-19 é um direito de todos, sem privilégios, mas na prática todo mundo está tratando de garantir a sua parte. Os chineses fizeram acordos com o Brasil e Argentina para trocar vacinas e know how científico em troca de garantia na compra de produtos agropecuários e de voluntários na fase de testes. Posições similares foram adotadas por países europeus como Alemanha, França e Reino Unido.

A guerra da informação

Há pouco mais de duas semanas, a Rússia entrou também na corrida anunciando que já tem uma vacina e que começará a ser usada já no final de setembro. Os demais concorrentes tratam o projeto russo com um premeditado ceticismo. A TV Globo, por exemplo, toda vez que se refere à vacina russa faz questão de dizer que não foi testada e que os “meios científicos” (sem citar quais) levantam dúvidas sobre a eficácia do produto.

O certo é que nesta corrida China e Estados Unidos estão na primeira fila da largada. Os americanos por conta dos 5 bilhões de dólares autorizados por Donald Trump e os chineses pelo fato de terem desenvolvido já em 2004 a estrutura básica de uma vacina que provou ser eficaz contra a SARS, mas que acabou não sendo usada porque a epidemia foi controlada. Quando surgiu o Coronavírus, que é semelhante ao vírus da SARS, os chineses rapidamente recuperaram os estudos já realizados, mas precisavam testar em massa. Foi aí que surgiu o Brasil, o maior parceiro comercial da China na América Latina, e que começava a sofrer os efeitos de uma trágica pandemia. Os chineses precisavam de informações a serem obtidas com testes em voluntários já que lá na terra deles, a Covid-19 estava recuando. Em troca, prometeram transferir tecnologia e autorizar a fabricação da vacina no Instituto Butantan.

Os americanos não têm a mesma experiência do que a soma dos conhecimentos da dupla China/Brasil em matéria de fabricação de vacinas porque nos Estados Unidos as empresas farmacêuticas privadas dominam o mercado e, obviamente, concentraram a produção em remédios caros. O mesmo acontece na Europa, razão pela qual lá também os competidores estão em desvantagem técnica, embora com considerável liderança financeira.

Cada um por si

O surgimento da Covid-19 pegou as multinacionais farmacêuticas no contrapé e por isto elas estão tendo que começar do zero, o que implica riscos consideráveis porque o Coronavírus ainda é em grande parte desconhecido. Este desconhecimento e a urgência em salvar vidas torna óbvia a necessidade de compartilhar conhecimentos para acelerar a produção da vacina, mas depois que os chineses identificaram e divulgaram o código genético do Coronavírus, todos os protagonistas da corrida pela vacina se fecharam e agora dedicam-se à espionagem científica.

O que temos agora é uma nova modalidade de guerra fria, só que em vez de armas nucleares e petróleo, o confronto acontece em laboratórios e hospitais. Seus protagonistas involuntários são médicos e enfermeiros/as que, paradoxalmente, são também vítimas desta corrida maluca por uma vacina que ninguém sabe se vai funcionar ou não. Esta incerteza tem levado muitos epidemiologistas a recomendarem que governos e laboratórios priorizem o desenvolvimento de remédios antivirais para limitar a disseminação do vírus, a exemplo do que está sendo feito com sucesso no caso da AIDS.

A produção dos antivirais é mais rápida e poderia mitigar os efeitos da pandemia enquanto as várias modalidades de vacinas são testadas, processo que toma tempo. É justamente tempo a questão que mais preocupa os epidemiologistas do mundo inteiro porque os interesses econômicos e estratégicos das nações mais ricas exercem forte pressão visando a antecipação do lançamento das vacinas. Especialmente quando estão em jogo questões eleitorais e comerciais.

Estes dois fatores trabalham também a favor de um desequilíbrio na futura distribuição da vacina, que não depende apenas do fator imunizador, mas também da logística de apoio, de seringas, de equipes especializadas, ainda mais quando não se sabe se haverá necessidade de mais de uma aplicação e em que prazo. O governo Trump afirma já ter reservado quase 300 milhões de doses para imunizar toda a população norte-americana. A previsão é de que sejam produzidas dois bilhões de doses em todo o mundo, mas isto não garante que países pobres como Haiti, Honduras, Bangladesh, Indonésia, Filipinas e a maior parte da África, tenham seu quinhão de vacinas garantido.

O certo é que esta é a primeira vez na história da humanidade que a saúde passou a ser o principal pretexto para a politização e ideologização da geopolítica global.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.