Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quando o jornalista se torna personagem

Um jornalista, no exercício da sua profissão, deve ser o mais neutro e objetivo possível. A neutralidade diz respeito à sua apresentação. Deve evitar chamar a atenção dos outros, vestindo-se padronizadamente e se comportando com discrição. A objetividade resulta da busca pelo máximo de informações, atendo-se a elas e fugindo à tentação de elucubrar, teorizar, traçar devaneios. O jornalista não é personagem. É o observador dos acontecimentos, o reportador dos fatos, o cronista do cotidiano.

Mas acontece de o jornalista passar à condição de protagonista. Pode ser acidentalmente. Uma vez encerrado o episódio que lhe deu notoriedade, porém, deve voltar à sua condição de intermediário, pano de fundo, cenário.

Ocorre, entretanto, por algumas circunstâncias, que essa posição destacada evolua para um protagonismo inevitável. Essa mutação resulta, em parte, das qualidades do jornalista, e em parte, preponderante, das carências do meio no qual ele atua. Há falta de informações, referências e orientações que terminam por realçar o papel do profissional.

Encontrei nos arquivos um acontecimento que elucida essas considerações.

Travei um bate-boca com Oziel Carneiro no dia 31 de julho de 1982. Foi durante uma palestra do então senador Jarbas Passarinhos a um grupo de jovens universitários, no auditório da Belauto. Era período eleitoral. Jarbas disputava a reeleição e Oziel era o candidato do partido do governo federal, o PSD, ao governo do Estado. Ambos perderam. Eu apenas cobria o encontro, na condição de repórter. A palestra foi sobre política e eleição, mas chegou ao Programa Grande Carajás, quando um estudante criticou a ausência de benefício para o Pará pela exploração dos seus recursos minerais.

Oziel, que deixara a secretaria-executiva do PGC para se candidatar, interveio. Disse que o problema do Pará não era “a questão do minério, mas sim a energia”. Ressaltou a importância da hidrelétrica de Tucuruí, “afirmando que as críticas de ser esta uma obra precipitada partiram de alguns jornalistas de esquerda”, segundo o noticiário.

Não consegui me manter na posição de mero espectador, como era meu dever profissional. Pedi a palavra e disse a Oziel “que o primeiro a abordar este ponto fora o próprio secretário-executivo de Carajás, Nestor Jost [sucessor de Oziel no cargo], ao declarar que a utilização da madeira a ser retirada do lago da usina poderia servir de fonte de energia elétrica por 20 anos. Disse ainda Lúcio Flávio ter sido a decisão de construir Tucuruí política e não econômica e resultante de acordo entre o governo brasileiro e o consórcio japonês responsável pela Albrás e Alunorte”, conforme o registro do dia seguinte de A Província do Pará.

A matéria do jornal prosseguia: “Oziel replicou que a decisão de construir Tucuruí fora anterior à montagem do projeto Albrás-Alunorte, ao que Lúcio respondeu citando datas, que foram admitidas por Oziel, que, entretanto, continuou negando o fato. Como a discussão ameaçasse prolongar-se bastante, Passarinho sugeriu que fosse marcado um debate entre o ex-secretário-executivo de Carajás e o jornalista Lúcio Flávio, ideia aceita por ambos e aplaudida pelo auditório”.

O debate acabou não acontecendo. Mas esse episódio é rica ilustração.

Divisor de águas

Estávamos na metade do mandato (iniciado em 1980 e a se concluir em 1985) do último governo do regime militar, do general João Figueiredo, um característico oficial de cavalaria do Exército. O Programa Grande Carajás fora criado dois anos antes, por inspiração do ministro Delfim Neto. Visava ampliar os investimentos e a infraestrutura a partir da extração isolada de minério de ferro, que a Vale iniciaria em 1985. A condução de um vasto programa seria tarefa de uma secretaria-executiva, vinculada diretamente à presidência da república e subordinada a um conselho interministerial. Uma mini-Sudam em abrangência territorial, porém mais poderosa.

Indicado por Jarbas Passarinho, o empresário Oziel Carneiro ocupou o cargo. Dele se desincompatibilizou para ser o candidato do PDS ao governo do Pará, apoiado por Passarinho, contra o deputado federal Jader Barbalho. Embora do PMDB, Jader recebeu o apoio do governador Alacid Nunes, que rompeu com o governo federal por não aceitar cumprir o compromisso que assumira na eleição anterior, de apoiar Passarinho ou quem ele indicasse para o governo. Foi o rompimento final das duas principais lideranças que surgiram no Pará com o golpe militar de 1964.

Como parte da campanha eleitoral, Passarinho foi fazer a palestra para os universitários levando consigo seu candidato. O ambiente lhes era inteiramente favorável: o auditório da maior revenda da Volkswagen na Amazônia, a Belauto. Seu dono, o goiano Jair Bernardino de Souza, se tornaria o homem mais rico do Pará, principalmente fornecendo veículos para a obra da hidrelétrica de Tucuruí. Tinha o apadrinhamento do senador Passarinho. Era do esquema de sustentação econômica do PDS no Estado.

Foi depois de uma intensa e rápida indecisão que decidi interferir. Aceitei a carapuça dos “jornalistas de esquerda” mencionados por Oziel. Mas mostrei-lhe que minhas críticas tinham fundamento factual e não impulso ideológico. Felizmente, sempre alimentei minha memória de dados concretos e atualizados. Foi recorrendo a eles que desfiz a argumentação de Oziel, expondo sua contradição, que acabou sendo o fator principal para conquistar a simpatia do auditório.

Minha tese principal, prejudicada pela sumarização do relato jornalístico publicado em A Província, era de que o governo brasileiro tinha decidido construir Tucuruí, independentemente do seu custo, para chegar a um acordo mais amplo com o Japão, necessitado de fechar suas fábricas de alumínio e criar novas fontes de suprimento do metal, mesmo que instaladas num local tão distante como o litoral do Pará. A escolha tinha um motivo óbvio: o choque do petróleo de 1973 tornara impossível ao Japão continuar a produzir em seu próprio territorial o metal básico de alumínio, o produto industrial mais eletrointensivo.

Quando o senador Passarinho interrompeu o bate-boca lateral à sua palestra, quis preservar sua própria condição de astro principal do evento, que ficara ameaçado pela minha discussão com Oziel. Mas também revelava uma característica da já então esmaecida ditadura: sua disposição de aceitar a primazia dos fatos. Sempre que uma posição teve sua base exposta de forma bem documentada, sobretudo com informações oficias, o “sistema” (mais amplamente do que o governo) tolerou o debate, desde que travado em ambiente sob algum controle. Talvez fosse um viés próprio da condição tecnocrática do regime, preocupado em apresentar coerência técnica e fundamentação científica. Um capricho dos militares e uma veleidade profissional dos tecnocratas.

Mas com seus devidos limites. Oziel sempre foi um interlocutor afável e atencioso. Mas quando a campanha esquentou e a candidatura de Jader Barbalho cresceu, ele deixou de me receber. Eu acompanhava a enviada especial de O Globo ao Pará, a ainda apenas repórter Miriam Leitão, à porta do escritório de Oziel, na sede da empresa de poupança e empréstimo imobiliário da sua família, a Socilar, na rua Santo Antônio. Depois Miriam me passava o que ele dizia e eu fazia comentários a respeito para ela, que fez uma excelente cobertura da eleição de 1982, uma promessa de divisor de águas que se frustrou. Jader interrompeu a linha sucessória dos governos apadrinhados pelos militares para ser o novo coronel da política paraense. Sem para isso precisar de dragonas nem passar pelo quartel.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)