Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A cassação do “paladino da ética”

A política brasileira vivenciou momentos de tensão antes do anúncio da cassação do mandato de Demóstenes Torres. A defesa do ex-senador no Congresso Nacional foi caracterizada por frases incisivas e a eloquência nas palavras. Atacou os senadores envolvidos em escândalos, mas não conseguiu convencer os seus colegas sobre os diálogos travados com Cachoeira. Diante do pior pesadelo na vida de um político, Demóstenes, se disse vítima do “massacre” da imprensa e, com “unhas” e “dentes”, tentou defender o mandato que o povo de Goiás havia lhe concedido.

Em relação ao atual momento político, não devemos flagrar no fim da era política/mítica do “paladino da ética”. Nossa intenção é destacar a preocupação especial da imprensa com a votação que decidira o futuro político do ex-senador. A questão fundamental é refletir o universo da relação do ex-senador com a imprensa que, num determinado momento, lhe impôs o apelido de “paladino da moralidade” e, nos últimos meses, o repeliu fervorosamente, a ponto de ser quase consensual entre os parlamentares brasileiros que a imagem pública de Demóstenes atravancava o caminho do Congresso Nacional.

Esta metamorfose intrigante de uma figura “símbolo da ética” preserva certos traços da lamentável política das aparências (onde o que conta é a imagética pública) – esta se cristaliza nas instituições e mentes dos indivíduos através de um modelo político-estrutural que pode ser chamado de “censura ocidental” resgatado por Julian Assange (ver aqui).

Sobre o “massacre” da imprensa

Durante a votação que cassou o mandato de Demóstenes, de maneira clara se pôde notar o mal-estar estampado na cara dos parlamentares. Pois, de fato, nada poderia explicar os diálogos, as conversas, as tratativas e os conchavos de quem se beneficiou do cargo que ocupava para obter proveitos próprios.

Ao contrário do que era esperado por boa parte da população, inusitadamente os parlamentares brasileiros deram um passo importante colocando Demóstenes Torres na cadeira dos que necessitam “melhorar” suas explicações, se é que os seus argumentos possam ser considerados explicativos. Se o Brasil vive num contexto de poucos “caciques” e muitos “índios”, o ex-senador era um cacique abjurado pelos seus. Uma “marca” teria sido colocada na sua figura pública simbólica: a marca “Carlos Cachoeira” de ser e agir.

A explosão da notícia de que Demóstenes Torres estava envolvido em escândalos de corrupção foi instantânea. Mesmo diante de provas incontestáveis, o ex-senador tentou se defender. Chegou a dizer no Congresso que não conhecia Carlos Cachoeira. Tudo em vão. Mais rápido do que cavar um buraco, Demóstenes, cavou a sua própria cova política.

A imprensa comprometida com o grande esquema de corrupção não ficou por baixo. Percebendo que não haveria mais jeito de salvar o senador cúmplice, o jogou aos “leões”. Estava de volta à velha tática do salve-se quem puder. Por isso compreendemos Demóstenes quando ele diz que foi vítima do “massacre” da imprensa. Mas, da imprensa que ele mesmo ajudou a legitimar e, principalmente, que o ajudou a chegar ao poder.

Incoerência fugaz

O eixo das discussões já empreendidas sobre a relação corrupção e imprensa parece não avançar. Nesta zona, situa-se o tempo lento, onde se operam as várias formas de resistência das grandes empresas de comunicação. O episódio Demóstenes dá uma nova chance ao debate público sobre o papel da imprensa na sociedade brasileira. No entanto, há o perigo de apenas trocar as convenções irrefletidas de um determinado grupo por outro que se apresenta em seu lugar.

Não podemos negar que a prática da política partidária, que atualmente rege o Brasil, é um extremo distante da vida de grande parte dos brasileiros e brasileiras. Mas o fato é que estamos lidando com uma esfera ainda ínfima de pessoas que acreditam na possibilidade de uma mudança, mesmo que remota, no quadro geral da república. Essa parcela da população carrega consigo a responsabilidade de não deixar que um simples acordo de convenções irrefletidas tome para si o controle da democracia brasileira.

Portanto, a intenção dos senadores de cassar o mandato de Demóstenes Torres começa a dar conta de uma incoerência fugaz da política brasileira: a da impunidade política.

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[Marlos Mello é jornalista e psicólogo]