Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Divagações de um brasilianista

“Brasilianista” é aquele intelectual americano especializado em Brasil. Frisamos o “americano” porque o termo costuma ser aplicado apenas aos pesquisadores que, nos Estados Unidos, constituem o Brasil como objeto de ciência. Claro, são vários os europeus que escreveram ou escrevem sobre a cultura brasileira, mas não são normalmente chamados de brasilianistas (existem, sim, “africanistas”). A designação é exclusiva dos americanos e, ao que nos conste, não há uma recíproca, ou seja, não existe entre nós o “americanista”, o pesquisador brasileiro especializado em Estados Unidos. A geopolítica ainda em vigor parece não dar margem a que a Periferia pesquise o Centro.

Esta introdução justifica-se porque o antropólogo Roberto DaMatta, publicou em sua excelente coluna das quartas-feiras (O Globo, 29/8/2012) uma carta que acabara de receber “assinada pelo meu amigo, o famoso embora aposentado brasilianista Richard Moneygrand”. Na carta, ele tece considerações sobre a realidade brasileira, acentuando que, embora “sendo um marginal relativamente ao universo brasileiro, enxergo com mais clareza aquilo que vocês apenas veem”.

Trata-se de uma angulação de natureza antropológica e sujeita a controvérsias, como se deduz do restante do texto. Moneygrand começa acertando em cheio quanto à organização do nosso Supremo Tribunal Federal, que aposenta seus ministros aos 70 anos de idade. Nos EUA, eles são vitalícios, o que “faz com que ser um membro da Suprema Corte seja algo tão sério ou sagrado, tal como ocorre no papado ou a realeza”. De fato, “a vitaliciedade é mais coercitiva do que a filiação a um partido ou a crença numa religião”.

“Fenômeno peculiar”

Tendo começado bem, Moneygrand não tarda, entretanto, em desafinar. Primeiro, ao dizer que “para vocês, até bater em filho e mulher é coisa que ninguém deve meter a colher, ou seja, só cabe à família”. O brasilianista fez bem em ressalvar que é “um marginal relativamente ao universo brasileiro”, porque de algum tempo para cá, a agressão a mulheres está inscrita na Lei Maria da Penha com possibilidades de prisão e pena para o agressor. Segundo, uma leitura atenta de jornais, principalmente os populares, de baixo preço, mostra que a agressão dos pais a seus filhos costuma ser denunciada por vizinhos e o caso invariavelmente termina na delegacia de polícia. Uma coisa que Moneygrand não sabe ou esqueceu é que os Estados Unidos já figuraram em listas de organizações internacionais como o país onde mais se flagelam crianças.

Em seguida, o brasilianista produz um enunciado realmente preocupante: “Na minha fértil imaginação, desenvolvi uma teoria e passei a entender por que vocês não sabem fazer cinema ou o fazem tal mal ou tão raramente produzem um cinema de primeira qualidade”.

Aparentemente, o homem nunca ouviu falar de veteranos como Glauber Rocha, Anselmo Duarte (que ganhou a Palma de Ouro em Cannes), Nelson Pereira dos Santos, Julio Bressane, Murilo Salles, Julia Murat, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e muitos outros. Nem dos mais novos, como Walter Salles, Fernando Meireles, Andrucha Waddingon (cujo Lope foi produzido por Spielberg). Não ouviu falar também do excelente filão cinematográfico do Nordeste, onde brota uma nova estética audiovisual.

Aliás, no mesmo dia de aparecimento da carta (29/8), o mesmo jornal O Globo publica uma extensa matéria no “Segundo Caderno” sobre a “Première Brasil”, descrita como “trincheira nacional do Festival do Rio, que este ano acontece de 27 de setembro a 11 de outubro”. O evento terá este ano a maior concentração de longas-metragens em concurso de seus 14 anos de história: 12 ficções e dez documentários. São filmes inéditos, exceto pela inclusão na disputa do thriller pernambucano O Som ao redor, de Kléber Mendonça Filho, eleito melhor diretor no Festival de Gramado, há duas semanas.

Existe, sim, um “pé atrás” por parte de curadores de festivais internacionais – em geral antenados com a produção cinematográfica do Império – com relação ao cinema brasileiro e latino-americano de um modo mais amplo, que propõe maneiras novas de enxergar o real e tratar o imaginário. Na recém-começada 69ª edição do Festival de Veneza, os critérios “artísticos” do novo diretor, Alberto Barbera, torcem o nariz para a América Latina. Diz Barbera: “Há um fenômeno muito peculiar acontecendo em seu país [Brasil] e com a América Latina em geral: existem muitos novos diretores, alguns muito talentosos, mas que ainda precisam amadurecer”.

Real verdadeiro

A se julgar pela carta de Moneygrand, amadurecer será certamente aprender a fazer cinema com os americanos. Não é difícil de entender uma opinião dessa ordem quando se considera a força do modo de vida americano, espelhado em seu imaginário cinematográfico. O cinema oferece esse modo de vida aos basbaques assim como um profeta oferece aos incréus uma religião. É algo que já havia pensado Alexis de Tocqueville (desconhecido pelos brasileiros, segundo Moneygrand: “[…] como ensina o Tocqueville, que vocês não leram…”), dando centralidade à ideia de que o espírito americano reside em seu modo de vida.

Em seu belo ensaio intitulado “América” (que na época teve exemplares queimados em praça pública por alguns intelectuais americanos), Jean Baudrillard observa que a revolução dos costumes ou revolução moral nos EUA não instaurou nenhuma nova legalidade nem um novo Estado, e sim o modo de vida como legitimidade prática: “A salvação não depende mais do divino ou do Estado, mas da organização prática ideal”. A própria religião é modo de vida.

É esse fundo moral e pragmático dos costumes que preside ao comportamento dos tribunais americanos (o Judiciário como uma máquina pragmática de decisões), assim como ao imaginário cinematográfico. Mesmo abalada a hegemonia planetária dos EUA (permanece o império militar), ainda em meio a toda a crise de uma economia dominada pelas impiedosas finanças, as cabeças dos crentes continuam voltadas para a Meca da democracia, cujo verdadeiro real é o cinema ou a televisão, motivo por que parecem tão naturais, coisas que só eles saberiam fazer.

Como se vê, talvez seja preciso inventar um “americanista” para interpretar o “brasilianista” que assina a carta publicada no Globo.

P.S.– A propósito, Richard Moneygrand é um personagem inventado por Roberto DaMatta.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]