Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A tecnologia é cósmica

Há 20 anos, Kevin Kelly fundou uma publicação que traduziu como poucas o espírito de seu tempo: a Wired, cultuada revista que desde então mostra como a inovação e o desenvolvimento tecnológico afetam – ou afetarão – a cultura, a economia e a política. Duas décadas depois, Kelly não é mais o editor-chefe da revista que ajudou a criar, mas ainda busca compreender as transformações na sociedade como poucos. “Para Onde Nos Leva a Tecnologia?” (editora Bookman), livro que acaba de ser lançado no Brasil, sintetiza o que apreendeu nesse percurso. Ao responder ao título do livro, o autor associa a história da tecnologia à evolução biológica, como se ela fosse um organismo vivo. Na entrevista a seguir, concedida por telefone de sua casa na cidade Pacífica, na costa da Califórnia, Kelly diz que assim como não conseguimos controlar a natureza, o mesmo ocorre com a tecnologia “porque em suas entranhas ela é um animal selvagem”.

Um dos mais respeitados especialistas do Vale do Silício e autor do best-seller “Novas Regras para uma Nova Economia” (1999) argumenta a favor da expansão tecnológica, mesmo com seus efeitos colaterais, como o aquecimento global. Para o cristão e confesso admirador de Jesus Cristo e Mahatma Gandhi, a tecnologia é uma testemunha da divindade.

Por que resolveu comparar a tecnologia à evolução da biologia?

Kevin Kelly – O grau de complexidade da vida se assemelha em muito com o da tecnologia. A internet – uma tecnologia bastante avançada-se comporta como um sistema imunológico, ao filtrar e descartar vírus como se fossem células doentes. Nós usamos a evolução artificial para criar novos medicamentos, gerando mutações aleatórias e permitindo que haja réplicas e melhorias. Os cérebros artificiais inteligentes dos robôs usam os mesmos princípios das redes neurais dos cérebros de seres humanos. A tecnologia se torna cada vez mais complexa, quase tão complexa como a natureza biológica e assim devemos usar essa mesma lógica para entendê-la e gerenciá-la.

O senhor afirma que a tecnologia nos torna mais humanos. Como isso ocorre?

K.K. – De fato, a tecnologia faz isso. Com ela, nossos cérebros foram capazes de criar as leis, a ética, marcas importantes da humanidade. Acredito que de muitas maneiras a tecnologia nos tornou seres mais sociáveis ao longo dos anos. Ela nos tornou humanos melhores, porque expandiu a nossa empatia para além dos círculos familiares, das tribos, das cercanias de um Estado, uma nação. Ela também fez extrapolar os conceitos de raça e espécie porque nos interconectou.

“A tecnologia expandiu a empatia do homem para além dos círculos familiares, das tribos, das cercanias de um Estado, uma nação”

O senhor criou o termo “técnio” para explicar uma nova noção de tecnologia que remonta à origem da vida. O que exatamente é “técnio”?

K.K. – Estamos todos cercados por tecnologia. “Técnio” é um sistema que reúne todas as coisas, de uma colher, a uma lâmpada a um sistema elétrico de um carro. Hoje ninguém consegue construir sozinho uma lâmpada, porque isso requer várias tecnologias e cada uma dessas subtecnologias está submetida a outras tantas. É necessário um serrote para fazer um martelo e um martelo para fazer um serrote. Esses sistemas coexistentes e dependentes entre si é o que chamo de “técnio”. É uma rede de escala interplanetária em que todas as tecnologias trabalham juntas. Sabemos que uma lâmpada isolada não tem vida, mas o “técnio” como um sistema exibe um comportamento de um ser vivo.

O senhor diz que a tecnologia é uma extensão da mente humana e a compara à rede do cérebro humano. Isso significa que quanto maior conhecimento sobre a capacidade de nosso cérebro, então maior a amplitude dos instrumentos tecnológicos?

K.K. – De muitas maneiras a tecnologia se assemelha ao cérebro humano, e nesse sentido, assim como nosso cérebro pode ter uma capacidade infinita em ser desvendado o mesmo ocorre com a tecnologia. E a expansão da inteligência artificial pode nos ajudar a expandir ainda mais nossas mentes.

A natureza é algo que não controlamos. Com a tecnologia se passa o mesmo?

K.K. – Não podemos controlar completamente a natureza. Os vírus e as bactérias podem nos matar e não conseguimos evitar as pestes em nossas plantações. Porém, tentamos estancar esses fenômenos. Podemos chegar a um ponto de um controle suficiente para alcançarmos nossas realizações. Ou seja, nos utilizamos das vacinas, dos pesticidas, da esterilização para continuarmos a viver. É um semicontrole e o mesmo ocorre com a tecnologia. Não podemos controlá-la completamente, mas o suficiente para fazermos bom uso dela. Nós domesticamos a tecnologia, mesmo que em suas entranhas ela permaneça um animal selvagem.

E isso não parece assustador ao senhor?

K.K. – Se não tememos a natureza, porque deveríamos ter medo da tecnologia? Em algumas situações, não teremos mesmo o controle dela, e isso talvez faça com que a possamos ver como algo desafiador. O que precisamos entender é que assim como a natureza tem a capacidade de nos restaurar, a tecnologia pode fazer o mesmo por nós.

Na China, os governantes controlam os canais de comunicação e seus aparatos tecnológicos, como a internet. Até quando isso irá durar?

K.K. – Não deve durar muito tempo. Ao menos, se a China quiser crescer economicamente e se tornar uma nação rica. Quanto maior a abertura do país, maior a liberdade de expressão e maiores as escolhas e possibilidades e chances de progressão. Os chineses hoje pressionam seus governantes e eles deverão suspender a censura por razões econômicas.

O senhor aponta apenas as benfeitorias da tecnologia. Mas o que dizer de seus efeitos colaterais como o aquecimento global?

K.K. – A cada surgimento de inovação aparecem problemas, como poluição, altas temperaturas, engarrafamentos, falta de estacionamentos nas cidades. A tecnologia deve ser usada para solucionar essas questões. Ou seja, se o problema é causado pela gasolina, que se invente outro combustível, outra fonte de energia.

Ao longo da história da humanidade, alguns grandes inventores acreditavam que suas criações seriam benéficas à paz, como Alfred Nobel, que inventou o dinamite, e Orville Wright, com a criação do aeroplano. Como o senhor vê o avanço de algumas tecnologias polêmicas, como os clones humanos ou o avião não tripulado drone usado nas guerras?

K.K. – A questão é como se preparar para as coisas inevitáveis. Não devemos proibi-las, mas ajustar nossas instituições a elas. Sempre teremos problemas e precisamos identificá-los, mas não podemos parar a tecnologia. Hoje existe um debate em torno do uso do drone. As pessoas precisarão aceitá-lo. Quanto à clonagem humana, ela já existe de uma forma natural, porque temos os nascimentos de irmãos gêmeos. Talvez ela venha como uma oportunidade, inclusive para aqueles que perdem filhos. Em todo caso, acredito que as réplicas dos humanos serão robôs e não clones que irão nos auxiliar na vida cotidiana.

“O que vivemos é um processo diferente da revolução industrial, portanto a maior parte das modificações não será física”

Como podemos “ouvir” a tecnologia, como o senhor costuma dizer, e entender o caminho que ela seguirá?

K.K. – É preciso fazer previsões. E isso se faz da seguinte forma: precisamos observar como as pessoas fazem uso dos produtos e não o contrário, dizendo a elas como deveriam usá-los. Imagine também que não haja regulamentos: para onde então a tecnologia seguiria? E qual a lógica que existe por trás do crescimento tecnológico atual? Ao respondermos estas questões conseguiremos prever o futuro da tecnologia.

Então, para a onde a tecnologia nos levará nos próximos cem anos?

K.K. – O que vivemos é um processo diferente da revolução industrial, portanto a maior parte das modificações não será física. Cidades no Brasil e em outras partes do mundo permanecerão de forma parecida ao que são hoje, com talvez alguns prédios a mais, mas perfeitamente reconhecíveis. A maioria das mudanças será intangível, na maneira como nos vemos, como trabalhamos, como gastamos nosso tempo, como nos relacionamos. Continuarão haver avanços na medicina e na psicologia, mas sempre tudo relacionado a coisas não materiais.

Como podermos estar todos conectados, como propõe, se a tecnologia não é acessível a todas as populações?

K.K. – A tecnologia está em todos os lugares. A maior parte é antiga, e não nova, como concreto, canos, estradas. E para aqueles que não têm computador ainda, vale lembrar que um celular deverá em breve custar cerca de US$ 5,00. Portanto se uma pessoa pode pagar por um par de chinelos, certamente poderá comprar um celular. Na verdade, o que espero é que os governos finalmente entendam que o acesso às conexões da internet seja tão essencial na vida de um cidadão, quanto o acesso à educação, à água, à saúde e, portanto, deveriam até subsidiar um mínimo de US$ 5,00 para todos usarem a rede.

Parece que nunca estamos satisfeitos com os objetos tecnológicos, porque quanto mais temos, mais queremos. Como foi sua experiência ao se afastar da tecnologia em comunidades amish e asiáticas?

K.K. – Admito que a tecnologia esteja sempre ligada ao supérfluo, aos objetos de luxo, como aparelhos de ar-condicionado. Há alguns anos, poucos podiam comprar esse tipo de aparelho. Hoje, ele se tornou essencial em muitas edificações. O mesmo ocorreu com o e-mail. Alguém hoje consegue ficar sem ele? Conheci algumas comunidades na Ásia que vivem com pouquíssimos objetos tecnológicos e são felizes. Porém, eles estão perdendo oportunidades e possibilidades de crescer em suas vidas.

Em que medida a maneira como o senhor descreve a tecnologia, falando até em Deus em seus escritos, está relacionada às suas vivências como cristão?

K.K. – Tecnologia não é algo místico, mas cósmico. Ela está no centro das coisas e não pode ser separada do universo. Nós precisamos identificar nossas origens e a tecnologia não é uma invenção humana. Tivemos a Grande Explosão e estamos cercados por bilhões, milhões, zilhões de galáxias e planetas em outras dimensões, onde provavelmente deve haver vida.

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Kátia Mello, para o Valor Econômico