Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ‘cibercidadão’ requer novo capital cultural

Estamos vivendo uma reconfiguração da vida social, cultural e política, com reflexos nos comportamentos, nos hábitos de consumo e no exercício da cidadania. A internet passa a promover um novo elo entre o Estado e o cidadão. A ciberdemocracia, assim nomeada pelo filósofo Pierre Levy, diz respeito a novas práticas de política democrática, que nascem dessa estrutura tecnológica digital proporcionada por dispositivos de comunicação em rede.

A ciberdemocracia alarga o espaço público e de cidadania nas e a partir das redes, num movimento emancipador e de renovação da cultura política. Essas novas formas de comunicação participativa favorecem a ação engajada e solidária, e rompem com a indiferença e conformismo tão presentes em nossa sociedade, acostumada com a cultura do silêncio, em que a única voz permitida é a do púlpito.

Diante da relação estabelecida com a tecnologia nos processos de construção da cidadania, observamos como as redes sociais de internet (RSI) podem contribuir para o empoderamento dos cidadãos, abrindo possibilidades para o desenvolvimento de experiências que culminam em mobilizações que ultrapassam as fronteiras do virtual e tomam os espaços públicos.

As Jornadas de Junho de 2013, que inicialmente reivindicam a redução da tarifa no transporte público, mostraram que as articulações forjadas nas RSI podem transpor o ciberespaço e se materializar nas ruas. O ciberativismo é um fenômeno global, como se viu nos movimentos Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, o 15M na Espanha, a Primavera Árabe, no Oriente Médio, e o #YoSoy132, no México. Jovens de todo mundo se apropriaram de recursos de expressão para manifestar seu descontentamento com os agentes de governo, utilizando transmissões de eventos ao vivo (streaming), produzindo podcastings, twittaços e petições online.

Primeiro, uma educação cidadã

Na realidade, a ciberdemocracia se apresenta como uma evolução da democracia liberal, ao fortalecer a ação engajada da sociedade civil no processo deliberação pública. Ela renova a esperança de um modelo alternativo de participação política, que representa uma terceira via entre a democracia representativa, que subtrai do povo a decisão política, e a democracia direta, que a quer inteiramente atribuída ao cidadão.

Nos últimos anos, pressionado pela sociedade civil, o governo brasileiro tomou algumas iniciativas importantes para a consolidação da democracia no país, como a Lei de Acesso à Informação Pública (Nº. 12.527/11), que possibilita que qualquer cidadão solicite informações sobre atos públicos, dando uma nova dinâmica nas relações entre governos e sociedade civil. A partir desse novo marco jurídico, a ideia de governança participativa, marco da ciberdemocracia, avança, mesmo a contragosto de gestores avessos ao modelo de transparência pública.

Frente às possibilidades abertas pela ciberdemocracia e pela ideia de governo transparente, é essencial a aquisição de um novo capital cultural, que associa um saber informal digital a um conhecimento formal escolar. Além disso, o empoderamento cidadão requisita um grau elevado de consciência política, que contribua para refletir sobre os mecanismos deliberativos, que impactam socialmente sobre vida cotidiana.

O capital cultural digital, relacionado à capacidade de os cidadãos atuarem na rede e apreenderem o potencial de uso desse espaço virtual, empodera o cidadão com recursos emancipatórios que o possibilitam a interferir em seu entorno, alargando o campo decisório, tão restrito aos atores da máquina pública. Mas a mera presença de um dispositivo de comunicação digital não significa muito, se não for capaz de produzir uma leitura qualificada do mundo, que supere o senso comum midiatizado.

Assim, se na atual democracia representativa, a população é chamada a participar somente do processo eleitoral de dois em dois anos, na ciberdemocracia, novas formas de participação são elaboradoras a partir da apropriação das tecnologias digitais e do uso das RSI como espaço de discussão política. Para isso, ações políticas forjadas no ciberespaço devem ser precedidas de uma educação cidadã, que eleve a capacidade de intervir na esfera pública. A formação de um “cibercidadão” requer um novo capital cultural.

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Michel Carvalho é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação