Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A linha nada tênue entre o jornalismo e o sensacionalismo

(Foto: Freepik)

Mais uma vez, o sensacionalismo dos programas policialescos roubou a cena. Um telejornal, exibido no final da tarde, mostrou, ao vivo, o momento em que uma mãe recebe a notícia do assassinato da filha de 21 anos que estava grávida. A jovem havia sido sequestrada e, segundo a mãe, o principal suspeito era o namorado. A matéria foi exibida em 17 de fevereiro. O programa Cidade Alerta, da TV Record, cobria os desdobramentos do caso desde 12 de janeiro. Na ocasião, o apresentador informou que havia conseguido “novidades” com o advogado que representa o então companheiro da garota. Ele ainda avisa a mãe: “Vou precisar que a senhora seja muito forte”. Ao ouvir que o suspeito teria confessado o homicídio, a mãe se desespera e desmaia. Ao vivo.

A linha que separa o jornalismo do sensacionalismo não é tão tênue. Ou melhor, nada tênue. Não tem como estar um pé lá e um pé cá. O tal “espreme que sai sangue” está aí, escancarado. E isso não é jornalismo. O conceito de jornalismo é pautado em ética e respeito, buscando a inatingível imparcialidade e prezando pela objetividade. Está no cerne da profissão levar a informação baseada na verdade – ou o mais próximo disso -, ouvindo todos os possíveis lados, visando esclarecer fatos e incentivar a cidadania. É dever do jornalismo noticiar a morte da jovem. É desserviço expor a família a tamanha humilhação.

Mas, para quem faz, o espetáculo da violência brilha aos olhos. Atrai. A competição do meio eleva os limites do moralmente e eticamente aceitável, transformando a programação num show. Quem se destaca ganha números mais altos de audiência. A reação da mãe conquistou a marca de 10,1 pontos de média na Grande São Paulo. O Cidade Alerta foi o programa mais visto no dia 17, excluindo números referentes às atrações da concorrente Globo.

Fora isso, o espetáculo ganha ainda mais repercussão na web. A viralização do vídeo e as críticas feitas nas redes sociais da emissora, do programa e do apresentador transformam o show em algo ainda maior. A curiosidade faz mais e mais pessoas buscarem pelos nomes “Cidade Alerta” e do “repórter”, se é que assim pode ser chamado. A curiosidade atrai mais telespectadores, que aguardam por um posicionamento oficial, ao vivo, ou alguma outra “furada” jornalística. Mas até quando programas como esse serão aceitáveis e terão espaço na grade?

Embora a tragédia tenha provocado repúdio, esta não foi a primeira e não será a última vez. A regulação dos veículos de comunicação ainda caminha a passos lentos. Na verdade, atualmente, sequer caminha. Não há, no Brasil, uma regulação específica ou um órgão que regule, como acontece no Reino Unido. Por aqui, não há muito pode ou não pode. Durante o segundo mandato do governo Lula, foram iniciadas propostas para tratar tal assunto, mas as emissoras de TV e associações da área da comunicação, em defesa de seus interesses, se mostraram contrárias. A ideia não tem o intuito de restringir a liberdade de expressão, mas de promover democratização da mídia, abrindo o leque do setor, que hoje é dominado por cinco grandes grupos. Além disso, a liberdade de expressão, embora seja um direito do cidadão, admite limites. Considerar apenas o interesse do público, pautar-se na exploração e abusar do espetáculo para ir ao encontro da lógica mercantil é um caminho perigoso, que exige regulação.

Importante lembrar que, assim como esse, outros programas do mesmo gênero são exibidos a qualquer momento do dia. Neles, é comum ver cenas de violência, uso de drogas e outros tipos de material considerados inapropriados para crianças. No entanto, a última resolução do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2016, permite que emissoras mostrem qualquer tipo de conteúdo a qualquer hora do dia, desde que apresentem a classificação etária no início do programa. Fica a cargo de quem está em casa retirar as crianças da sala.

Retomar discussões acerca da regulação implicaria em também debater sobre o que é e o que não é apropriado para ser exibido. A questão é que conteúdos policiais, que exibem violência e causam revolta e comoção, dão boa visibilidade. Programas com boa visibilidade geram renda e, por isso, funcionam bem, independente do conteúdo ou de quem seja o público receptor. O importante é dar certo. E a atração em questão dá certo desde 1995. “O show tem que continuar!”

Enquanto isso, cabe-nos discutir com revolta a situação na tentativa de evitar novos casos grotescos de quando o sensacionalismo ultrapassa a chatice dos gritos e comentários maldosos e enviesados dos apresentadores falastrões de dentro de seus estúdios e reacender a pauta da regulação. É necessário frisar: o jornalismo não está de luto, ele está em luta! Programas que usam a exploração da imagem de uma vítima para angariar audiência nunca foram e nunca serão jornalismo.

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Estela Capra é jornalista.