Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Uma breve análise à luz de Foucault

Uma das afirmações bastante difundidas no Brasil atual diz respeito ao vício da impunidade, sempre associado aos percalços da violência, da corrupção e ao funcionamento dito ineficaz do Estado. Os desvios encontrados neste país seriam, tanto para alguns representantes dos meios de comunicação quanto para determinados grupos sociais, frutos da percepção de que nada acontece para aqueles que burlam as leis e as condutas consideradas adequadas na convivência cotidiana. Os desesperados bradam em uníssono: pena de morte aos vagabundos!

Sem desconsiderar a relevância de tais sentenças (com exceção da última, fora de cogitação para quem vos escreve), contanto que deixemos claro que os fenômenos sociais não possuem causas únicas no que concerne às suas querelas, pretendemos aprofundar a reflexão acerca das questões supracitadas. De fato, a trajetória das sociedades ocidentais nos últimos séculos conformou uma tendência a naturalizar as decorrências de relações sociais construídas historicamente por agentes sociais protagonistas das situações que, portanto, nada carregam de naturais, objetivas ou imutáveis. É imperativo enfatizar isso, no intuito de evidenciar nossa concepção de que conviver com a impunidade não simula um fator intrínseco ao povo brasileiro, sejam quais forem os argumentos desferidos em favor dessa posição.

Na medida em que entendemos as sociedades contemporâneas sob o prisma da complexidade, apresentaremos, na tentativa de buscar as suas características, algumas das abordagens centrais de Michel Foucault relacionadas à punição, controle e disciplina. Por intermédio das colocações do pensador francês, ofereceremos subsídios para problematizar as relações sociais da contemporaneidade, indo além de respostas fechadas, como a ideia de impunidade – e suas contrapartidas, conectadas aos projetos de punições severas por excelência – sugere em diversos momentos.

“A época da sobriedade punitiva”

Foucault é consagrado como um dos principais construtores do pensamento social no século 20 e suas obras influenciaram um caminho de abertura das ciências sociais para temáticas até então relegadas. Ele atribui valor substancial ao âmbito do discurso, às relações entre saber e poder e dirige suas análises pelo método que ficou conhecido como arqueo-genealogia.

Nas páginas iniciais de Vigiar e Punir, um dos seus trabalhos deveras instigantes, o autor demonstra que, durante a Idade Média, na Europa, o suplício era uma ferramenta de punição dos criminosos levada ao extremo da sua aplicação. A dor, as blasfêmias nas vésperas da morte, enfim, uma vasta gama de sentimentos visíveis aflorava dos “culpados”, perante um público que poderia responder àquilo de formas distintas. No corpo dos supliciados repousava um estilo penal, uma espécie de economia dos castigos, distribuída por todo o continente. O desaparecimento dos suplícios no bojo dos códigos de repressão e penalização, a inauguração de um novo período para a justiça penal, passava a ocorrer no final do século 18 e se consolidava em meados do século 19.

As punições ganhavam facetas “humanitárias”, engendravam-se menos diretamente através da violência ao corpo, com um “[…] arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação” (FOUCAULT, 2010, p. 13). A imagem dos corpos esquartejados, amputados e marcados por todas as partes, sumiria do conjunto de interpelações penais; não seria mais o corpo o seu enfoque basilar. As cerimônias penais deixavam de consistir em exibições públicas e se reorganizavam em meros atos procedimentais ou administrativos. “Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva” (FOUCAULT, 2010, p. 19).

Poder menos “corporal” e mais “físico”

Nem por isso o francês oculta as inferências das relações de poder no corpo dos sujeitos, ao passo que elas o atravessam, o dirigem, o marcam. Noutras palavras, é possível vigorar um “saber” sobre o corpo que não signifique uma ciência sobre as suas peculiaridades, mas um modo de controle das suas forças, uma tecnologia política do corpo. “Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças” (FOUCAULT, 2010, p. 29). Por outro lado, a transformação acerca das modalidades penais fez direcionar não só para o corpo dos condenados o atributo da justiça. Acrescentou, sobretudo, o espírito, a alma aos calvários humanos, e as punições adquiriram o sentido de regenerar os transgressores, não mais salientá-los ou aniquilá-los. Desde então as sociedades contemporâneas recebem o estatuto, conforme Foucault, de sociedades disciplinares.

O poder disciplinar, que orienta os indivíduos a internalizarem normas e posturas, que não necessita da coerção material presente a todo instante, decorre dos mecanismos introduzidos nesse percurso de mudanças. Surgiam os hospitais, as escolas, as fábricas, os manicômios, todas elas instituições organizadas numa arquitetura que conseguisse o máximo de controle interior, solidificando recursos para o adestramento das pessoas. Foucault chega a dizer que as arquiteturas circulares denotavam certa utopia política, que mantinha quem fosse “necessário” sob uma vigilância eficiente. Se bem que não se esquece de salientar os demais componentes do espaço de tempo ao qual está se reportando, o francês sublinha o fato de que, para o desenvolvimento econômico do capitalismo, a vigilância e o disciplinamento compulsivo dos trabalhadores surtiram um efeito decisivo.

A disciplina faz “funcionar” um poder relacional que se autossustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis da ótica e da mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos “corporal” por ser mais sabiamente “físico” (FOUCAULT, 2010, p. 171).

Definições e conceitos da moral vigente

O que Foucault ousou fundamentar propicia uma interpretação incisiva do poder, criador de hierarquias provenientes das relações entre os saberes disciplinares e as mais diversas instituições. Ele apresenta uma genealogia da alma moderna, dotada de novos poderes de julgamento, simbolizada no emaranhado científico-judiciário no qual se defendem e se justificam os poderes de punição. Suas palavras retiram qualquer possibilidade de uma justiça neutra, natural, portadora da tarefa de praticar sanções objetivas a crimes objetivos. Não temos como perpassar a obra de Foucault e continuar reproduzindo mentiras discriminatórias e deterministas, que imaginam estáticas as concepções sobre a criminalidade e as intenções punitivas.

Com efeito, impressiona o caráter rasteiro das assunções que miram ao rigor punitivo uma proposta de solução para as mazelas dos dias de hoje. Numa perspectiva ampla, porém realista, nota-se que o caminho da fiscalização exagerada, da vigilância totalitária, só poderá nos inserir numa conjuntura de desapego da liberdade e submissão completa aos mandamentos dominantes. Não é senão ilusória a sentença que prega a pena de morte, por seu turno, imbuída da falácia do êxito de fazer subtrair as estatísticas criminais e estabelecer uma “ordem social de tranquilidade”, pois se as motivações que levam os agentes a infringir os padrões legais não forem repensadas, poucos caracteres proeminentes tenderão a se consolidar.

Vimos com os estudos de Michel Foucault que as sociedades ocidentais contemporâneas capitalistas se erigiram sob a égide do panoptismo [no capítulo de Vigiar e Punir intitulado “O panoptismo”, Foucault desenha o edifício arquitetural elaborado por Jeremy Bentham (1785), o panóptico, por causa da eficiência quase absoluta e dos resultados que incutia nos sujeitos, como a imagem da constituição das sociedades disciplinares. Uma vez confinados nesse lugar, os internos nunca enxergariam os guardas que os cuidavam (se os cuidassem), e seriam sempre vistos de uma torre central de vigilância], isto é, embebidas pelas práticas de controle e disciplina, portadoras da maior eficácia alcançável. O advento dos meios de comunicação de massa adicionou um potencial extraordinário nesse contexto. Qualquer habitante do planeta, provido de condições financeiras para comprar equipamentos de filmagem, está apto a captar instâncias da vida rotineira e divulgá-las de acordo com as suas aspirações. Considerando as perspectivas existentes, temos um paradoxo: num viés, a tal impunidade tão exasperada pode ser combatida, numa sociedade que contém instrumentos para controlar e fiscalizar, cada vez mais disseminados; no reverso, tamanha a tecnologia, o que nos concede a certeza de que não viveremos, no presente ou adiante, as agruras de Winston Smith, descritas por George Orwell na célebre literatura 1984, vigiados por um aparelho doméstico que tudo reporta ao “líder” da nação?

Devaneios a parte, as assertivas que galhofam os direitos humanos, que arguem em prol da ordem, da disciplina e do controle, se apreendidas com atenção, tendem a espalhar uma visão equivocada sobre a realidade. À semelhança de um cachorro que vive correndo atrás do próprio rabo, uma sociedade que investe os seus esforços primorosos na repressão, joga para escanteio as raízes dos seus problemas e se vê num horizonte sombrio. A despeito dos usos ou da completude da sua obra, Friedrich Nietzsche (2009) decompôs a moral vigente, apontou sua procedência histórica, persuadiu a todos nós (ou pelo menos a uns poucos) a refletir sobre definições e conceitos tidos como incontestáveis. Sigamos esse singelo exemplo.

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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[Bernardo Caprara é sociólogo e jornalista]